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BCI
sexta-feira, 20 novembro 2020 06:11

Carta aberta ao meu amigo Carlos Cardoso*

Dedicado aos que continuam imunes e que

 

não naturalizaram a acção dos “padrinhos”

 

que avançam, mascarados, ceifando vidas.

 

Já a noite ia avançada quando tomei conhecimento da crueldade da tua morte. É assim, os senhores do crime não se expõem à luz do dia, actuam no crepúsculo, nunca matam com as suas próprias mãos. E contigo não poderia ser diferente.

 

Primeiro não acreditei pois parece-nos impossível, que um dia, a nossa terra nos possa engolir pelas mãos de terríveis predadores que nela foram nascendo e crescendo e a quem já não reconhecemos o rosto e o gesto.

 

Num segundo momento corri para o telefone e procurei uma voz nossa amiga a quem pudesse demonstrar, desabridamente, o desespero e a angústia que me invadia naquele momento. Confesso que, bem no fundo de mim, lá onde só a imaginação de uma criança consegue encontrar um final feliz para uma história de bruxas e de terror, eu esperava que ela me desmentisse tamanha barbaridade. Mas não foi isso que aconteceu.

 

Chorámos-te ao telefone. Mais tarde, na solidão em que vivi a tristeza da tua perda, senti como se uma onda gigante me envolvesse e apagasse. A crescente degradação social e as mortes que já vinham sucedendo antes da tua, iam-me a pouco e pouco sufocando; a racionalidade foi dando lugar a uma tristeza profunda e a um turbilhão de emoções contraditórias, a quem os psiquiatras atribuem nomes sonantes de depressão, obsessão e outros mais.

 

A forma como tu nos deixaste arrastou-me para um silêncio profundo, foi como se desistisse de mim por um tempo e hibernasse para descansar, arrumar as ideias e recuperar forças pois devia-te uma resposta.

 

Mas como disse Dostoievski “cada um de nós é responsável por tudo, perante todos”, por isso decidi usar as tuas armas, as palavras, contra a cobardia dos que te mataram, se calaram e esconderam as mãos e a cara.

 

Neste momento sinto-me como se estivesse a nascer de novo, irrompendo do ventre de uma mãe que me sufoca à saída mas que eu, rasgando-a brutalmente, me liberto e saio, soltando um grito amargo de dor. Mas a pouco e pouco o grito se vai transformando num choro de criança que nasce para a vida, cheia de esperança e de amor para dar. E é assim, timidamente e com ternura que começo a recordar o dia em que te conheci. Timidamente pois não sei se estarei à altura de poder recordar a tua estatura como homem íntegro e corajoso que eras. Com ternura porque cresceste e te transformaste na personagem principal de um qualquer conto de fadas que traz a toda a criança um sono repousante, mas também um despertar pleno de energia, de força e de vontade de viver como herói.

 

E um dia tu apareceste e logo me surpreendeste. Tu eras um poço de surpresas!

 

Lembro-me do jovem irrequieto que eras, dos teus longos cabelos até aos ombros que envolviam um rosto vivaço, do teu riso escancarado, do teu olhar crítico e ávido de aprender e de compreender o mundo e como te foste transformando num homem de corpo inteiro, de coração aberto, cuja intensidade de entrega aos teus ideais, à luta por uma vida digna e à tua profissão nunca conheceram limites.

 

O teu carinho pelos amigos estava sempre presente, num beijo, num abraço e a tua alegria invadia as festas, onde tu, dançando, varrias as salas sem te cansares.

 

Contigo vivíamos uma imensidão de sentimentos. Nos momentos mais difíceis vinhas com palavras de esperança e de solidariedade, incitavas-nos à luta constante, propunhas a todo momento soluções políticas possíveis e acenavas-nos, um tanto ingenuamente, com projectos de uma África Austral poderosa, independente e incorruptível.

 

Ensinaste-nos que a luta por um ideal se faz com trabalho árduo, com perseverança, com recuos, mas também vivendo a alegria das pequenas vitórias alcançadas.

 

O nosso projecto era fascinante e nós vivíamos para ele! Chamem, se quiserem, de utópico. No dia em que deixarem de existir utopias, como ponto de chegada de qualquer viagem, num tempo qualquer, morremos como homens que pensamos, que lutamos, que sonhamos, que amamos e que criamos; e o sentido profundo da vida perde-se. As utopias fazem mover o mundo.

 

Quando tomamos nas nossas mãos a concretização de um processo de mudança para o desenvolvimento, nos preparamos para vencer os obstáculos e afirmamos a nossa vontade perante o mundo, somos capazes de construir uma sociedade aberta, próspera, livre e justa. É sinal que estamos vivos e que não nos satisfazemos com o “estatuto de pedinte”, mas queremos agarrar o futuro pelos cornos. Era assim que tu pensavas!

 

Mas o motivo que me levou a escrever-te não foi só uma homenagem a um grande amigo e um desabafo; é também um acto de denúncia e uma necessidade de encontrar uma resposta para a pergunta que, constantemente, me martela a cabeça. Por que razão deixaste de ter lugar na sociedade moçambicana?

 

Torna-se bizarro quando recuamos na nossa história e nos lembramos que sempre repudiámos o governo colonial por ter conseguido manter a guerra e o poder, aplicando o princípio “dividir para reinar”. No entanto, hoje, já sem “estranhos” a reinar entre nós, parece que, em nome do poder, passámos a agir segundo o lema “matar para reinar”.

 

Cardoso, alguma vez acreditaste que serias tu um dos que daria corpo a este princípio?

 

Houve um tempo em que os homens do poder te consideraram um jornalista conceituado, bem informado, eras mesmo o porta-voz oficial da informação sobre Moçambique, consideravam-te uma referência.

 

Estávamos no período pós-independência, de grande exaltação patriótica, da construção da unidade nacional, de uma Nação; a solidariedade internacional pelos que lutavam pela liberdade era um ponto de honra e a aposta no desafio do desenvolvimento era a energia que nos movia. Tudo isto tu vivias e defendias com todo o teu vigor.

 

Mas a História não nos concedeu tempo suficiente para reunirmos forças para o combate por uma mudança solidamente sustentada. E até o timoneiro que nos conduzia neste projecto tombou, prematuramente, deixando-nos à deriva.

 

Na altura, a sociedade parou por instantes, surpreendida com tamanha perda. Em ti e em cada um de nós foi crescendo um vazio profundo, ao qual cada um tentou reagir à sua maneira. Uns nunca mais se encontraram, outros deixaram-se levar pelos seus devaneios e houve quem, com o tempo, se reencontrasse. Para esses foi como que um despertar inesperado, inadiável, transformado em crítica mordaz contra os grupos de poderosos que se vão instalando e proliferando pelo nosso País, semeando a desilusão, o terror e a morte.

 

E tu, corajosamente, apontaste-lhes o dedo. Foste atrevido, arriscando a tua orelha ou mesmo a tua mão, ao denunciares certas acções criminosas e corruptas. Mas para eles não era suficiente e preferiram esmagar-te a cabeça.

 

Esperavas tu, Cardoso, que algum dia tal violência fosse, descaradamente, permitida? Nem tu, nem ninguém!

 

É este facto que não pode ficar impune e é necessário continuar a perfurar a ferida até onde ela fede e aí aplicar-se um tratamento adequado, sem medo, pois a cada minuto, em Moçambique, nascem e vivem centenas de Cardosos que pensam como tu.

 

Qualquer acto de intimidação desejado e montado, através do aparato em torno do teu assassinato, passou ao lado, e no lugar onde tombaste nasceu um mar de flores, permanentemente renovado. Em cada uma delas cresce a voz dos que exigem justiça e dos que repudiam as operações de cosmética que envolveram a captura de alguns “candidatos” a autores de um crime que esconde a existência de uma rede criminosa que actua em várias frentes e encobre a face dos que a apadrinham, gerando cumplicidades que constituem a única explicação para os vários crimes sem cara que se vão tornando já num hábito.

 

Mas não basta prender e interrogar os criminosos, é necessário que a sentença para tais actos seja, exemplarmente, cumprida e não constitua uma máscara, já diversas vezes usada, que ao fim de algum tempo cai, fazendo com que nos cruzemos em qualquer canto com aqueles que já planeiam a próxima vítima a abater.

 

Os senhores do crime sabem como e a quem pagar ou comprar a sua absolvição. Conhecem também o montante necessário para que um qualquer carcereiro lhes abra a porta para iniciarem novos ciclos de projectos criminosos. Esta é a forma como estes grupos actuam e vão estendendo os seus tentáculos, a coberto de uma lei e de uma ordem que parece recear chegar às últimas consequências.

 

E tudo isto se faz à sombra de um governo complacente ou omisso?

 

Será que a segurança do cidadão moçambicano ainda se encontra nas mãos de um governo actuante e responsável ou estará à mercê de decisões assassinas de um grupo de bandidos?

 

Terá perdido o governo e as suas instituições a capacidade de investigar, de actuar de acordo com a lei e de trazer à luz a verdadeira cara dos crimes que são cometidos contra a integridade das pessoas?

 

É vergonhoso que ao abrigo de um Estado de Direito se cometam, sem receio e sem pudor, crimes hediondos e se façam ameaças contra a liberdade da palavra e da manifestação pública de qualquer reacção contrária ao poder criminoso e corrupto que se instalou em Moçambique.

 

Estaremos a caminhar para a institucionalização do crime na nossa sociedade?

 

Se assim for, os grupos de criminosos terão condições para dominar o campo económico e político e o Estado Nacional e de Direito será carta fora do baralho no jogo pelo poder e na regulação da sociedade.

 

A nós cabe-nos encontrar as respostas para tão grande distorção de princípios e agir violentamente por actos e através da palavra contra aqueles que não a utilizam, actuam em silêncio e praticam a morte.

 

A ti, Cardoso, devemos o registo da manifestação do nosso repúdio e a denúncia da forma com que os grupos de criminosos agem, impunemente, na nossa sociedade sem a competência e a prontidão necessárias e a reacção punitiva adequada do poder político e da ordem policial no combate a estes actos. São vários os exemplos de criminosos que são levados a julgamento e a quem são atribuídas penas, mas não é garantido o seu cumprimento rigoroso como se a lei não passasse de “letra morta”.

 

Para tudo isto se exige uma explicação!

 

E é bem ao teu jeito que não nos vamos cansar de interrogar, impacientes na pesquisa das respostas:

 

  • E porquê tanta impunidade?
  • Quem são os senhores do crime? Quem os protege? Até onde vai o seu poder?
  • E tu, Cardoso, que crime denunciaste que levou à tua execução sem sequer seres julgado e defendido?
  • Onde ficou a confiança que em ti depositavam como jornalista conceituado e honesto? Desde quando sendo tu uma referência da informação da verdade como forma de combate à corrupção, te tornaste incómodo e um alvo a abater?
  • Que inversão de valores é esta onde o criminoso fica impune e quem denuncia o crime é executado?

 

Por isso é tempo de transformar a dor e as lágrimas numa força renovada que nos leve a questionar em que sociedade vivemos, a que tipo de poder estamos submetidos e que futuro queremos para as novas gerações.

 

Com a tua morte, o esquecimento pretendido deu origem à eternidade da tua presença entre nós.

 

Morreu o homem e nasceu o mártir.

 

22 de Novembro de 2000

 

Fernanda

 

*Como já está claro, este texto foi escrito em 22 de Novembro de 2002. Inédito, ele permanece forte e actual, por isso a decisão editorial de publicá-lo nestes dias em que prestamos homenagem ao jornalista.

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