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BCI
domingo, 24 março 2019 17:03

Roteiro "turístico" de uma Beira destruída

“Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”, Marquês de Pombal

 

Começo com esta lapidar frase, porque ela ilustra uma circunstância e tempo trágicos, do terramoto de Lisboa. Ela aplica-se no contexto da Beira. Em tempos antigos, Lisboa foi arrasada. A Beira vive momentos dolorosos. Está um caos. A Beira é uma das cidades que goza do privilégio de ter infra-estruturas monumentais, agora enfermiças, escancaradas, detrás da cortina sórdida deixada pelo ciclone. A Beira só não é morta ainda, se não ajudarmos a enterra-la. A inércia humana e negligência só a podem enterrar. A Beira, essa placa giratória que liga o porto local ao hinterland (Congo, Zimbabwe, Zâmbia, Malawi, Burundi e Uganda) é um problema, não apenas moçambicano, mas da humanidade, porque ela é parte contribuinte e activa das economias desta África Sub-equatoriana.

 

Um guia da destruição da Beira

 

A Beira não se insinua, mas ao percorrer as suas “escombrosas” ruas, levantam-se várias mãos, do seu património histórico derruído. Começo o meu roteiro ao rasto de destruição no Cais Manarte: Aqui está um agoniante edifício da Capitania/Administração Marítima estendendo a mão de pedido de ajuda. A imponente e majestosa muralha de protecção da Beira Terrace, aqui onde se veem os mais lindos pores-de-sol, a montante do Rio Púnguè, está feita em destroços. O recém-inaugurado Beira Terrace não escapou ao flagelo.

 

A Beira tem, ao longo do rio Chiveve, infra-estruturas imponentes que compõem o seu portefólio turístico de heranças portuguesa e inglesa. As casas coloniais avarandadas e as casas de madeira-e-zinco não escaparam ao ímpeto de destruição do ciclone IDAI. Cito o caso da Casa Infante de Sagres, o edifício do Tribunal Provincial de Sofala, além de outras que ladeiam o edifício do Consulado de Portugal.

 

Apetece-me chorar, quando vejo o edifício do Millennium BIM (antigo Clube dos Ingleses) destroçado. Antigamente serviram de escritórios e tinha lá uma barbearia. Depois de ter sido abandonado, o BIM reabilitou-o. Preservou o seu toque clássico e as fachadas foram banhadas de um rosa, que luzia no seio dos edifícios desbotados, sem cor e deprimidos, característica da maioria dos prédios da Beira, sobre o qual o Governo central tem a gestão, não facilitando quaisquer planos do município, de os colorir, e até dissuadindo as grandes empresas de telefonia e de gestão portuária, de deitar mão sobre eles e conferir cor e beleza.

 

A beira dói por isso. A Beira não sofre só do ciclone. A Beira sofre de muitas outras intempéries. O mundo acordou para a Beira pelo ciclone que a devastou, mas a Beira está a braços com o isolamento do Governo central. As suas esburacadas estradas viram-se mais expostas nas últimas duas semanas, com o ciclone, porque as equipas do município que vinham fazendo manutenção, ocupam-se de remoção de um sem número de árvores tombadas por toda a cidade.

 

Os edifícios elevados do centro da cidade, da gestão do Governo central, estão sem cobertura e chovem a cântaros. O Prédio Emporium, que ameaça ruir, manteve-se irredutível ao temporal. Mas as suas pobres e tristes fachadas exibem apartamentos com janelas cobertas de plásticos e contraplacados. Esta imagem sombria estendem-se pelos prédios Tâmega, Zuid, Carlota, Cavadas, Brito, A Luta Continua, Adamastor, Vasco da Gama, Branco. A força do vento não poupou os vidros e deixou-os escancarados. A Cadeia Central, que devia ser museu, não escapou. A sua cobertura está afectada e os presos vivem debaixo de condições sub-humanas.

 

Eu adoro passear pela Ponta-gêa..

 

A cada dia, a Ponta-gêa, diferentemente, do velho Maquinino, símbolo na inércia e a anarquia devido as construções desordenadas e foco de mercados informais e de passeio, oferecia um leque de encantamentos, pelas casas particulares que começavam a ganhar cor e tratamento. A maioria delas ficou sem cobertura. Ao percorrer a Ponta-gêa perpassa-me um sentimento de inquietação. A Ponta-gêa, o Macúti, o Matacuane oferecem-me a imagem de uma Beira, idêntica a Paris, a Praga, a Varsóvia, depois de um bombardeamento aéreo da aviação hitleriana.

 

A Beira vem sofrendo isolamento desde Março de 1976, quando Samora Machel declarou sanções à Rodésia do Sul. Esta cidade, que foi eleita a mais e melhor cidade iluminada de África nos anos 60 do século passado parece ter sido destinada a carregar o peso da pedra de Sísifo. A pesada pedra da factura política pelas suas idiossincrasias estão agora visivelmente expostas, pois, do mais belo que havia restam ossos. Estão expostas nas feridas dos edifícios ex-libris, visivelmente a sangrar. Os emblemáticos Monte Verde e “Golden Peacock Hotel” sofreram.

 

Toda a gente fala do ciclone, mas há edifícios dos mais belos do mundo e do país que tem sofrido um ciclone progressivo da mente humana, da sua incapacidade de convivência na diferença: A Casa dos Bicos é um deles. Só há um edifício do género da Austrália. O ciclone intelectual da macrocefalia de Maputo não tem planos para a Casa dos Bicos.

 

E como tudo está nas mãos da macrocefalia de Maputo os beirenses são cépticos.

 

Não crêem que o actual estado deplorável do Palácio dos Casamentos, um dos mais belos do país, com uma impressionante escultura de Shikani, possa ser poupada do desleixo, da incúria e da intriga política que o transformam numa ruina, com este ciclone que veio acrescer a sua desgraça.

 

A incerteza agora é sobre qual dos ciclones, o da fantasiosa mente humana ou da natureza mãe, continuará curtindo, castigando a Beira. É o que deparo a olhar para a Casa da Cultura de Sofala. A sua reabilitação custou cerca de uma década. Agora totalmente a descoberto poderá passar outra década de travessia no deserto, antes da reabilitação.

 

A Avenida Mártires da Revolução era um esplendor todo, que se prolongava até ao Aeroporto Internacional da Beira. Vale que os seus proprietários pouco endinheirados abriram cordões às bolsas para cobrir as suas vivendas com lonas. Todavia, um donativo de lonas gigantes foi distribuído entre membros do partido FRELIMO que ocupam parte das residências. O Hotel Luna Mar e as casas ao redor sofreram os efeitos dos estilhaços que deitaram quase abaixo a Paróquia Sagrada Família, do Macúti.

 

O Restaurante Nhumba Yathu mostra uma cicatriz do ciclone na sua singular cobertura de capim. O Clube Naútico da Beira, que tem prolongado a sua coma “erosânica”, cedeu ao ciclone e pode ruir. O Naútico é o equivalente a Waterfront ou o Clube Naval, para a gente cá do burgo. O Complexo Tropicana não resistiu. A cadeia de barracas do Estoril não escapou ao efeito devastador do ciclone.

 

Quem conhece a Avenida das FPLM terá certamente a noção do condomínio aberto das Casas Municipais, do Macúti House, e das demais na primeira linha depois do Índico. Outrora eram uma imagem de ternura e felicidade. Hoje são o espelho da agonia de uma cidade que precisa de ser repensada. Talvez este ciclone seja um alerta para um momento de inflexão. Há situações que tornam a cidade fruto de rebeldia, da teimosia. Foi esta a teimosia que levou os seus fundadores a erguerem-na sobre um pântano.

 

Ciclones mentais

 

A teimosia de erguer a cidade na antiga praia dos Pinheiros, que se estende do Palácio dos Casamentos até nas imediações da Praia Nova, deve ser repensada pelo Município, que vem autorizando a ocupação de terrenos sobre o pântano, sem a observância de um plano antigo a que se sujeitavam os construtores da Ponta-gêa: casas elevadas com uma cave, evitando-se a submersão nas águas. Esse plano devia ser imposto em zonas como Macurungo 2, Estoril, Chota, porque os ciclones são cíclicos e, daqui a tempos, os moradores dos mesmos estarão sujeitos a efeitos colaterais. O ciclone desalojou os moradores do novo bairro de casas precárias da Praia Nova, alguns desses que tomaram de assalto os zincos que voaram de alguns edifícios e obras urbanas, para mitigar o seu sofrimento.

 

Infelizmente, o ciclone mental continua a fustigar a Beira. As famílias que deixaram as suas casas inundadas são afectadas adicionalmente por ondas de roubo e saque que tomou a Beira. Quadrilhas de assalto arruinaram a Minerva da Beira e o Xima Sorvetes, no primeiro não despojando livros, mas televisões, telemóveis, computadores, e no segundo congeladores, maquinaria de bar e restauração. Depois de ceder ao ciclone, a cidade está a ser fustigada por uma onda de assaltos.

 

A Polícia está impotente. As altas hierarquias da PRM e das FADM não acordaram para a dimensão colossal deste problema. Noutros países, os polícias e soldados assomam-se às campanhas de defesa, solidariedade e limpeza. Há que salvar o pouco que resta. O edifício do ARPAC, antigo Clube Chinês da Beira, merece toda a atenção da humanidade, porque a Beira é também património histórico universal.

 

Não fecho esta crónica sem me referir aos pinheiros que tombaram ao longo das dunas da praia. Eram relíquias. A areia das dunas que tomaram as ruas e de locais ermos está sujeita ao saque. Os estabelecimentos de ensino primário, secundários e universitários não escaparam. Os belos Pavilhões de Desportos e do Ferroviário não foram poupados. Por cima disso tudo, a cidade está entregue ao salve-se quem poder. (José Francisco)

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