O pré-julgamento da acusação americana sobre o calote das “dívidas ocultas”, em que os moçambicanos Manuel Chang, Teófilo Nhangumele e António Carlos Rosário são arguidos (e três outros moçambicanos, chamados de “co-conspiradores”, receberam também subornos milionários da Privinvest) está de vento em popa.
Na sexta-feira passada, a defesa de Jean Boustani (Willkie Farr and Gallagher LLP) submeteu ao United States District Court For The Eastern District of New York uma “moção” para impedir que a magistrada portuguesa Helena Susano seja aceite como testemunha da acusação especializada na legislação anti-corrupção de Moçambique.
No passado dia 16 de Agosto, o Governo americano submeteu uma versão suplementar da acusação, com novos detalhes incriminatórios sobre os suspeitos (e também contra o Credit Suisse, a Privinvest e o seu chefe máximo, Iskandar Safa, ainda não acusados). Também manifestou a intenção de arrolar uma juíza portuguesa, de nome Helena Susano, como sua especialista em matéria de legislação anti-corrupção moçambicana.
Entre outras, o Governo americano acusa Boustani de conspiração para lavagem de dinheiro, numa acção que se consubstanciou numa “ofensa contra uma nação estrangeira, envolvendo o suborno de um funcionário público, em violação da lei moçambicana”. Ou seja, Boustani é acusado ter feito lavagem de dinheiro depois de subornar (corrupção activa para fim ilícito) um funcionário em Moçambique.
A acusação americana deve agora provar, em julgamento, que Boustani cometeu esse crime de suborno em Moçambique e, por isso, a 16 de agosto de 2019, o Departamento de Justiça informou da sua intenção de estabelecer os contornos da legislação moçambicana violada, através da magistrada Helena Susano, ex-juíza em Portugal, arrolada para, numa audiência de pré-julgamento, testemunhar sobre os aspectos relevantes das leis da República de Moçambique relacionadas à luta contra a corrupção e suborno de funcionários públicos.
Mas a defesa diz agora que Helana Susano não reúne requisitos porque ela “não pode praticar direito em Moçambique e não é uma estudiosa da Lei de Moçambique.
Até a presente data, o Governo ainda não solicitou essa audiência de pré-julgamento. No entanto, em 9 de Setembro de 2019, submeteu ao Tribunal um “dossier” que inclui várias páginas de legislação moçambicana relevante. A defesa reconhece que o Governo tem o ônus de provar a violação da legislação anti-corrupção de Moçambique, “mas a juíza Susano não pode ser envolvida nesse processo, pois não está qualificada para actuar como especialista na Lei de suborno de Moçambique”.
Para justificar a indicação de Helena Susano, o Governo americano alegou que a magistrada já "escreveu vários artigos e publicações, inclusive sobre o direito penal de Moçambique", e seu currículo demonstra uma competência considerável. A defesa diz que a “própria Susano se descreve como ‘coordenadora’ de um livro chamado ‘Direito Penal e Processual de Moçambique’, mas entendemos que este livro não contém nenhuma análise das leis de suborno de Moçambique, é apenas um guia para procedimentos legais básicos, como a apresentação de acusações e o processo de recurso. Por outro lado, o título de ‘coordenador’ mostra que Susano não é autora deste material”.
A defesa prossegue: “Existem várias escolas de direito em Moçambique, uma Ordem dos Advogados activa, com advogados capazes e que se envolvem com o direito penal moçambicano diariamente e um quadro de juristas aposentados. De fato, teria sido fácil para o Governo contratar um procurador atual ou um ex-procurador da Procuradoria Geral de Moçambique e, no entanto, o Governo optou por manter a juíza Susano. Qualquer que seja o motivo dessa decisão, a indicação pelo Governo de um ex-juiz europeu que nunca julgou, processou ou defendeu um caso em Moçambique, é um base insuficiente para se prosseguir com a acusação de que o Sr. Boustani se envolveu numa conspiração de lavagem de dinheiro para promover ou ocultar o produto de uma violação da legislação anticorrupção de Moçambique”.
E remata: “Pelas razões precedentes, este Tribunal deve recusar-se a designar a magistrada Susano como especialista em legislação anti-corrupção de Moçambique”.
Há cerca de três semanas, quando foi revelada a intenção do Governo americano de arrolar a magistrada portuguesa para testemunhar sobre legislação moçambicana, alguns advogados moçambicanos t0rceram o nariz. “Eventualmente, os americanos pensam que Moçambique é ainda colónia de Portugal”, comentou, para “Carta”, um renomado jurista local. (Marcelo Mosse)