Desde que Manuel Chang foi detido na RSA, a pedido dos EUA, generalizou-se a crença de que seria fácil a sua extradição para aquele país, em virtude do tratado de extradição entre a RSA e os EUA. E desenvolveu-se sobre essa putativa extradição um tacanho exercício jurídico nas redes sociais e nos media. De imediato, espalhou-se a convicção de que o mais provável seria mesmo a extradição para lá. Essa convicção assentava, entre outros, no facto de Manuel Chang não ser havido como suspeito por crimes praticados na RSA, nem interessar ao Estado Sul-africano proceder criminalmente contra ele.
E também se achava que, não havendo acordo de extradição da RSA com Moçambique, nem estando ainda em vigor o Protocolo da SADC, estava descartada liminarmente a possibilidade de ele ser enviado para Maputo.
Nada mais errado. A convicção de que não poderia ser “extraditado” para Moçambique resultou mais de um desejo generalizado de que fosse extraditado para os EUA (por não se confiar no Ministério Público e nos tribunais de cá) do que propriamente de uma análise da questão feita de forma cuidadosa, objectiva e despida de emoções.
Só para dar um exemplo. Devia ter-se considerado, em primeiro lugar, o facto de a RSA possuir uma Lei de Extradição (o Extradition Act 67 de 1962). Nessa Lei, logo no nº 2 do artigo 3, prevê-se expressamente a possibilidade de extraditar para um Estado com o qual a RSA não tenha um acordo de extradição. Sob certas condições, é certo, mas essa possibilidade legal existe. A maioria dos juristas e comentadores opinou no sentido de que era impossível. Para deixar as coisas mais claras, e ao contrário do que é a crença (e grande desejo) da generalidade das pessoas, a probabilidade de Chang ser extraditado para os EUA sempre foi “menor” do que a probabilidade de ele ser enviado para Moçambique. Porquê?
Pelas seguintes razões: o detido é cidadão moçambicano; os actos imputados foram alegadamente praticados em comparticipação criminosa com vários outros moçambicanos; tais comparticipantes residem em Moçambique, tal como o Manuel Chang; os actos materiais ocorreram em Moçambique; o indictment_ do Grand Jury do Tribunal New York “é limitado” a 3 tipos legais de crimes, a 200 milhões de USD e a uma dúzia de arguidos e cúmplices; ora, a fraude envolveu 2.1bilhões de USD, muito mais do que 3 tipos legais de crimes e bem mais do que uma dúzia de autores, cúmplices e beneficiários; os frutos da acção, em grande parte, foram colhidos em Moçambique; um grande volume de activos a recuperar está em Moçambique (prédios, viaturas, dinheiro, valores); há entidades moçambicanas que foram directamente lesadas (bancos, bondholders) que têm domicílio em Moçambique e que disputarão com as americanas os activos que vierem a ser recuperados; foi formulado pedido de entrega a Moçambique *ainda que por via política, diplomática, consular e administrativa*, mas não judicial.
Com todas estas circunstâncias em cima da mesa, o mais difícil para a justiça sul-africana é, foi sempre, decidir-se pela extradição para os EUA. Aliás, o tribunal de Londres extraditou Andrew Pearce? Não. Dir-se-á que os EUA não solicitaram. Responder-se-á: sabiam que seria difícil obtê-la? Ora, num quadro de maior probabilidade de Manuel Chang vir a ser extraditado para a Maputo, o que é que iria acontecer? Ao chegar ao território nacional, e não havendo mandado judicial, deveria ser deixado em paz e em liberdade. Se fosse detido fora de flagrante delito, sem mandado judicial (de juiz), a prisão seria ilegal. Se, ainda assim, a prisão ilegal fosse mantida, os seus advogados fariam um pedido de “habeas corpus”, que seria obviamente deferido!
É isto que os juristas, os comentadores, os cidadãos (e a oposição que votou contra a autorização para prender) desejam? Ou seja, se o Ministério Público, o Tribunal Supremo, e a Assembleia da República tivessem ficado quietos e, entretanto, Chang fosse entregue a Moçambique por decisão da RSA, o que se diria, se ele seguisse circulando pelas ruas da cidade? Seriam veementemente criticadas por não terem previsto essa possibilidade e se terem deixado convencer que a extradição para os EUA era um dado adquirido, só por existir um acordo de extradição RSA/EUA e, sobretudo, por não haver um acordo semelhante Moçambique/RSA. Seriam apodados de negligência, preguiça, ignorância, falta de estudo, quiçá compadrio! Chega a exasperar o atrevimento de ilustres sapateiros da praça que, neste caso, como noutros, teimam em ir além do chinelo! (Carta)