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segunda-feira, 13 maio 2024 03:18

ICG: Que Futuro para a Intervenção Militar em Moçambique?

A Organização Internacional Crisis Group (ICG), com sede em Bruxelas na Bélgica, alerta que os acordos militares que estão a ser implementados pelo governo de Maputo parecem ter como objectivo compensar o fim do mandato da SADC, mas reina a incerteza quanto ao quadro sob o qual as tropas estrangeiras irão operar.

 

Para a ICG, a primeira tarefa ao traçar o futuro da intervenção em Cabo Delgado é clarificar o papel do Ruanda. A sua implantação deve estar em conformidade. A missão militar da África Austral em Moçambique está prevista terminar em Julho, mas algumas tropas permanecerão, uma vez que os países vizinhos temem que a insurgência jihadista em Cabo Delgado esteja a recuperar.

 

A organização não-governamental que promove a prevenção e a resolução de conflitos avança que a relação de trabalho com as forças moçambicanas em Cabo Delgado representou outro desafio. Mal treinados e mal pagos, os moçambicanos esperavam que as tropas do Ruanda e da África Austral assumissem a liderança no confronto com os insurgentes.

 

Neste artigo a que “Carta” teve acesso, as especialistas do Crisis Group, Meron Elias e Pauline Bax, explicam as preocupações.

 

“As questões giram em torno do futuro da intervenção militar estrangeira em Cabo Delgado, a província mais a norte de Moçambique, que tem sido agitada por uma insurgência ligada ao Estado Islâmico. Em 2021, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), composta por dezasseis membros, enviou uma missão, eventualmente, com 2.200 homens para ajudar Maputo a combater os insurgentes de Ahlu Sunna wal-Jama'a, também conhecido como Estado Islâmico de Moçambique (ISM).

 

Ao longo de três anos, as forças da SADC ajudaram o exército de Moçambique a recapturar territórios outrora controlados por militantes e a estabilizar Cabo Delgado. Mas a insurgência está longe de estar erradicada. A campanha militar não conseguiu desferir um golpe decisivo e um recente aumento nos ataques nas zonas costeiras da província sugere que os combatentes estão a remobilizar-se.

 

Em Janeiro, a SADC disse que retiraria a força quando o seu actual mandato expirasse, em 15 de Julho. O Botswana e o Lesoto retiraram-se em Abril, enquanto Angola e Namíbia estão agora a fazer as malas. A África do Sul, com 1.495 soldados representa dois terços da missão, despediu-se de Cabo Delgado, mas num movimento surpreendente, Pretória anunciou no dia 23 de Abril que manterá as suas forças de defesa em Cabo Delgado até ao fim do ano, sob os auspícios da SADC, mas não como parte da missão de combate aos militantes. Deixará para trás 200 outros funcionários até Março de 2025 para combater “actividades marítimas ilegais” ao longo da costa moçambicana. Separadamente, em Abril, o Ruanda disse que planeava adicionar tropas ao seu destacamento de 2.500 homens, nos termos de um acordo bilateral secreto com Maputo.

 

Fontes disseram ao Crisis Group que a Tanzânia também quer manter entre 400 e 500 soldados em Moçambique, principalmente para evitar que os combatentes atravessem a fronteira de 860 quilómetros entre os dois países. Estes acordos militares que estão a ser implementados parecem ter como objectivo compensar o fim da missão da SADC, mas reina a incerteza quanto ao quadro sob o qual as tropas estrangeiras irão operar.

 

Autoridades sul-africanas dizem que Pretória está apenas a prolongar o período de serviço dos seus soldados para organizar uma retirada ordenada no fim do ano. As tropas tanzanianas podem permanecer sob um acordo bilateral com Maputo ou trabalhar sob a bandeira da SADC com a África do Sul até pelo menos Dezembro. De qualquer forma, os observadores temem que a retirada das tropas da África Austral seja demasiada cedo.

 

Porque é que a SADC interveio em Moçambique e como se saiu a sua campanha?

 

Inspirado pelos ensinamentos dos clérigos salafistas quenianos e tanzanianos, e alimentado por queixas locais, incluindo o subdesenvolvimento, a competição por recursos escassos e a má distribuição de riqueza, o ISM começou a realizar ataques em Cabo Delgado em 2017.

 

Os insurgentes, então conhecidos localmente como al-Shabab (embora distinto da insurgência somali com o mesmo nome), subjugou rapidamente as forças de segurança locais e ocupou aldeias e pequenas cidades.

 

A partir de Junho de 2019, o comando central do Estado Islâmico reivindicou a autoria dos ataques, indicando que a insurgência moçambicana está, em certa medida, interligada com redes jihadistas transnacionais, com as quais partilha princípios ideológicos e tácticas de recrutamento.

 

Maputo contratou o Grupo Wagner, ligado ao Kremlin, para esmagar os militantes, mas os mercenários russos mal preparados partiram depois de sofrerem pesadas perdas. Em 2020, o ISM capturou a cidade portuária de Mocímboa da Praia.

 

No ano seguinte, os insurgentes realizaram um ataque devastador à cidade de Palma que forçou a gigante francesa dos hidrocarbonetos TotalEnergies a interromper os trabalhos num projecto próximo de gás liquefeito de 20 mil milhões de dólares. No seu auge, no início de 2021, a violência deslocou mais de um milhão de pessoas em Cabo Delgado.

 

Autoridades de segurança dizem que o grupo tem ligações com células jihadistas ao longo da costa swahili e na República Democrática do Congo (RDC), nomeadamente, com as Forças Democráticas Aliadas, um grupo rebelde que surgiu no Uganda no início da década de 1990 e mais tarde ressurgiu no RDC como afiliada do Estado Islâmico.

 

A insurgência moçambicana está, até certo ponto, interligada com redes jihadistas transnacionais. Após o ataque a Palma, que matou centenas de locais e empreiteiros estrangeiros, Maputo concordou com alguma relutância em deixar entrar tropas da África Austral para reforçar o seu exército fraco e indisciplinado. O resultado foi a Missão Militar da SADC em Moçambique (SAMIM).

 

A sua chegada em 2021 coincidiu mais ou menos com o envio separado de soldados ruandeses, que protegeram os arredores do projecto de gás da TotalEnergies e recapturaram Mocímboa da Praia, que ainda hoje patrulham. Estas forças externas espalharam-se mais tarde para norte e oeste para desmantelar as bases dos insurgentes e expulsar os combatentes dos seus redutos nos distritos de Quissanga, Muidumbe e Mueda.

 

As tropas da SADC e do Ruanda têm cada uma as suas próprias áreas de operação: o Ruanda é o principal responsável pelos distritos costeiros do nordeste, enquanto as tropas da África Austral estão estacionadas no sudeste e no interior ocidental. Mas o Ruanda também tem uma guarnição no distrito interior de Ancuabe, onde empresas estrangeiras extraem grafite de alta qualidade, um mineral cobiçado utilizado em baterias de automóveis eléctricos.

 

Em 2023, a campanha combinada tinha registado progressos consideráveis, reduzindo o número de insurgentes de cerca de 3.000 para apenas 300, de acordo com diplomatas regionais e analistas de segurança em Moçambique.

 

As tropas estrangeiras também recuperaram o controlo de áreas suficientes para que mais de meio milhão de pessoas regressassem a casa. Dois líderes militantes seniores, um moçambicano e outro tanzaniano, terão desaparecido de cena ao longo de 2023.

 

Entretanto, as autoridades moçambicanas restauraram serviços públicos limitados em algumas áreas que os insurgentes controlavam anteriormente.

 

Porque é que a missão da SADC irá partir?

 

Uma das razões é que a missão do bloco carecia de financiamento. Tem dependido fortemente das contribuições dos Estados-membros, mas regista permanentemente um défice.

 

A África do Sul foi quem deu mais, aproximadamente 45 milhões de dólares por ano. Uma contribuição de 15 milhões de euros do Mecanismo Europeu para a Paz para equipamento não letal, embora bem-vinda, foi insuficiente para sustentar operações terrestres em grande escala ou projetos de consolidação da paz.

 

A União Africana, por seu lado, forneceu equipamento, mas apenas desembolsou cerca de 2 milhões de dólares através do Mecanismo de Apoio à Paz em África para a missão. Entretanto, a SADC está a lançar uma ambiciosa operação militar no leste da RDC, destinada a substituir parcialmente a missão da ONU. [Os objectivos e o financiamento disponível para esta missão permanecem obscuros.]

 

A ministra dos Negócios Estrangeiros, Verónica Macamo, disse no fim de Março que a missão estava de partida devido a “problemas financeiros” gerados pela incapacidade dos contribuintes de tropas em angariar dinheiro, acrescentando que o leste da RDC era agora a prioridade do bloco.

 

Para além do défice financeiro, a SAMIM enfrenta várias outras dificuldades. Apesar dos primeiros sucessos operacionais, as suas tropas têm lutado para reprimir pequenos grupos de militantes espalhados por terrenos acidentados.

 

Os números da missão são insuficientes para cobrir a sua grande área de responsabilidade, que dispõe apenas de algumas estradas decentes. As forças da África do Sul quase não têm helicópteros em funcionamento, o que as torna incapazes de conduzir operações aéreas.

 

A falta de equipamento fiável e de peças sobressalentes minou o moral, com as tropas a preferirem concentrar-se nas suas bases a caçar unidades de militantes cada vez mais móveis. Também houve relatos sobre indisciplina.

 

No fim de 2022, um vídeo de soldados sul-africanos a atirarem corpos para o lixo em chamas levantou preocupações sobre possíveis crimes de guerra e levou a SADC a anunciar uma investigação, mas até agora nenhum resultado foi publicado.

 

As forças da África do Sul quase não têm helicópteros em funcionamento, o que as torna incapazes de conduzir operações aéreas. A relação de trabalho com as forças moçambicanas em Cabo Delgado representou outro desafio. Mal treinados e mal pagos, os moçambicanos esperavam que as tropas do Ruanda e da África Austral assumissem a liderança no confronto com os insurgentes.

 

Fontes disseram ao Crisis Group que os responsáveis da SADC se queixaram amargamente da falta de comunicação e cooperação do exército de Moçambique, o que, segundo eles, tornou a partilha de informações praticamente impossível.

 

A SAMIM encontrou obstáculos semelhantes nas suas actividades não militares. Em Setembro de 2022, a missão disse que também empreenderia esforços de consolidação da paz, por exemplo, construindo instalações para mulheres que sofreram violência sexual, mas o trabalho que realizou neste sentido foi prejudicado pela má logística e pela falta de cooperação das autoridades locais.

 

Quando questionado sobre estes atrasos, um membro do departamento civil da SAMIM respondeu simplesmente: “O que podemos fazer quando o país anfitrião não quer a nossa ajuda?”

 

O que acontecerá quando as tropas estrangeiras partirem?

 

Embora as tropas que permanecerem após a retirada do SAMIM criem uma barreira, a eventual saída da força multilateral deixará um vazio de segurança que a insurgência provavelmente vai aproveitar. Nos últimos quatro meses, bandos de militantes deslocaram-se para o sul, em direcção à província de Nampula, tendo como alvo as zonas costeiras do continente, bem como os pescadores do arquipélago das Quirimbas.

 

Os seus ataques vão desde emboscadas de patrulhas militares e decapitações de civis até roubos e saques. Em alguns casos, crianças foram raptadas, provavelmente para serem recrutadas à força, uma das inúmeras indicações de que a insurgência está a tentar reforçar as suas fileiras.

 

A província de Nampula também registou alguns ataques nas últimas semanas. Relatórios provenientes de cidades ocupadas como Mucojo, no distrito de Macomia, em Cabo Delgado, sinalizam que os insurgentes estão a tentar impor uma versão estrita da lei islâmica aos residentes daquela região.

 

No geral, a Organização Internacional para as Migrações estima que a violência deslocou quase 113 mil pessoas desde Dezembro, representando a segunda maior onda de deslocamentos em Cabo Delgado desde o início da crise em 2017.

 

Entretanto, apesar das promessas, Maputo fez poucos progressos no fortalecimento do seu próprio exército. Os militares estrangeiros estabeleceram a calma em Mucujo, antes de entregar a região às forças moçambicanas, que alegadamente fugiram sem lutar quando os insurgentes regressaram.

 

O exército moçambicano também continua a debater-se com a escassez de material e com dificuldades no fornecimento de unidades deslocadas para a frente. O governo solicitou mais equipamento militar à União Europeia, mas Bruxelas está relutante em concordar porque alguns dos fornecimentos que já doou estão actualmente num armazém em Maputo.

 

Desde 2022, os EUA e a UE treinaram forças de reacção rápida (QRF) do exército, da marinha e da força aérea. As QRF deverão assumir um papel proeminente no combate aos insurgentes a partir de Dezembro, mas o mau historial do exército em termos de planeamento e logística significa que estas forças especiais poderão sofrer com a falta de apoio e abastecimentos críticos quando se tornarem operacionais.

 

Mesmo assim, o governo de Maputo parece bastante satisfeito com a situação em Cabo Delgado, estando mais confiante do que os países vizinhos de que pode evitar um ressurgimento jihadista com a ajuda do Ruanda e, em menor medida, do policiamento comunitário.

 

A decisão de manter as tropas ruandesas em Palma e Mocímboa da Praia, comercialmente vibrantes, bem como perto das minas de grafite em Ancuabe, sugere que o governo fez da salvaguarda das suas fontes de receitas uma prioridade. Ao longo do ano passado, a TotalEnergies tem ponderado se deveria retomar o projecto de gás.

 

Os primeiros relatórios e imagens de satélite indicam que o trabalho foi retomado provisoriamente. Mas a avaliação da própria empresa sobre a situação de segurança na província é sombria. Sabe que o projecto de gás poderá voltar a tornar-se um alvo para a insurreição.

 

Além disso, com as eleições gerais previstas para Outubro, não é claro quanta atenção as autoridades de Maputo dispensarão a um conflito latente a mais de 2.000 quilómetros ao norte. Muito depende agora do Ruanda, que afirma poder ocupar o lugar da SAMIM, treinando soldados moçambicanos e destacando-os para áreas anteriormente protegidas pelas tropas da África Austral.

 

O Ruanda parece contar com novos fundos da UE para continuar a intervenção. Anteriormente, recebeu uma contribuição de 20 milhões de euros do Mecanismo Europeu para a Paz para este fim, que está em fase de renovação, mas os Estados membros da UE estão em desacordo entre si sobre o pedido, dado o apoio de Kigali ao movimento rebelde M23 no leste da RDC.

 

A missão do Ruanda em Moçambique suscitou poucas críticas, uma vez que as tropas ruandesas são bem disciplinadas e têm um bom relacionamento com os civis. No entanto, as autoridades regionais continuam preocupadas com o facto de Kigali estar a intervir em Cabo Delgado não só para estabilizar a província, mas também para promover os seus próprios interesses económicos.

 

O Ruanda, através da Crystal Ventures, o braço de investimento do partido no poder, está envolvido numa série de negócios em Moçambique, incluindo mineração, construção e segurança privada. Outros contribuintes de tropas estão reflectindo sobre os seus próximos movimentos. As autoridades tanzanianas dizem que querem que os seus soldados também fiquem, independentemente do custo.

 

Os jovens tanzanianos radicalizados foram alguns dos instigadores da insurgência e as autoridades nacionais não os querem de volta. O país também está determinado a proteger as suas próprias instalações de gás perto de Mtwara, a apenas 20 km da fronteira com Moçambique, que abastecem de electricidade a capital comercial, Dar es Salaam. No entanto, ainda não está claro em que quadro a Tanzânia continuaria o seu destacamento.

 

Que passos Moçambique poderá tomar a seguir?

 

A primeira tarefa ao traçar o futuro da intervenção em Cabo Delgado é clarificar o papel do Ruanda. A sua implantação deve estar em conformidade com o objectivo geral de reprimir a insurreição em toda a província, em vez de apenas proteger os locais de gás e de mineração.

 

Ao contrário do convite à SADC para intervir, o acordo entre Kigali e Maputo permanece opaco, sendo os seus termos conhecidos apenas pelo Presidente do Ruanda, Paul Kagame, e pelo seu homólogo Filipe Nyusi.

 

Com a expectativa de que Nyusi deixe o cargo em Outubro, após dois mandatos, proporcionar mais transparência sobre o acordo através da aprovação parlamentar em Maputo poderia fortalecer a sustentabilidade do destacamento no Ruanda. Também irá atenuar as preocupações de que o Ruanda esteja a aproveitar a insurgência para promover os seus próprios interesses económicos no norte do país.

 

Em segundo lugar, Maputo deveria levar mais a sério a reforma do exército se quiser que as suas forças de segurança eventualmente substituam o Ruanda. Os QRF treinados pelos EUA e pela UE provavelmente desempenharão um papel maior em Cabo Delgado num futuro próximo, mas ainda precisarão de apoio de forças terrestres regulares.

 

As autoridades devem reservar fundos para garantir que os seus soldados no norte sejam adequadamente remunerados e dotados de equipamento básico, como capacetes, botas e veículos funcionais, que por vezes têm faltado.

 

Os muitos parceiros estrangeiros de Moçambique devem continuar a fornecer formação e financiamento de forma coordenada e esforçar-se para evitar mais atrasos na entrega de equipamento militar. A longo prazo, Maputo terá de abordar as causas do conflito, incluindo os problemas sócio-económicos persistentes da província, que o Crisis Group discutiu noutro local.

 

Além de depender da ajuda humanitária imediata das agências de ajuda, Moçambique deve intensificar a prestação de serviços básicos em Cabo Delgado e iniciar medidas genuínas de consolidação da paz para lidar com as difíceis condições pós-conflito nas áreas que recuperou aos insurgentes. (Crisis Group)

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