Com o cair do pano da sessão extraordinária do Comité Central da Frelimo, assistiu-se ao adeus de uma geração politica que não soube, ao longo da segunda República, pensar diferente, erigir um edifício teórico capaz de se adequar aos tempos hodiernos, pautar-se por uma conduta que não fosse o locupletamento, à venalidade.
Vai-se uma geração que teve a oportunidade de redirecionar este país a uma administração, a um governo, assente nos valores fundacionais da modernidade: a liberdade, a justiça, a igualdade, a democracia, o progresso. Falo, a título de exemplo, da liberdade e da justiça, como dois valores que deviam e devem estar em constante sintonia, tendo em conta que no período monopartidário, no chamado socialismo, a justiça (ainda que discutível) era o emblema, e, no liberalismo, na segunda República, a liberdade assume um valor primacial.
Que discursos assistimos, nestes últimos 39 anos, em torno desta dualidade, e, consequentemente, o necessário equilíbrio à sustentação da democracia assente nos três poderes? Nada!A geração que ora se despede, foi incapaz de erigir um discurso alternativo ao da geração da gesta nacionalista.
Quando a História assistiu o desmoronamento do Bloco do Leste esta geração optou, tal como a precedente, por adir (numa relação incestuosa) a economia à política, tornando o Estado numa máquina sem rosto, num instrumento sem sangue e músculos, num país miserável no concerto das nações. A promiscuidade, a licenciosidade entre o sector público e privado tornou-se não só insustentável, como ignominiosa.
Ao nível do poder legislativo, assiste-se ainda a vergonhosa imagem de silêncio dos dirigentes descartados do poder executivo, comodamente sentados na bancada da unanimidade e dependência. É deprimente, para um cidadão minimamente informado, assistir, no pequeno ecrã, ao angustiante e penoso silêncio dos antigos dirigentes.
Ficam meses e anos a aguardar, em silêncio, por uma chamada para um cargo visível e rentável, dissipando na espera os crescentes cabelos brancos com cortes rasos que tanto rendem os cabeleireiros. O poder legislativo transformou-se, para o partido no poder, num campo privilegiado de reservistas do poder executivo.
É, numa crua e honesta frase, o rebotalho do poder executivo. É isto que se esperava desses outrora jovens que abraçaram a política como um acto de elevada cidadania?
É isto que se esperava destes militantes e ex-dirigentes que só emergem do silêncio em épocas eleitorais, à procura, em campanhas estultas e patéticas, do posto de Presidente da República?
É óbvio que não. Esta geração, a que o Daniel Gabriel, ex-ministro, intitulou, num livro recente, de geração da transição, tornou-se uma decepção porque, como aludi, não executou transição nenhuma. O que mais fez foi receber de bandeja a queda do Bloco do Leste e, timidamente, ensaiar discursos consentâneos com os tempos da mudança.
Enfeudados que estão à geração da independência, cabe agora a estes políticos em reforma definitiva, dar um último sopro de dignidade, afirmando, em plenos pulmões - ou o que lhes resta de fôlego -, que não venceram os desafios da sua geração porque tributários à geração da independência, uma geração que nunca soube assumir com dignidade os seus erros, limitando-se, no presente político, a fazer a lavagem da sua desbotada imagem política.
Há, como em tudo, honrosas excepções que importa registar. Avanço duas, a titulo de exemplo: a primeira – o Mateus Kathupa. Foi, entre dois congressos, indicado, juntamente com o então jovem e hoje desaparecido, Aguiar Mazula, para a Comissão Política. Eram os mais jovens no órgão. No congresso seguinte foram retirados, sem explicação, do pódio da hierarquia partidária.
O Aguiar Mazula (o primeiro civil a assumir a pasta de ministro da defesa) remeteu-se ao anonimato. Kathupa ainda ensaiou, em plena febre do neoliberalismo, como ministro da cultura, o conceito de bantufonia, algo como a procura de uma dignidade africana que tanto escasseava, e ainda rareia, neste país. Ninguém o ligou. Interesses materiais imperavam no xadrez nacional.
Hoje o Mateus Kathupa está acantonado nas frias terras de Putin, como embaixador. Um fim inglório para um indivíduo, jovem à época, por sinal um reconhecido académico, que esperava outro futuro político. A segunda: o Teodato Hunguana. Este já vinha exercendo cargos de relevo na primeira República. Na segunda, principalmente depois dos acordos de paz de que fez parte como negociador, Teodato foi emergindo com posições públicas consentâneas com os tempos modernos. Os seus camaradas, incapazes de o acompanharem em debates, dentro e fora do muro partidário, condenaram-no ao ostracismo. Hoje está aí, jogando o xadrez da solidão. Estes e outros singulares exemplos que o texto não pode comportar, são a amostra da excepção que a regra acomoda.
Mas a regra, convém ressaltar, foi decepcionante à geração que devia erguer com empenho e orgulho o ceptro da liberdade, da justiça, da equidade, da cultura, da ciência, da tecnologia, do desenvolvimento, do progresso, e dar um rumo digno a este país, à beira de completar 50 anos de independência, na miséria. A pergunta que ora urge colocar, é o lugar da chamada geração 8 de Março. Onde colocá-la?
No meu entender, esta geração, a que atrevidamente chamo, roubando o termo ao xadrez, de peões, nunca, salvo algumas desonrosas exceções, se atirou à política activa. Ao tempo, 1977, eles não escolheram o seu destino, foram, simplesmente, direcionados às várias tarefas da reconstrução e construção de um tempo chamado novo. E resignaram-se a isso, deixando aos jovens políticos de então a responsabilidade de os conduzir politicamente.
De realçar, a tal excepção, que houve um grupo que foi indicado (o que foi patético) a ir estudar Politica na extinta República Democrática Alemã. Não vingaram. Os que internamente se atreveram a enveredar pela política, limitaram-se a enfileirar-se na falsamente designada geração da transição, uma geração sem grande cometimento político como temos ressaltado. Nada aconteceu a eles, senão, no sentido mais negativista, o chamado enriquecimento ilícito e muito mais.
Quanto aos peões, os verdadeiros peões, tenho-os visto por aí, como referi em crónica já publicada, nos seus sessenta e tal anos, em estaleiros e casas de ferragens, à procura de material de construção para a casa da reforma. A História tem dessas … Agora cabe à geração pós-independência apontar este país para outros rumos, não cometendo os mesmos erros que as gerações precedentes. A pergunta a colocar é simples: será que esta geração está imune dos vícios que atolaram nos pântanos da indignidade das gerações anteriores? A ver vamos!.
Ungulani Ba Ka Khosa Maputo, Maio de 2024
*Consagrado escritor mocambicano