A 7 de Dezembro de 2021, publicamos a primeira parte desta investigação e, nesta edição, nos centraremos mais uma vez no perfil de alguns terroristas, os contornos do recrutamento e as metamorfoses que acompanham este fenómeno que eclodiu em Cabo Delgado desde 2017 a esta parte.
Na quarta-feira (19.01), o Director do Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) em Cabo Delgado, Ntengo Crisanto, anunciou que só em 2021 foram registados 347 processos ligados ao terrorismo, mas apenas 11 casos resultaram em detenções e os restantes foram contra desconhecidos. Segundo Crisanto, o grande entrave é o número de processos pendentes e os denunciantes e declarantes que são de difícil acesso.
Muitos deles são deslocados e os distritos onde os factos ocorreram como Palma, Muidumbe, Quissanga e Mocímboa da Praia não têm instalações do SERNIC.
Esta situação descrita pelo Director do SERNIC em Cabo Delgado enquadra-se nos processos que em finais do ano passado foram movidos contra 12 líderes religiosos islâmicos, que durante dias foram procurados e detidos através de denúncias sem provas e, posteriormente, viriam a ser soltos, depois de terem passado por momentos tenebrosos nas mãos das autoridades. Conforme garantiram fontes da "Carta", a detenção daqueles líderes religiosos foi um mero acto de perseguição e calúnia.
A par destes casos, as autoridades militares capturaram terroristas há dias nos distritos de Nangade e, deste modo, a nossa reportagem traz o perfil de alguns destes indivíduos e seus tentáculos.
Entre os capturados está Abudo Selemane Anfai, de 20 anos de idade, natural de Litiminha, no distrito de Muidumbe que depois de ter feito a 12ª classe, em Pemba, numa escola secundária localizada no bairro de Maringanha, em 2019 foi contactado pelo seu irmão mais velho, Dardai Jongo, e começaram a desenvolver actividades comerciais, criando uma ferragem em Muidumbe.
Dardai Jongo é um dos terroristas que antes de integrar o grupo era proprietário da ferragem e, para além de material de construção, vendia acessórios de viaturas, motos e bicicletas.
Entretanto, fontes próximas acreditam que, devido às constantes viagens para Tanzânia e Nampula, pode ter sido aliciado a ingressar no grupo, passando desde então a viver com a esposa e alguns dos filhos nas matas de Cabo Delgado.
Entre os detidos está um terrorista de nome de Juma Saide Mussa, anteriormente residente na Localidade de Pangane, Posto Administrativo de Mucojo, distrito de Macomia, recrutado em 2020 aquando do ataque à aldeia de Pangane, onde se dedicava a actividades marítimas, tendo chegado a ocupar um cargo de chefia devido ao domínio de técnicas de navegação, assim como, a liderar bases e operações.
Segundo explicou às autoridades militares, o grande objectivo do grupo terrorista é dar visibilidade e implantar o islamismo em Moçambique. No grupo dos capturados está ainda Anfai Ceya, terrorista de 32 anos de idade, pai de três filhos, natural de Mucojo-sede, distrito de Macomia. Antes de ingressar no grupo era pedreiro, portanto, viria a ser recrutado pelos terroristas nos princípios de 2019.
O outro terrorista detido, apenas conhecido por Janfar, tem 30 anos de idade, e é natural da localidade de Naunde, no distrito de Macomia. Antes de ingressar no grupo terrorista em 2018, era pescador, mas de repente abandonou a profissão e começou a vender manuais religiosos e a leccionar numa madraça clandestina.
Segundo dados colhidos pela nossa reportagem de pessoas próximas de certos membros do grupo terrorista, quando em 2015 começou o processo de recrutamento em mercados e bairros periféricos da cidade de Pemba, Mocímboa da Praia, Macomia em Cabo Delgado e alguns distritos da província de Nampula como Nacala, Angoche e Mossuril, ninguém tinha em mente os contornos e danos que a insurgência poderia criar à província e ao país. De acordo com as fontes, as primeiras reuniões de recrutamento ocorreram em mercados dos distritos hoje assolados e em outros ainda não atingidos, onde alguns comerciantes e jovens desempregados foram aliciados com valores monetários que rondavam 300 mil meticais ou mais.
Na ocasião, alguns receberam e outros recusaram-se. O facto é que o processo de recrutamento rapidamente se estendeu para as restantes zonas da província, onde os recrutados recebiam garantias de que a actividade visava combater a exclusão e a pobreza a que estavam votados.
Na altura até um jovem recém-formado em jornalismo na maior universidade pública do país (Universidade Eduardo Mondlane), actualmente na casa dos 34 anos de idade, residente no bairro Cariáco, em Pemba, foi recrutado para o grupo, tendo sido responsável por algum tempo pela gestão da comunicação, informação e difusão de mensagens, criação de grupos e produção de vídeos dos machababes, como são localmente conhecidos pela população.
Nos princípios de 2021, o jovem "jornalista" viria a ser detido pelas autoridades policiais na Cidade de Pemba. Antes da detenção, o visado realizou alguns “rituais religiosos", tendo proferido algumas palavras em língua árabe, segundo revelou uma fonte policial. Já detido e a caminho da esquadra, o mesmo começou a manifestar sinais de demência, o que fez com que não fosse responsabilizado criminalmente até ao momento.
Usando a narrativa ligada à pobreza e falta de oportunidades por parte do governo, bem como a exclusão social, o grupo chegou a recrutar cerca de 300 pessoas, em meados do ano 2020, na aldeia de Pangane, no Posto Administrativo de Mucojo, no Distrito de Macomia.
Contam as fontes que 35% eram crianças que acabaram engrossando as fileiras da insurgência, uma vez que supostamente não faziam nada no seu dia-a-dia. Segundo nos foi relatado, não foi necessária nenhuma coação física. O grupo apenas discursava e os jovens aceitavam fazer a sua parte. Foi assim que o grupo que hoje é conhecido como Al Shabab de Cabo Delgado foi recrutando os jovens. Nos primórdios da insurgência, houve até tentativas de recrutar alguns membros influentes das organizações da sociedade civil local que na busca de financiamento para certos projectos, receberam contactos dos membros do grupo cujas lideranças estavam baseadas em Mocímboa da Praia e Macomia.
Entretanto, alguns foram prontamente alertados por certas lideranças religiosas que já anteviam o futuro de todo o cenário. Conforme apuramos, a estratégia de recrutamento foi sendo posteriormente sofisticada, passando a ser realizada em alguns locais de diversão e de aglomeração de jovens ou de desempregados, onde os recrutadores se dirigiam e assumiam as contas dos jovens carenciados e com vontade de ter algum dinheiro para alimentar os seus vícios e mudar as condições de vida das suas famílias.
A escolha dos locais acima mencionados permitiu que, depois de vários dias, os jovens que beneficiaram de pagamento das contas fossem convidados para reuniões, algo estranhas, em que eram aliciados com valores monetários e uma vida melhor assim que os ataques terminassem.
As propostas contratuais iniciais, segundo contou um parente de um integrante da insurgência, eram de quatro anos, entretanto, chegados ao local do combate, a realidade era outra. Muitos dos recrutados não sabiam dos rituais tradicionais, espirituais e de gestão que o grupo usava. O facto é que os que tentaram fugir foram perseguidos e capturados. Um exemplo disso aconteceu na periferia da Cidade de Pemba, onde um carro sem chapa de matrícula perseguiu um comerciante que havia recebido valores monetários em 2015 e começou a dedicar-se à venda de milho em grande quantidade.
O comerciante que viajava constantemente para Zambézia, Nampula, Niassa e para alguns distritos de Cabo Delgado, acreditava que havia sido esquecido pelos membros da insurgência. Entretanto, em Maio do ano passado foi procurado e encontrado em Pemba pelos membros do grupo, numa acção que a Polícia da República de Moçambique (PRM) fez de tudo para abortar o rapto, tendo inclusive trocado tiros com os mesmos. O comerciante acabou sendo levado para parte incerta. (OOmar)