Um dos pilares do despertar da minha consciência contra a injustiça do sistema colonial foi, quando ainda adolescente, o de ver os carros da malfadada polícia de choque cheio de trogloditas vestidos de escuro entrar pelos subúrbios de Lourenço Marques prontos para “chamboquear” “pretos”. Era ver os Land Rovers a entrar pelos Bairros do subúrbio adentro e deixar quem por lá morava em pavor. Era escutar os que se vangloriavam dos feitos da polícia dos brancos, que em muitos casos eram constituídos por moçambicanos. Esses feitos eram normalmente imbuídos de humilhação e agressão. Entre outras coisas, a vivência desse quotidiano me atormentava o sono e contribuiu significativamente para a minha consciência de cidadão e mais tarde vir a ser um candidato à chambocada da PSP colonial que, para minha sorte, não passou de duas bofetadas de um agente da PIDE. Mas em resumo, grande parte da minha adesão à causa antifascista e anticolonial veio daí.
Hoje, ao ver a Polícia tornar como prática a perseguição aos cidadãos me vêm à memória esses tempos. Uma polícia criada para nos defender tornou-se, com encorajamento oficial e mesmo de certos sectores da sociedade, uma polícia repressiva de que todos temos medo. Sair à rua hoje é ter uma elevada probabilidade de ser incomodado por cidadãos fardados e armados com dinheiro público e que o usam para assustar os cidadãos e em muitos casos extorqui-los. Vemos ordens dos oficiais de prender e punir, cidadãos que são detidos, vendedores que procuram um almoço vêem seus parcos haveres pilhados, automobilistas a serem incomodados numa simples viagem de trabalho ou recreio e já ninguém nesta sociedade não tem um episódio rocambolesco para contar.
É verdade que muitos cidadãos não respeitam as autoridades e que ser Polícia deve ser uma tarefa muito difícil dada a complexidade de uma população que se vê a braços com regras e leis que nem sempre se coadunam com a realidade da sociedade em que vivemos. Há que admitir que muitos polícias são honestos e devem ser elogiados pela nobreza e perigo da sua missão, sem falar que provavelmente o seu salário não chega para o básico de suas famílias. Mas isso não pode ser razão para admitir que se torne cultura, como já se tornou, que temos de viver numa sociedade em que é normal ser se preso, incomodado e extorquido por uma polícia que ao invés de procurar ajudar o cidadão a sentir-se seguro e impelido a cumprir a lei de forma serena se age de forma aterrorizante. Não pode, mas já nos habituamos faz muito tempo. A pandemia só veio exacerbar isto. Prender cidadãos, colocá-los debaixo do banco, agredi-los e exigir dinheiro é uma violação da lei e dos mais básicos direitos humanos. Mas parece que todos aceitamos e achamos como imutável. É à nossa maneira, mesmo que a nossa maneira nos violente.
Se há coisa que vimos nos últimos anos foi o empoderamento da Polícia com meios de diverso tipo e isso até seria uma coisa boa se fosse para nos defender. A Polícia tem, inclusive, uma escola de qualidade ficando evidente em qualquer conversa com agentes que estão instruídos e conhecedores da lei e sua missão. Falta comando que os obrigue e estimule a cumprir sua missão: Proteger os cidadãos e não persegui-los e tratá-los de forma indigna.
Um aspecto particular tem a ver com a liderança pelo exemplo. É muito comum vermos polícias a violarem as leis achando que, porque são polícias, não têm de fazê-lo. Assiste-se a isto nos sinais vermelhos, na condução em contramão, no incumprimento das regras de velocidade e tantos outros exemplos. O cidadão, por seu turno, não pode culpar a polícia se não se esforçar para cumprir as regras.
O comportamento da Polícia em nada beneficia a pandemia e a sociedade em geral. Assim como nos revoltamos contra a polícia colonial e passamos à clandestinidade, assim será agora quando a população em geral não se identifica e com a Polícia. As leis têm de ser cumpridas e a Polícia tem esse papel, mas só pode fazê-lo convenientemente se os cidadãos, teoricamente os donos da sociedade, se sentirem do lado da lei. A chambocada, a extorsão e agressividade só podem ter o resultado que sempre tiveram em todo o lado, incluindo em Moçambique. E o vírus, esse, vai continuar se espalhando sem dar nenhuma importância à chambocada. (A. Prista)