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domingo, 21 abril 2019 10:17

Samito Machel: Nyusi “violou de forma grosseira” os estatutos da Frelimo

A defesa de Samito Machel, face a uma Nota de Acusação que recomenda sua expulsão do partido Frelimo, é mais do que uma defesa: é um libelo acusatório. Viperino. Incisivo. Em boas partes do seu argumento, ele desfere golpes de forma ininterrupta. O principal visado é o Presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, a quem acusa de estar a transformar o partido num grupo que depende da vontade de uns poucos, numa formação anti-democrática descambando para a tirania.

 

E desafia o Comité de Verificação do Comité Central (CVCC) a abrir um inquérito para levantar as evidências que mostram como Nyusi manipula o partido para implantar um regime de pensamento único, autocrático.

 

J’accuse! Nas vésperas de uma sessão Comité Central (a realizar-se no início de Maio) ele ataca tudo e todos e muda os termos da equação: o acusado deve ser o presidente da Frelimo, Nyusi, e não ele.

 

A defesa de Samito Machel foi entregue ao Secretariado do Comité Central no passado dia 26 de Março, em resposta a uma Nota de Acusação que acusa o filho do primeiro Presidente de Moçambique de ter violado os deveres essenciais de membro da Frelimo, ao se ter apresentado como cabeça-de-lista da AJUDEM (uma organização cívica juvenil) nas recentes eleições municipais em Maputo.

 

(NE: Samora Machel tencionava concorrer pelo seu partido, e para o efeito contava com apoio de todos os comités distritais; nas primárias internas, o seu nome foi afastado da corrida, e a Frelimo optou por Eneas Comiche mediante indicação expressa da Comissão Política; em vez de se conformar, Samito juntou-se à AJUDEM, desafiando a Frelimo, mas a lista do grupo foi chumbada pela Comissão Nacional de Eleições por votos maioritários dos partidos políticos representados no órgão eleitoral).

 

A Nota de Acusação, preparada em resposta a um inquérito disciplinar instaurado por indicação do Secretário-Geral da Frelimo, Roque Silva, foi entregue a Samito no passado dia 11 de Março, depois de uma breve audiência com os dois relatores do caso (Francisco Cabo e Filipe Sitoe). Samora Machel Júnior tinha 15 dias para apresentar sua defesa, e fê-lo de forma incisiva, desconstruindo todo o emaranhado factual e estatutário urdido para justificar uma sanção: expulsá-lo da Frelimo.

 

Roque Silva devia ser sancionado por abuso de funções

 

Samito Machel começa por denunciar a nulidade do procedimento disciplinar por incompetência de quem o levantou, designadamente o Secretário-Geral, Roque Silva. Como membro do Comité Central (CC), quem devia mandar instaurar o inquérito disciplinar contra si é o secretariado do órgão, e não Roque Silva. Samito começa por desmascarar esse vício gravoso, mostrando ter-se tratado de uma violação dos estatutos da Frelimo. Por isso, Roque Silva devia ser sancionado por “Abuso de funções”.

 

A Nota de Acusação denuncia o facto de Samito Machel ter-se alistado na AJUDEM, a fim de concorrer como cabeça-de-lista para o Conselho Autárquico da Cidade de Maputo. Samito diz que isso não é verdade. “Não foi como membro da Frelimo; foi como cidadão”, disse ele. Recordou que a AUDEM é um grupo cívico composto por membros da Frelimo, e argumentou que a Constituição da República (CR) protege a participação cívica dos cidadãos. E justificou que se juntou à AJUDEM pelo único facto de ter sido afastado da corrida interna na Frelimo, onde ele, enfatizou, era o único que cumpria com 100% dos requisitos de candidatura. Mas houve “fraude”, acusou Samito. E quando procurou explicação junto dos órgãos sobre a sua exclusão, todos deram-lhe costas. O único que tentou justificar-se foi o antigo Primeiro Secretário da Frelimo na Cidade, Francisco Mabjaia. Lacónico, Mabjaia disse que a decisão da exclusão de Samito tinha sido sua.

 

Não convencido, Samora Machel Júnior bateu à porta da Ponta Vermelha, o palácio Presidencial, mas Nyusi deu-lhe costas. Conversou com os presidentes honorários, Joaquim Chissano e Armando Guebuza. E tentou um encontro com Roque Silva, mas o SG também optou pelo “nim”. Uma vez, lê-se na defesa, Samito deslocou-se à sede do Comité Central numa última tentativa de avistar-se com Roque Silva. No átrio, ele estendeu a mão para cumprimentar o SG, mas não foi correspondido.

 

Estes episódios, nomeadamente a falta de uma explicação cabal sobre as razões da sua exclusão, determinaram a sua opção de entrar para a lista da AJUDEM. Para ele, “estava claro que o Partido e os seus altos dirigentes (o Presidente e o SG) não cumprem as directivas internas”; “Nyusi e Roque Silva pensam que a Frelimo é a sua vontade”; “Ficou claro que eu não podia concorrer dentro dos órgãos do partido”.

 

 

“Não precisava de autorização para aderir à lista da AJUDEM”

 

A Nota de Acusação insinua que após ter sido excluído das eleições internas, Samito Machel podia ter impugnado o acto. “Impugnar algo junto de quem é parte do problema?”, questionou-se ele, acusando o Comité de Verificação da Cidade de Maputo de ser “autor moral e material de todas as irregularidades”.

 

Não impugnou e optou pela AJUDEM. Mas o grupo foi excluído pela CNE, num acto que agora é interpretado por Samito Machel como uma cabala. “Tenho provas cabais de terem existido vários crimes e ilícitos eleitorais, para a exclusão da AJUDEM junto da CNE, com autores morais e materiais identificados; Tenho provas cabais de a exclusão da AJUDEM dentro da CNE ter sido feita com o beneplácito da direcção do Partido aos mais diversos níveis, tendo-se comprado consciências”.

 

A principal acusação que recai sobre Samora Machel Júnior é a de que ele violou a alínea J) do nº3 do artigo 12 (Deveres de Consulta) dos Estatutos da Frelimo, aprovados pelo CC em 2018. A alínea em causa diz que um membro “não pode ser candidato para qualquer função por outro partido ou organização associada ou deles dependentes, sem a devida autorização dos órgãos competentes da Frelimo”. Como era esperado, sobre esta acusação em particular, Samito Machel demonstrou o que é público e notório: a AJUDEM não é partido político, nem é uma organização associada a um partido. “Por isso, não precisava de autorização”.

 

“Grosseira Violação” de Nyusi e Roque Silva

 

A Nota acusa-lhe também de ter violado o artigo 23 dos Estatutos da Frelimo (Liberdade de Crítica e Opinião). “1) Os membros da Frelimo detêm a mais ampla liberdade de crítica e de opinião, sendo-lhes exigido o cumprimento e o respeito pelas decisões tomadas hierarquicamente, nos termos do estatuto; 2) O Partido estimula o diálogo e reconhece aos seus membros o direito de consulta, de concertação de opiniões para a exposição de ideias, no seio dos órgãos, não sendo, porém, permitida a estruturação de tendências no seio do partido”.

 

Samora responde de forma cáustica, visando directamente Filipe Nyusi e Roque Silva: “O artigo 23 não se aplica a mim”, diz. E remata: “Pela violação do artigo 23 deve ser acusado individual e solidariamente o camarada Presidente do partido e o Secretário-Geral, designadamente por não permitir a crítica, não estimular o diálogo, e não reconhecer aos membros os seus direitos constitucionais”.

 

Depois passa ao ataque, apostando num registo hostil: “Pela violação dos estatutos do partido deve ser acusado o camarada Filipe Nyusi, designadamente pela grosseira violação do artigo 21 em Niassa, Nampula e cidade de Maputo”. O artigo 21 (Métodos de Trabalho) diz o seguinte, no seu número 1: a) “Todos os órgãos do partido e seus dirigentes são eleitos democraticamente por voto secreto, periódico e pessoal; b) Os órgãos e os dirigentes do partido prestam contas do seu trabalho às instâncias que os elegeram; c) Nos órgãos as decisões são precedidas de livre discussão, caracterizada pela abertura e tolerância em relação aos pontos ou opiniões divergentes manifestadas pelos membros”.

 

(NE: Para quem não sabe, em Niassa, Nampula e na cidade de Maputo, a Comissão Política da Frelimo indicou novos secretários interinos, sem qualquer tipo de sufrágio; Em Maputo, o posto anteriormente ocupado por Francisco Mabjaia, passou a pertencer a Esmeralda Mutemba; em Nampula, foi indicado interinamente Agostinho Trinta; e no Niassa, Rafael Chande; todos eles assumiram funções depois de Outubro. Samora Machel Júnior mostra que manter estas figuras sem eleições é uma violação grave aos estatutos do partido).

 

 

“Não vou defender-me desta vil acusação”

 

A Nota de Acusação aponta Samito como tendo também violado o nº1 do artigo 12 (Deveres dos Membros do Partido) que diz que os membros devem: “a) Defender os interesses nacionais; b) Promover e Consolidar a Unidade Nacional”; entre outros. Na sua resposta, Samito escreve: ”Não vou defender-me desta vil acusação. Quem deve provar que cumpre os deveres previstos nº 3 do artigo 12 é o camarada Filipe Nyusi”. E o que diz esse articulado? Diz que (o nº 3 do artigo) são deveres de conduta: “a) defender os interesses do partido e da comunidade; b) cultivar o espírito de crítica e de autocrítica, essencial ao desenvolvimento e vitalidade de partido, como instrumentos de correção e de educação dos militantes”.

 

Aqui, percebe-se que a defesa de Samora sobe nas suas linhas. Já não é uma defesa pura e simples, mas um ataque cerrado e com todas as forças. Diz que Nyusi simplesmente pontapeia a coesão no partido, lançando um repto ao CVCC para verificar que o presidente “não defende a unidade e coesão internas; não garante o respeito pelos princípios e valores da Frelimo, e viola gravemente os princípios e estatutos da Frelimo”.

 

“Nyusi deve ser suspenso”

 

Os ataques de Samito Machel ao presidente da Frelimo sobem em crescendo. O filho de Samora Machel exige uma coisa quase que impensável: a suspensão de Filipe Nyusi. Sim, suspensão, nos “termos do nº3 do artigo 84”. O artigo versa sobre a substituição do presidente: “Em caso de grave violação dos princípios e estatutos do partido e/ou afectar a sua unidade e coesão, o presidente pode ser suspenso pelo Comité Central”.

 

Para pedir a suspensão do presidente da Frelimo, Samito Machel alega que “as atitudes do camarada Filipe Nyusi são mais graves para o partido que a presença abortada de um membro numa eleição por um órgão juvenil”. Lança um repto ao CVCC: “Deviam interessar-se em investigar se o presidente Nyusi tem uma conduta sã, honesta, íntegra, humilde, sincera, modesta, leal e fiel ao partido”.

 

A defesa de Samito, na sua fase textual mais derradeira, intercala o dedo acusador ao presidente com o esvaziamento quase total dos fundamentos da Nota de Acusação, lançando um ataque incisivo aos relatores Francisco Cabo e Filipe Sitoe. A acusação aponta-lhe a violação estatutária de pertencer à AJUDEM. Samito responde que essa colocação só pode decorrer de uma “ignorância atroz”, de uma “mente perversa”. Para ele, o partido devia estar mais preocupado com “a linha política que é todos os dias agredida pelo presidente Nyusi”.

 

Um desafio ao Comité de Verificação

 

A CNE não escapa incólume ao verbo viperino de Samito: “Estaria a ponderar processar a CNE se não tivesse a certeza de que ela está demasiado partidarizada e alguns membros são obedientes aos comandos do nosso partido. Engendraram manobras para ameaçar alguns subscritores da lista da AJUDEM. Foi um ilícito, um crime”.

 

A abortada tentativa de concorrer nas eleições internas em Maputo parece ter deixado em Samito o sentimento profundo de uma injustiça orquestrada pela liderança da Frelimo. Por isso, ele não cede no seu registo acusatório a Filipe Nyusi, desafiando, agora, o Comité de Verificação a agir: “Deve ser instaurado um processo disciplinar a Filipe Nyusi por ter desrespeitado os mais elementares valores da Frelimo, nomeadamente a violação das directivas relativas à selecção dos cabeças-de-lista. Desafio o CVCC a instaurar um inquérito sobre isso”.

 

 

Um processo nulo

 

Como ficou patente, a “Nota de Acusação” elenca alegados atropelos de Samito aos estatutos da Frelimo, sendo o maior pecado o facto de ele ter-se apresentado na lista da AJUDEM, apontando-lhe, por isso, a porta de saída. Mas o visado disputa com ‘unhas e dentes’ essa asserção. Justifica que “a decisão supostamente punível foi tomada com o propósito de reparar um mal maior, para evitar a tirania no partido, para denunciar a violação de princípios sagrados e a implantação de um clima de terror no seu seio”. Para ele, o procedimento disciplinar é nulo. E “a nulidade do processo impede a sua acusação. E sem acusação não há sanção”.

 

A Nota de Acusação aponta a pena de expulsão para Samora Machel Júnior, mas este diz que a ideia de expulsão não passa de falácia. “A pena de expulsão não decorre deste processo, que é nulo. A pena de expulsão decorre de uma vontade que visa alcançar um resultado. É fruto de uma campanha de anti-democracia e anti-regra instalado pelo camarada presidente Filipe Nyusi. E cabe à CVCC analisar isso e relatar ao Comité Central”. A defesa de Samito acusa Nyusi de ser ‘a mãe’ de todos os problemas no partido, alguém que tem um projecto visando instalar o pensamento único no partido e expulsar a democracia da Frelimo.

 

Como remate final, Samito Machel diz que sua expulsão da Frelimo teria consequências nefastas para a democracia interna: “Depois desta expulsão quem ousaria criticar a conduta dos dirigentes?”. E sugere que Filipe Nyusi não devia ser hoje o único candidato da Frelimo a candidato a Presidente da República. “Isso também está fora dos estatutos”. Esta colocação, no quadro da sua defesa, tem um alcance político mais extenso. Samito Machel defende-se ‘com unhas e dentes’, mas olha mais para o futuro.

 

O documento (sua defesa) ainda vai ser discutido em sede de Comité de Verificação, mas não é expectável que venha a fazer parte da agenda da sessão do Comité Central que se realiza já daqui a menos de duas semanas, no início de Maio. Provavelmente, a Frelimo colocará este processo em banho-maria, evitando que massificar o estilo confrontacional de Samito dentro da formação. Sendo ainda difícil de adivinhar qual será a reacção de Filipe Nyusi, uma coisa parece certa: a defesa de Samito Machel pode trazer um novo élan ao debate interno dentro do partido no poder.

 

(Marcelo Mosse)

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