A CIVICUS discute a situação do espaço cívico e as novas restrições que estão sendo impostas ao trabalho da sociedade civil em Moçambique com Paula Monjane, Diretora Executiva do Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC).
O CESC é uma organização da sociedade civil (OSC) apartidária, sem fins lucrativos, criada em 2009 com a missão de fortalecer a capacidade de participação ativa da cidadania e das comunidades nos processos de desenvolvimento socioeconómico e político, investindo na partilha de conhecimento, ferramentas de aprendizagem, monitoria e advocacia em prol de políticas públicas que respondam às necessidades da cidadania.
Quais são as condições actuais da sociedade civil em Moçambique?
As condições legais, políticas, institucionais e práticas em que a sociedade civil opera em Moçambique tem se deteriorado ao longo do tempo. Nos últimos 10 ou 15 anos, apesar de termos uma constituição e legislação que salvaguardam e reconhecem os direitos universais fundamentais, temos assistido a um crescente cerceamento das liberdades de informação, expressão, imprensa, reunião e participação pública. Este cerceamento vem sendo praticado em violação tanto da Constituição da República de Moçambique quanto dos instrumentos internacionais e continentais de direitos humanos que Moçambique tem assinado. Actualmente, está sendo proposta uma legislação para silenciar vozes dissidentes e que lutam por uma melhor governação da coisa pública e pela proteção dos direitos humanos.
A liberdade de imprensa e expressão tem sido marcada por intimidações, raptos e desaparecimento de jornalistas, detenções ilegais e violência física, incluindo assassinatos perpetrados de forma impune, principalmente por agentes da polícia e outras forças de seguridade. Só em 2021 o Instituto para a Comunicação Social da África Austral (MISA) registou 23 casos de violações.
Para além destas ações, tem havido investidas legislativas no sentido de limitar a liberdade de imprensa. Em 2018 o decreto 40/2018 introduziu impostos inexplicavelmente elevados para o licenciamento e registro de empresas de mídia e credenciamento de correspondentes da imprensa nacional e estrangeira. Em 2020 o decreto foi revogado como resultado da pressão do MISA e da declaração de inconstitucionalidade pelo Conselho Constitucional. Mas em Dezembro de 2021, o governo introduziu um projecto de lei sobre comunicação social e radiodifusão, que restringe ainda mais o exercício da liberdade de imprensa.
Tentativas de recusar autorização (quando estas deem ser apenas informadas), controlar e reprimir manifestações pacíficas também têm crescido. Só em 2022, várias manifestações pacíficas organizadas por activistas feministas que haviam sido devidamente comunicadas às instituições competentes foram interditas ou tiveram interferência de alguma forma. Em muitos casos, as activistas foram recolhidas às esquadras policiais sem nenhuma razão clara. As pessoas defensoras de direitos humanos vêm sofrendo represálias, desde ameaças verbais e corporais até assassinatos.
As eleições, que nunca foram livres ou justas, tem sido palco de fraude sistemática, violência antes, durante e depois do processo e impunidade para os agentes estatais envolvidos nela.
Os espaços de participação cidadã, que ganharam popularidade na primeira década de 2000, vem perdendo energia diante de um regime político mais fechado. A participação da cidadania na planificação do Estado ficou dependente da descrição do funcionário do Estado que superintende o sector e a área geográfica. Para além disso, assiste-se a um controle e ameaças às associações e OSC que escrutinam o governo nas áreas de democracia, governação e direitos humanos. Há casos em que são ameaçadas de entrar numa tal “lista negra”.
Algumas outras medidas restritivas incluíram mudanças introduzidas no Código Penal em 2014, definindo a difamação de altas personalidades do Estado como um crime contra a segurança do Estado e a Lei contra a lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo de 2022, que impõe regras excessivas para as OSC.
Sob o pretexto do combate ao terrorismo, mais uma proposta que restringe um direito fundamental, o direito à liberdade de associação, foi aprovada pelo Conselho de Ministros em setembro de 2022 e enviada ao parlamento, a Assembleia da República, para sua aprovação em outubro.
Como esta nova lei afectará as OSC em Moçambique?
A proposta de lei que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das OSC contém várias normas que violam a liberdade de associação apesar deste direito ser salvaguardado pela constituição e pelos tratados internacionais de direitos humanos. Atribuem poderes totalitários e discricionários ao governo para “criar”, controlar o funcionamento, suspender e extinguir as OSC.
Se a proposta for aprovada, irá legitimar as práticas já existentes de fechamento do espaço cívico, onde vozes e organizações dissidentes e críticas ao governo em exercício poderão ser perseguidas ou até proibidas de continuar a operar. Será a morte do movimento cívico, pois apenas sobreviverão organizações alinhadas ao partido no poder. As ligas partidárias dos partidos políticos da oposição e os próprios partidos políticos da oposição poderão estar sob risco de extinção.
Entre outras coisas, se proposta de lei for aprovada, a entidade governamental responsável, já não tem prazo para emitir a sua decisão sobre o registo da organização e esta não tem onde se queixar, uma vez que o papel do judicial foi completamente usurpado pela entidade competente.. A proposta de lei impoe um modelo único para os estatutos de todas as OSC, incluindo detalhes sobre autoridades, mandatos, forma de funcionamento, relatórios e direitos dos membros, permitindo a fácil criminalização de membros e gestores das OSC. Propõe inversao do ônus da prova: as OSC deverão provar que estão cumprindo seus objetivos e funcionando corretamente através de um relatório anual apresentado a cada primeiro trimestre, e correm o risco de suspensão ou extinção após dois relatórios não apresentados.
Esta norma não só é intrusiva num contexto de direito privado estabelecido pela Constituição, mas também ignora a variedade de associações que existem no país. Ela também dá ao governo a autoridade para realizar visitas de monitoria, auditar contas, visitar locais de implementação, cobrar relatórios periódicos e exigir documentação adicional sempre que achar conveniente.
Sob pretexto de luta contra o branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, a proposta de lei trata as OSC como criminosas à partida. Para além disso não está claro em que medida este controle excessivo irá resultar de facto em maior combate ao financiamento ao terrorismo.
Por que o governo moçambicano está regulamentando as OSC no âmbito da luta contra o branqueamento de capitais e do financiamento ao terrorismo?
O argumento de que esta lei visa combater o branqueamento de capitais não se sustenta, porque foi aprovada outra lei em julho de 2022, a lei 11/2022, que trata especificamente da lavagem de dinheiro e do financiamento do terrorismo e contém um artigo específico dedicado as OSC.
Das 40 recomendações emitidas pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI) para os países adoptarem na luta contra o branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, apenas uma – a Recomendação 8 – é relativa as OSC, e se concentra na possível necessidade de adequação do quadro legal baseada numa avaliação de riscos, com vista a identificar o subsector em risco, compreender possíveis riscos e desenvolver medidas adequadas para a mitigação e uma supervisão baseada e proporcional ao risco.
De forma complementar, o GAFI também inclui uma extensa nota interpretativa para a Recomendação 8 e tem um relatório sobre as melhores práticas, onde fazem referência ao imperativo de respeitar o direito internacional dos direitos humanos; indica que as medidas não devem interromper ou desencorajar actividades beneficentes legítimas; e observa que as ações tomadas contra organizações sem fins lucrativos suspeitas de envolvimento em financiamento ao terrorismo devem minimizar o impacto negativo sobre os beneficiários inocentes e legítimos dos seus serviços.
Em outubro de 2022 Moçambique entrou na lista cinzenta do GAFI e a única acção que devia fazer em relação às OSC era conduzir uma avaliação de risco de financiamento ao terrorismo de acordo com os padrões do GAFI e usá-la como base para desenvolver um plano de divulgação. Estas recomendações também estão de acordo com a avaliação mútua conduzida em 2021 pelo Grupo de Combate ao Branqueamento de Capitais da África Oriental e Austral (ESAAMLG), a organização regional “irmã” do GAFI que cobre a nossa região. Mas em vez disso, o governo moçambicano apresentou ao parlamento um novo projeto de lei para restringir o trabalho das OSC. A questão então é, quais são suas verdadeiras intenções?
O governo moçambicano não está sozinho na tentativa de passar uma lei anti-espaço cívico. Diversos países africanos estão tomando as recomendações do GAFI e a pressão internacional como argumento para legitimar atropelos aos vários instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos e a suas próprias constituições, contando com a indiferença e às vezes até mesmo a proteção de alguns órgãos que deveriam estar defendendo esses direitos. Ao longo das duas últimas duas décadas, no contexto do retrocesso da democracia e da crescente prevalência de governos autoritários, o continente africano tem registado aprovações ou tentativas de aprovação de medidas e leis que restringem os direitos universais e o espaço cívico. Segundo o relatório da Freedom House de 2022, 24 países africanos tentaram aprovar medidas e legislação anti-sociedade civil. Doze conseguiram lograr seus efeitos, seis falharam ou desistiram e seis estão em situação pendente, incluindo Moçambique.
Como a sociedade civil está respondendo?
Logo após a aprovação surpresa da proposta de Lei das organizações sem fins lucrativos pelo Governo, as OSC nacionais, provinciais e distritais juntaram naquilo que hoje é um movimento que luta pelo direito à liberdade de associação. Estando conscientes que este processo não é meramente técnico, mas principalmente político, decidimos definir múltiplas táticas, desde ações de lobby e advocacia com tomadores de decisão no governo e o parlamento e instituições nacionais e internacionais de direitos humanos até campanhas para aprofundar o entendimento da cidadania sobre as implicações da aprovação desta lei.
Também realizamos várias análises técnicas e promovemos debates nacionais e internacionais. Na sequência das várias diligências e esforços, logramos realizar um encontro de dois dias, em novembro de 2022, com as comissões de trabalho parlamentar relevantes. Isto resultou na importante decisão da necessidade de se realizar uma auscultação ampla aos cidadãos e organizações sociais ao nível nacional, visto se tratar de direitos universais e fundamentais em jogo.
As auscultações em todas 10 provincias do país (Maputo Cidade e provincia tiveram uma única) realizaram-se entre os dias 6 e 16 de Fevereiro de 2023, organizadas pela Assembleia da República em articulação com o Movimento das OSC Em Defesa do Direito e Liberdade de Associação e contaram com uma participação de mais 600 OSC que foram unânimes em rejeitar a proposta de lei.
Apesar desses passos importantes, continua a preocupar-nos a relação que se faz com a urgência da aprovação da lei à retirada de Moçambique da lista cinzenta do GAFI. Isto significa que mesmo não respondendo directamente ao que se exige de Moçambique, o parlamento irá aprovar a lei logo que retomar os seus trabalhos em Março próximo. Dada a precariedade da proposta de lei, achamos que o período é muito curto para uma revisão bem feita que não fira os princípios fundamentais e universais de direito à liberdade de associação.
Entretanto, se a lei for aprovada, vamos ao conselho Constitucional para solicitar que a mesma seja declarada inconstitucional. Esperamos também uma acção mais visível dos organismos e OSC internacionais e regionais. Dada a dimensão do problema, em Moçambique como no continente, e ao abrigo dos seus mandatos, esperamos acções urgentes de condenação por parte da União Africana, através da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, como das Nações Unidas através do relator Especial para os Direitos à liberdade de Reunião Pacífica e de Associação e da Relatora Especial dos Direitos Humanos em contexto de contra-terrorismo.
Por parte das OSC que lutam pelos direitos humanos e democracia, esperamos que a solidariedade já demonstrada continue e juntemos esforços para reduzir e levar para trás estas intenções anti-espaço. (Civicus)