O que se passou em Xinavane, ontem, não foi um mero exacerbar de conflito laboral. Foi o reflexo de uma gestão errática da terra em Moçambique, que privilegia o grande capital em detrimento das populações campesinas. E de multinacionais que descartam a responsabilidade social corporativa e atiram a legislação laboral para o fundo do vaso sanitário. E o Governo nada faz!
A greve violenta não foi protagonizada por trabalhadores efectivos. Foram trabalhadores sazonais e comunidades, cuja terra foi tomada no quadro da expansão do canavial, que decidiu rebelar-se.
A fábrica de açúcar de Xinavane é operada pela Tongaat Hulett, uma multinacional sul-africana que entrou em crise nos últimos anos na sequência da falsificação de contas por parte de gestores seniores com o conluio da auditora Deloitte.
Essa crise financeira afectou também as operações em Moçambique mas, com nova gestão, a fábrica caminhava para a normalização. No entanto, essa normalização estava a acontecer às expensas dos trabalhadores e das comunidades locais. A gestão aumentou a carga horária mas não reviu salários, despediu trabalhadores sazonais e congelou a responsabilidade social que ajudava as comunidades locais com Saúde e Educação. Suas terras foram integradas no canavial; elas vivem de pequenos canteiros com hortícolas. A nova gestão retirou os apoios. Mas as regalias para o pessoal expatriado são chorudos
Um facto: A fábrica de Xinavane entra ciclicamente numa crise laboral. Este ano começou nessa toada. Em 31 de Janeiro, os 4 mil trabalhadores efectivos entraram em greve. Em causa estava um reajuste salarial e o pagamento de bónus referentes aos últimos dois anos. Houve um braço de ferro e uma moratória. E mais recentemente, um acordo entre o patronato e os trabalhadores efectivos, embora nem todos estivessem de acordo.
Mas e os sazonais? Estes foram excluídos, aumentando-se as horas laborais dos efectivos. Esta perspetiva de desemprego permanente e um quadro comunitário de pobreza, a ausência de responsabilidade social, o sentimento de que a fábrica não está ali para o ajudar no crescimento local e de suas gentes, foram o combustível que atiçou o fogo.
A percepção de quem vive o dia-a-dia da Tongaat Hulett é a de que a multinacional está ocupar cada vez mais terrenos das comunidades, retirando-lhes a titularidade do direito de uso e aproveitamento por herança ou ocupação. Esta alegada usurpação de terra é feita sob vista grossa das autoridades.
Este é um quadro que se repete por todo o país. Há uma tendência geral de usurpação de terra comunitária por parte do grande capital e de obtenção de DUATs de legitimidade duvidosa (veja-se o caso do magnata indiano José Parayanken, da Mozambique Holdings, e sua empreitada de monocultura de seringueiras, na antiga plantação de chá da Madal no Distrito de Lugela).
Por outro lado, o velho dilema do fracasso da responsabilidade social corporativa, de relações laborais precárias e de promoção do conteúdo local (progressão laboral dos nativos, por exemplo).
De modo que a nova Política de Terra deve tomar em conta estas e outras questões, como por exemplo estabelecer uma regulação das relações entre as Grandes Concessões e as comunidades rurais na perspetiva de que estas sejam protegidas.
Não sei se é isto que se pretende. As feridas são profundas. E, para sara-las, é preciso que se reconheça que elas existem. Ainda não vi um diagnóstico transparente e incisivo sobre a gestão da terra em Moçambique, que reconheça todos os seus malefícios e vicissitudes e parta daí para uma Política que corrija os problemas. (Marcelo Mosse)