A estatística não mente, mas em Moçambique há quem a use para manipular a distribuição regional da população em idade de votar nas eleições gerais (presidenciais e legislativas), provinciais e autárquicas. No recenseamento eleitoral que acaba de ser realizado, o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) veio a público declarar que 80% da população da província de Gaza tem 18 e mais anos de idade (18+). Como explica este fenómeno? Simplesmente não explica. Do ponto de vista demográfico, social e estatístico, nada pode explicar que Gaza apareça subitamente com apenas 20% de adolescentes e crianças menores de 18. Os dados do Censo 2017 revelam uma tendência de redução, em vez de aumento, da idade mediana da população moçambicana, estimada em 16,6 anos em 2007.
Os últimos três censos populacionais apresentaram proporções médias nacionais da população de 18 e mais anos, variando entre 48% em 1997, 49% em 2007 e 45% em 2017). Esta tendência decrescente é consistente com a anterior, sobre a diminuição da idade mediana nacional, por causa do acelerado crescimento de nascimentos e crianças em idade não activa para votar.
De igual modo, se compararmos os dados provinciais, em momento algum Gaza aparece com percentagens tão elevadas como declara o STAE. Em 1997, a proporção de pessoas 18 e mais anos na Zambézia foi 48% e em Nampula 49%, precisamente idênticas à de Gaza (49). A recente contestação do Centro de Integridade Pública (CIP) dos alegados 80% de pessoas 18+ em Gaza justifica-se, mas não pelo motivo que explora. Seria surpreendente se o CIP ou qualquer investigador encontrassem algum estudo a mostrar que os pais da província de Gaza têm tido “... poucos filhos em relação aos da província da Zambézia”.
Não tem sentido procurar em qualquer fenómeno demográfico ou social resposta para uma percentagem que o STAE não justifica, nem se esforça para esclarecer. Pelo que parece, o STAE chegou aos alegados 80% de pessoas 18+, dividindo a estimativa que fez da população de Gaza neste grupo etário em 2019 (1,114,337 pessoas) pelo total da população provincial (1,422,460 pessoas) em 2017.
Estranha divisão, de um valor para 2019 por outro de 2017. Se não foi esse o cálculo, ao STAE se deve esta e outras dúvidas, visto que não disponibiliza os pressupostos usados nas estimativas que divulga. Este texto visa fundamentar e detalhar a revelação que recentemente fiz, sobre o número misterioso na população de Gaza. Uma revelação que surgiu por mero acaso, em resposta à solicitação da ADS Eleições 2019, para que interpretasse a declaração do STAE sobre os alegados 80% em Gaza e 40% na Zambézia (Francisco, 2019).
O assunto motivou-me a rever as projecções da população do Instituto Nacional de Estatística (INE), a fim de melhor apreciar as estimativas do STAE. O resultado desta breve pesquisa evidencia a subtileza e dimensão de possíveis malabarismos estatísticos, muito mais graves do que os analistas têm percebido, ao investigarem os dados contraditórios dos órgãos de administração eleitoral e em particular do STAE.
Contexto das Estimativas Eleitorais
A contestação dos recenseamentos e cadernos eleitorais que dele resultam tem sido recorrente, ao longo da década passada, sendo vista por certos analistas como enfraquecedor do processo eleitoral (Brito, 2011). Se os fundamentos da referida contestação podem ser diversos, um dos possíveis motivos tem sido surpreendentemente descorado. De uma maneira geral, os analistas têm depositado confiança nas estatísticas oficiais, nomeadamente os dados dos censos populacionais do INE usados como referência de comparação com os recenseamentos eleitorais. Na falta de melhor fonte, não é por causa das taxas de omissão dos censos do INE, em geral relativamente baixas, que se justifica questionar a sua cobertura e abrangência.
Não dispondo de registos civis e de um sistema de estatísticas vitais confiáveis, não temos alternativa. Por outro lado, o INE é das poucas entidades moçambicanas que elaboram dados estatísticos nacionais, com capacidade logística e apoio financeiro suficiente, para reunir competências técnicas adequadas, a fim de elaborar projecções da população, a nível global e desagregado por províncias, distritos e localidades. Neste contexto, não havendo evidências gritantes e motivos comprovados para duvidar da qualidade das estatísticas do INE, a sua base de dados tem servido de referência confiável para estimativas com vários fins, como é o caso dos dados eleitorais.
O Pecado Original do INE
Apesar da boa reputação do INE, imaginemos que os seus dados escondem um misterioso e grave erro, resultante de um descuido sem más intenções ou cometido propositadamente por motivos que dificilmente serão confessados? Antes de apontar o erro misterioso, para benefício do leitor que não está familiarizado com as projecções da população do INE, vale a pena esclarecer o seguinte: desde o Censo de 1997, o INE tem disponibilizado dois tipos de projecções anuais da população (nacional e provinciais) que em princípio são ou devem ser consistentes entre si.
Com base no Censo 1997, publicou projecções da população total (1997-2020) e projecções provinciais (1997-2010) (INE, 1999a, 1999b). Como previsível, o total da população moçambicana em 1997 é igual ao agregado dos totais provinciais (16,075,708 pessoas). Surpreendentemente, as projecções baseadas no Censo de 2007 não mostram a mesma consistência (INE, 2011, 2010).
Ao comparar o total nacional da agregação dos totais provinciais (ver INE, 2011) com o total das projecções anuais (urbana e rural) da publicação de 2010 encontramos uma diferença de 986,197 pessoas. Nesta última, com projecções globais para o período 2007-2040, a população de Moçambique em 2007 é 20,632,434 habitantes. Porém, na publicação de 2011, o Quadro 1 da população projectada por província e sexo segundo idade, apresenta um total de 21,618,631 habitantes em 2007. E onde se encontra este diferencial numérico? Única e exclusivamente na província de Gaza.
O total da população em 2007 de Gaza (usado pelo STAE) é 1,236,284 pessoas, mas o total no referido Quadro 1 é 2,222,481 pessoas. Todas as outras províncias, sem excepção, possuem valores coincidentes nas duas publicações. A partir dos 2,2 milhões em Gaza, que incluem os 986 mil fantasmas a mais, a população 18+ que resultou para 2007 foi 1,225,109 pessoas. Comparando este efectivo com a estimativa da população de Gaza usada oficialmente (1,236,284), a população 18+ em 2007 representaria 99% da população desta província. Um valor demasiado escandaloso, para lhe conferir alguma credibilidade. Até prova em contrário, as 986 mil pessoas a mais em Gaza fornecem a chave para entender a origem da alegação do STAE quanto aos 80% de pessoas 18+.
Muito provavelmente, os estatísticos do STAE optaram pelos 80% na esperança que não causasse surpresa e reacção. Por isso, tem sentido suspeitar que em vez de corrigir um erro aberrante, optou-se por uma percentagem aparentemente mais modesta, baseada na divisão estranha, acima referida.
À semelhança da diferença na população total de Moçambique, idêntica discrepância pode ser encontrada entre a projecção global e as projecções desagregadas por província da população 18+. Na publicação do INE de 2010, o total da população 18+ é 9,890,193 pessoas, mas nas projecções provinciais da publicação de 2011, o total é 10,505,726 pessoas. Neste caso, a diferença reduz para 615,533 pessoas, porque apenas abrange o grupo etário 18+. Impacto dos 986 mil Fantasmas Qual é a razão do número fantasma e misterioso que aparece inesperadamente em Gaza? De imediato, a única explicação sensata e justificável é ter sido introduzido, inadvertida ou intencionalmente.
Um erro, seja ele intencional ou não, mas um erro muito grave. Como escapou à atenção dos analistas, durante tanto tempo? Talvez porque a nível oficial e do consumo público, a estimativa da população total moçambicana em 2007, oficialmente referida é 20,6 milhões, em vez dos 21,7 milhões. Do mesmo modo, sempre que se menciona a população de Gaza, o valor usado para 2007 é 1,3 milhões e não os 2,2 milhões que incluem os 986 mil fantasmas a mais em Gaza. Mas convém não ser ingénuo. É improvável que o STAE não tenha reparado que algo de errado existia.
Não é preciso muita atenção para perceber que um número fantasma estava a inflacionar a população de Gaza, ao ponto de fazer com que o total da população 18+ ficasse idêntico (99%) à população total da província. Para se obter um efectivo de 1,2 milhões em 2007 seria preciso que a população de Gaza tivesse crescido entre 1997 e 2007 a uma taxa média anual de 7,1%. É improvável que alguém no STAE, com o mínimo de sensibilidade estatística, não tenha reparado na inconsistência numérica aqui revelada. Uma vez desvendado o segredo dos alegados 80% de pessoas 18+ anos em Gaza, fica claro que o mistério é muito mais simples e fácil de explicar do que parecia. Todavia, enquanto esse fantasma numérico não for removido das estatísticas que estamos a usar ele poderá continuar a deturpar nossas análises, opções e acções políticas e operacionais. (...)
Conclusão e Comentário Final
A revelação apresentada e fundamentada neste texto pode motivar diversas interpretações: técnicas, políticas e morais ou éticas. Não há espaço para as discutir aqui, nem era esse o propósito desta reflexão. Também não procurarei especular ou antecipar, como fez o CIP, se Filipe Nyusi vai ou não ganhar mais 370 mil votos.
Esta ou outras hipóteses não irão depender apenas da forte base manipulativa proporcionada pelas estatísticas do INE ao STAE. Não menos importante, a maior ou menor capacidade de o candidato presidencial da Frelimo captar votos vai depender de outras formas de manipulação, a vários níveis, como seja, na contagem, verificação, controle e aprovação dos resultados finais. Sobre os dados estatísticos, limito-me a adiantar que o exemplo aqui apresentado ilustra bem como um “pequeno” erro pode provocar inúmeros equívocos e especulações.
Em devido tempo veremos como é que o STAE, habituado que está a provocar dúvidas e desconfianças, por motivos alheios à qualidade dos dados estatísticos, irá lidar com as implicações da revelação do segredo dos alegados 80% em Gaza. Quanto ao INE, infelizmente, também não sai nada bem neste retrato. Se bem que o grave erro aqui demonstrado não seja suficiente para pôr em causa a boa reputação que o INE conquistou, em nada o beneficia a situação ridícula em se colocou.
O mínimo que espero que faça, para se redimir do erro, é que o corrija, porque os dados da evolução estatística continuarão a fazer parte das análises dos utilizadores dos produtos do INE. E depois deste precedente, vamos esperar pelas novas projecções nacionais e provinciais com base no Censo 2017. Considerando a experiência eleitoral de Moçambique, no passado, cada vez mais o importante não é quem vota, mas quem conta e controla o resultado final. Não me surpreenderei se Filipe Nyusi conseguir o que os militantes da Frelimo mais ambicionam a todo o custo: uma vitória retumbante! Principalmente em Gaza, não tenhamos dúvidas; tudo está encaminhado para que em Outubro próximo, Nyusi e Frelimo consigam essa vitória retumbante.
*Artigo extraído da publicação IDEIAS, do IESE, da autoria do Prof. António Francisco. O título é da responsabilidade da “Carta”