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segunda-feira, 04 maio 2020 05:47

Trilogia da Contestação: Bispo Dom Manuel Vieira Pinto, Por Jorge Ferrão 

Dom Manuel Viera Pinto foi alguém que nos habitou às múltiplas despedidas, tantas foram as vezes que partiu e regressou. Quando recebi a notícia do final da sua missão, ainda consternado, tratei de ligar ao Padre Filipe Couto e, acto continuo, conversamos sobre um sem número de facetas e episódios. 

 

Uma trilogia de memórias me vem à cabeça, sempre que falamos no Bispo Dom Manuel Viera Pinto, que nos deixa uma saudade e o sentido de que a sua missão está distante do final.

 

Primeiro, quando foi expulso de Nampula, ali no aeroporto, bem próximo de sua residência, em 1974, afirmando para os microfones da rádio “…saiu pela porta grande e com as minhas malas, todavia, quem me expulsou, sairia pela janela e sem nada em suas mãos…”. Não foi apenas uma saga, pois, meses depois se confirmava o que antes parecia sonho.

 

A minha geração ainda teve o privilégio de escutar muitas das homilias. Falava com sentido de oportunidade e de forma convincente. Repetia, bem alto e em bom tom, que gostaria de morrer em Nampula e de ser sepultado à entrada da Sé Catedral, para continuar próximo de seus fiéis. 

 

Em segundo lugar, me recordo da famosa carta dele e dos sacerdotes da sua diocese, sob o título "Imperativo de Consciência", que eu nunca cheguei a ler, aparentemente redigida pelos padres Combonianos, um documento demasiado famoso para ser ignorado, em contexto moçambicano. Aliás, essa carta não agradou ao Governo de Marcelo Caetano, ao exigir uma resposta corajosa aos problemas graves do povo moçambicano. 

 

Finalmente, a carta que Dom Manuel Viera Pinto escreveu a Samora Machel, em Setembro de 1986, um mês antes do factício acidente que o roubou do nosso convívio. Está carta, aliás, merece uma releitura.  Samora e Vieira Pinto conversavam e debatiam este país com profundidade e respeito. Assim, com a devida vénia, transcrevo à carta. Oxalá, um dia o seu maior desejo em vida, seja satisfeito e regresse à sua cidade de coração, Nampula. 

 

O povo não sabe onde pôr o coração

 

A confiança que Vossa Excelência nos merece, como Presidente da Frelimo e da República Popular de Moçambique, leva-nos a falar, mais uma vez, das violências que não cessam de humilhar e destruir o nosso povo. A guerra continua e com ela a violência, a humilhação, os abusos, os excessos, as atrocidades e os crimes. Permita-nos, Senhor Presidente, que falemos, concretamente, das violências que, neste momento, mais humilham e esmagam o nosso Povo, mais destroem o país e o encobrem de vergonha e de sangue: os massacres, as execuções sumárias, os assassinatos, as n.... e as torturas.

 

Massacres: 

 

As informações de que dispomos dizem-nos que os massacres, cometidos por uns e por outros, não são um boato ou uma pura invenção, mas sim uma triste e dolorosa realidade. Sabemos que, ao longo destes anos de guerra, os massacres de pessoas e de populações inocentes e indefesas foram muitos, contando-se por milhares, o número de vítimas: homens, mulheres, velhos e crianças, jovens e adolescentes, mães lactantes e mães grávidas. O povo pergunta pelas razões destes crimes, destes actos executados e pergunta, igualmente, por quem os comete ou manda cometer. Julgamos que não basta responder com a desculpa de que a guerra é guerra ou de que na guerra não há lei, nem há moral. 

 

O povo entende que, na guerra, há uma inelutável irracionalidade congénita, o que necessariamente dá origem a abusos e a violências arbitrárias. O povo entende que a irresponsabilidade, a indisciplina, o descontrolo, o espírito de represália e de vingança podem tornar, num dado momento, os homens armados em homens ferozes, homens sem lei e sem um mínimo de respeito pela vida, pela dignidade da pessoa humana e pela segurança a que as populações têm inegável direito. Mas, bastarão estas razões para explicar os numerosos massacres, cometidos contra pessoas inocentes, populações indefesas e contra o próprio Povo? Não haverá outras causas, além da lógica diabólica da guerra e da irresponsabilidade de quem os comete, permite ou manda cometer?

 

Perguntas fundamentais: 

 

O povo pergunta se, na origem destes actos brutais, não estará uma ideologia de violência e de desprezo pela vida e direito da pessoa humana, não estará uma estratégia de liquidação e de extermínio, não estará uma política de posições obstinadas e irredutíveis. O povo pergunta se, na base destas atrocidades, não estará o princípio imoral de que os fins justificam os meios, de que na guerra não há lei e de que a necessidade extrema tudo desculpa, se, na origem destes abusos, não estará a desagregação, a corrupção dos valores mais elementares da ética, da moral, do direito e da própria cultura. O povo pergunta se, os massacres e outros actos abomináveis, são apenas um atentado contra a vida das pessoas e das populações ou, igualmente, um atentado contra a vida e a alma da própria Nação.

 

Crueldades: 

 

Estas perguntas tornam-se mais insistentes quando tais atrocidades são cometidas com requintes de crueldade e de cinismo. Muitos, com efeito, têm sido os massacres perpetrados, com um desprezo absoluto pela dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana e também com requintes de terrorismo e de extrema crueldade. Basta pensar nos massacres de pessoas frágeis e inteiramente indefesas, como são as crianças, os velhos, as mães lactantes ou grávidas, nos massacres de populações, convocadas e reunidas ao engano e, em seguida, encurraladas pelas armas e, barbaramente, destroçadas e assassinadas. Basta pensar nas centenas de pessoas retalhadas ou liquidadas à golpe de catana, de baioneta ou de punhal, torturadas ou degoladas, ou então queimadas vivas.

 

Estas, e outras, vergonhosas crueldades põem, de facto, em causa a civilização e a cultura e levam-nos, necessariamente, a concluir que tais crimes não seriam possíveis se, a par da irracionalidade e brutalidade da guerra, não houvesse um processo de degradação e de corrupção dos valores éticos, morais e espirituais do homem e do povo moçambicano. O povo preocupa-se e, diante destas vergonhosas e infames manifestações de violência, não deixa de perguntar se, a par das armas que massacram as pessoas, não há outras armas que tentam liquidar e destruir a alma e a vida do País.

 

Execuções: 

 

As execuções sumárias constituem uma outra violência degradante e criminosa. Estas execuções sumárias, tenham a justificação que tiverem, são sempre um crime, um atentado à legalidade, uma injúria grave à dignidade e aos direitos de todo o ser humano, bem como ao direito de todo o homem a que, uma vez acusado, a sua causa seja examinada, com equidade e publicamente, por um tribunal independente e imparcial. Muitas foram as execuções sumárias, ocorridas nestes anos, por sentença de tribunais improvisados e presididos pelas Forças de Defesa e Segurança. Alguns destes julgamentos e execuções, mercê da crueldade que os caracterizou e acompanhou, transformaram-se num horroroso espectáculo de sangue. Seria longa e chocante a enumeração destes lamentáveis espectáculos de sangue. 

 

Limitamo-nos a lembrar, como exemplo, as execuções à baioneta, à catanada e à facada, as execuções com torturas e humilhações dos acusados e condenados, as execuções por espancamento, por estrangulamento ou por esmagamento do crânio, as execuções por esquartejamento, abrindo, por vezes, a barriga aos executados, arrancando-lhes as vísceras e expondo-as ao público, as execuções com a participação das populações, manipuladas para o efeito e, por vezes, obrigadas a injuriar e a esbofetear os cadáveres deixados, por fim, insepultos à mercê dos abutres e das feras. Estas horríveis e vergonhosas execuções denunciam, tal como a violência dos massacres, a lógica impiedosa da liquidação do inimigo, a todo o custo, a lógica da represália e de vingança, não olhando a meios nem a imperativos de ordem moral ou mesmo legal.

 

Sentimo-nos, por isso, obrigados a lembrar às Forças em presença que tais execuções corrompem a cultura e a civilização do País, põem em causa a personalidade e a alma da Nação, abrem caminhos ao crime e ao abuso contra a vida e contra a dignidade, seja de quem for.

 

Assassinatos: 

 

Os assassinatos, a partir, sobretudo das áreas afectadas ou simplesmente suspeitas, aumentam sempre mais, tornando-se, por isso, na consciência de quem os pratica ou manda praticar, num acontecimento sem qualquer responsabilidade moral. Matar não é nada: assim se exprime quem comete tais crimes. Parece, com efeito, que a vida das pessoas não é mais um valor que mereça respeito, não é mais um direito que mereça defesa. O assassinato torna-se vulgar. A vida, o valor, o sentido da vida estão postos em causa. As pessoas sentem-se inseguras e, mais ainda, quando vêem pela frente homens armados. 

 

Como diz o Povo, chorando amargamente esta humilhação “os homens da Renamo desprezam e matam”, “os homens da Frelimo desprezam e matam”, uns e outros não têm pejo em assassinar homens ou mulheres, velhos ou crianças. Uns e outros não sabem mais o que é o respeito pela vida humana e pela intangível dignidade de todo o ser humano. Por isso, cometem assassinatos a frio, usando, muitas vezes, métodos cruéis. Há assassinatos a golpe de baioneta, de faca ou de catana, a golpe de martelos, de machados e de chicote. Há assassinatos por decapitação, por espancamento, por mutilação, por esquartejamento, por sevícias ou torturas até à morte. Há assassinatos por fogo ou por outros métodos cruéis e desumanos, tais como enterrar as vítimas, ainda vivas, obrigando-as, previamente, a abrir a própria cova. Mas todos sabemos que os assassinatos são um crime de delito comum e constituem a face da história e da consciência do Povo, uma pesada hipoteca de sangue. Estes crimes, tal como o crime das execuções sumárias e dos massacres, abrem caminho à violência generalizada, à degradação dos valores que defendem a vida e a dignidade do próprio povo.

 

Maus tratos e castigos desumanos: 

 

O clima de violência engendra e autoriza mais violência. Os maus tratos, os castigos humilhantes, são actos de violência degradante e, como tais, não deveriam ter lugar em Moçambique. A Constituição do País, a própria cultura do nosso País, não deveriam dar lugar a práticas desumanas e primitivas, como são os maus tratos e os castigos humilhantes. Infelizmente, estas práticas estão presentes no dia a dia das populações. Há maus tratos, há medidas político-militares e administrativas que magoam e humilham o povo. Os castigos desumanos e os maus tratos são crimes à face da ética mais elementar. São graves atentados contra o melhor da consciência universal dos povos, tão clara e corajosamente manifestada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Contra a Tortura e Contra Tratamentos e Castigos cruéis, desumanos e degradantes, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Novembro de 1948. 

 

Hoje, não falta quem, por sua conta, mande aplicar o chicote ou determine o castigo que muito bem entender. O chamboco tornou-se frequente e irresponsável e, igualmente, o castigo pela aplicação da pena capital. Qualquer comandante a pode decretar, qualquer cidadão pode ser executado, não contando para nada a Legalidade ou as Instâncias competentes. Há mesmo quem diga que, em tempo de guerra, não há Tribunais. Há a lei da guerra, a lei da repressão e da liquidação de possíveis ou reais inimigos.

 

Torturas: 

 

As torturas são actos imorais e criminosos. São graves atentados contra os Direitos do Homem, contra a honra e a dignidade da Nação. Nada, absolutamente nada, justifica a tortura. Uma causa que pretendesse defender ou consolidar o seu direito e a sua justiça, um Regime que tentasse assegurar a sua continuidade ou estabilidade, usando tais medidas, estaria a provocar a sua própria degradação e ruína. A tortura, os maus tratos, o desprezo sistemático pelo homem, não consolidam o poder constituído, antes o corrompem e o põe em grave perigo. Tais abusos e crimes, também não concorrem para a unidade, a reconciliação e a paz nacional, antes as destroem e dificultam.

 

Aspirações do povo:

 

Continua.

 

Fonte: (O Jornal. 16-09-1986), Transcrição de Eusébio A. P. Gwembe

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