O jurista sul-africano André Thomashausen considera que o acordo de paz em Moçambique é "uma simples rendição às autoridades" e que ignora a aplicação do Fundo da Paz, criado em 2014, para os combatentes desmobilizados.
"O acordo simplesmente propõe uma rendição dos efetivos da Renamo e do seu armamento às autoridades, a ser coordenado por certas comissões mistas, dentro de prazos que julgo irrealistas, igual ao que aconteceu em 2014", disse em entrevista o jurista e catedrático sul-africano.
André Thomashausen foi assessor do representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Moçambique, Aldo Ajello, durante a missão ONUMOZ entre fevereiro e dezembro de 1994, tendo sido da sua autoria as propostas da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) e o documento final que culminaram no Acordo Geral de Paz de Roma.
O acordo foi assinado pelos então Presidente moçambicano Joaquim Chissano, e da Renamo, Afonso Dhlakhama, em outubro de 1992, na capital italiana, sob a mediação da Comunidade de Santo Egídio, de Itália.
Thomashausen sublinhou que "não há nada de específico" no novo acordo de paz moçambicano sobre a reintegração económica e social dos antigos combatentes da Renamo, que na sua opinião "é responsabilidade fundamental numa sociedade que procura reabilitar a sua unidade nacional".
"Espanta que agora em 2019 as partes nem sequer se lembraram da criação por lei em 2014 do Fundo da Paz, com exatamente essa responsabilidade. Este Fundo que nunca chegou a ficar operacional, agora poderia ter sido valorizado e revitalizado", adiantou.
"Sobre esta matéria, o acordo de 06 de Agosto de facto só faz uma única referência, bastante vaga, na alínea E do parágrafo 1, nomeadamente: "Mobilizar recursos internos e externos para facilitar o processo de reintegração socioeconómica de elementos armados da Renamo desmobilizados ao abrigo do Memorando de Entendimento sobre Assuntos Militares", salientou o especialista em direito internacional.
"O descuido com a questão da responsabilidade pelo futuro dos desmobilizados é manifesto", afirmou. Nesse sentido, Andre Thomashausen considerou que para os combatentes que têm de entregar as suas armas, o acordo "infelizmente não oferece nada além de uma amnistia", acrescentando que o recente acordo "é um mau negócio" para a Renamo.
"A Renamo recebe em contrapartida a oportunidade de poder conquistar alguns possíveis cargos de governadores provinciais, que pela redação da nova legislação serão controlados sempre por um Comissário Especial do ministério do governo central. Um plano arriscado, considerando que nada deixa crer que as próximas eleições serão menos fraudulentas que as anteriores", afirmou.
O jurista recordou que "o Protocolo 4 do Acordo de 1992, sobre Assuntos Militares, além de prever a formação de umas Forças Militares novas, a serem recrutadas a partir da Frelimo e da Renamo, previa a responsabilidade conjunta no tocante à designação de grupos armados privados ou irregulares".
"Isso falta no Acordo de 2019, embora pudesse ter sido muito pertinente, visto que estão a operar exércitos privados a aterrorizar camponeses em Montepuez e em Cabo Delgado", salientou.
Na opinião de Thomashausen, o recente Acordo de Paz e Reconciliação assinado entre o governo de Moçambique e o partido Renamo, na oposição, "é um acordo público-privado" que "deve obedecer às regras do direito administrativo e da Constituição [da República de Moçambique]”.
Apesar das críticas, o analista considerou que o país conseguiu "cimentar as tréguas" e passar a viver com menos incerteza, o que poderá ajudar a conquistar a confiança de possíveis investidores nacionais e estrangeiros, embora sublinhe a falta de consenso no seio da oposição.
"[O acordo] É consensual ao nível das elites. Mas terá de conquistar as mentes e os ânimos nas bases da Renamo", referiu.
"Quando em 1992 o sonho político da Frelimo é derrotado pela imposição no Acordo de Paz da democracia multipartidária e dos princípios de um Estado de direito moderno, a Renamo consegue definir a sua identidade política como "Pai da Democracia". Mas a Frelimo agarrou-se ao poder e aos privilégios", recordou.
"Hoje a exclusão económica, social e política dos moçambicanos que não pertencem à "família" da Frelimo, é o que continua a fomentar a violência [em Moçambique]", salientou André Thomashausen.(Lusa)