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terça-feira, 10 março 2020 07:18

Um bitonga chamado Nhalégwè

Há cinquenta anos – tinha vinte – que saíu daqui para nunca mais voltar. Os seus irmãos também, e tantos outros dessa geração, entraram num êxodo para terras longínquas, e lá constituíram famílias cujos filhos chegam a este lugar como estranhos. Não conhecem as raízes dos pais. Pior do que isso, desembarcam, em viagens de  férias, e correm imediatamente para as casas de hopesdagem previamente reservadas. Nos “lodges”. Aliás o que lhes apela não é a história genealógica dos seus progenitores. São as praias. E a necessidade urgente do gozo da liberdade.

 

Todos lhe chamavam carinhosamente por Nhalégwè, nome bitonga dado às gaivotas, mas hoje poucos se vão lembrar deste homem, tirando os que com ele partiram de vez, e os poucos de nós que ficamos. De resto o tempo vai esbatendo as memórias.

 

O Café Lobito está abarrotado, e a única mesa que ainda pode acolher mais um, é a minha, onde estou sentado tomando chá de camomila,  mesmo assim sentindo-me asfixiado numa cidade (Maputo) que já não tem poros. É por isso que escolhi estar perto da montra, de costas para a maioria, o que me permite vizualizar a intensa “Eduardo Mondlane”. Contemplo os carros que descem e outros que sobem, e as pessoas apressadas que se roçagam umas às outras. Pelo menos essa azáfama recorda-me que estou vivo.

 

Atrás de mim há um burburinho de gente que vem tomar o pequeno almoço rápido, ou um simples café, e ainda o tilintar das chávenas poisando constantemente nos piris. É o início de um dia de trabalho, e as tertúlias irão esperar para o final da tarde, onde, para além do café, pode vir uma caneca de cerveja. Mas eu estou livre, amanhã volto para Inhambane, minha eterna cidade, onde nunca vai  faltar oxigénio para as minhas botijas espirituais. Onde não há este ram-ram todo que me enlouquece.

 

Olho para o relógio, são oito horas e trinta e cinco minutos, e logo a seguir, no meu horizonte, vejo um homem alto, magro, cheio de barba da cor de prata, cambando no passeio, numa passada desinteressada. Pelo andar deduzo que usa prótese na perna esquerda, e pode estar, por assim dizer,  incapacitado para encetar uma corrida, a menos que a prótese que o sustenta seja de carbono, como as duas postiças de Oscar Pistorius.

 

Paguei a conta. Saí e segui na direcção do personagem que me fascina pela barba da cor de prata, e pelo estilo que parece de um bailarino. Ele dança na minha imaginação, uma dança desconhecida. Usa boina preta que cobre completamente a cabeça, camisa de ganga negligenciada, calças  Gins, e nos pés calça botas a Beatles, sem conseguir, contudo, disfarçar o defeito de um pé que não dobra, o que reforça a minha suposição de que este indivíduo tem na verdade uma prótese na perna esquerda.

 

De repente o tempo mudou e começou a chover, o que nos obrigou a interromper a marcha para nos abrigarmos na varanda de um daqueles prédios perfilados na “Eduardo Mondlane”, entre a “Salvador Allende” e “Amilcar Cabral”. Estamos muito perto um do outro. Olhei bem para ele, agora com “lupa”, e senti um gelo na espinha dorsal.  Saudei-lhe timidamente e perguntei, o senhor não é o Nhalégwè!?

 

Não podia estar equivocado. É ele! Porém, o que eu não esperava, e esperava também, é que o dito cujo me vergastasse, Nhalégwè é teu avô!

 

Deu-me costas e passou para outro extremo do nosso “esconderijo”, à espera, sem voltar a olhar para mim uma única vez,  que a chuva, que cai em catadupa, cessace. Mas esta atitude é de muitos bitongas, que detestam ser reconhecidos como tal, sobretudo quando estão em Maputo.

"Moçambique é um Estado falido. O Ocidente não está ajudando" é a manchete de um artigo da revista Foreign Policy (7 de Março), de Dennis Jett, embaixador dos EUA em Moçambique entre 1993 e 1996. No artigo, ele observa que "a imprensa é amplamente administrada pelo governo ou completamente intimidada". Ele mostrou o seu apoio à imprensa livre em Dezembro de 1995, quando proibiu a embaixada dos EUA e a equipa da USAID de conversar com o editor do Boletim de Processo Político de Moçambique, Joseph Hanlon, alegando que eu era "totalmente tendencioso". https://www.africa.upenn.edu/Urgent_Action/apic_mz2496.html

 

A proibição foi criticada por várias organizações internacionais de liberdade de imprensa. Jett e eu temos um longo caminho juntos. Uma coisa que o deixou irritado foi a menção no Boletim (11 de agosto de 1994) de que ele usou seu discurso no dia da Independência dos EUA (4 de julho de 1994) para pedir aos moçambicanos que votassem na oposição contra a Frelimo nas primeiras eleições multipartidárias em outubro.

 

Jett já tinha actuado como Encarregado de Negócios, no Malawi, 1986-88, num período importante em que o Malawi e a África do Sul estavam apoiando abertamente a Renamo no norte de Moçambique, com a aprovação secreta dos EUA. Mas o verdadeiro problema aconteceu entre 1993-96, quando Jett já era Embaixador em Maputo. Foi quando a comunidade internacional começou plantar as sementes da corrupção, e elas se espalhavam pelo dinheiro, tentando converter socialistas em capitalistas. Eu conto essa história com mais detalhes num artigo de 2017 (http://bit.ly/3WQ-hanlon).

 

Jett ignorou seu próprio papel na criação de um Estado falhado

 

Jett também foi embaixador quando os EUA foram acusados ​​de ameaçar cortar a ajuda ao país se Moçambique não assinasse um contrato desfavorável com a empresa americana Enron para a exploração de gás em Pande, Inhambane. O ministro dos Recuros Minerais, John Kachamila, acusou a embaixada dos EUA de ter feito uma "campanha de difamação", dizendo à imprensa que ele não assinaria o contrato porque queria uma grande recompensa (suborno). Jett disse ao Houston Chronicle: '' O papel do comércio internacional para os EUA é tremendamente importante. Vemos outros governos ajudando seus negócios. E não vamos esperar, sem ajudar os negócios americanos. "(Boletim 16 de dezembro de 1995)

 

As edições do Boletim de 1994-5 estão em http://www.open.ac.uk/technology/mozambique/political-process-1993-2008

Há oito de Março de 1977, no Pavilhão do Maxaquene,  o  Presidente Samora Machel reuniu com alunos que deveriam prosseguir com seus estudos, na 10ª e 11ª classes, e comunicou-lhes que a partir daquele momento já não tinham mais sonhos. De que em diante: “Não é aquilo que eu quero, não é aquilo que tu queres, é aquilo que nós queremos, aquilo que o povo quer”. E o dito povo, reunido dias antes,  no seu  III Congresso,  realizado em Fevereiro de 1977,  decidira que devia sacrificar o sonho destes  jovens  em prol dos desafios que o país enfrentava na altura. Da data, do  discurso presidencial e do percurso dos jovens de então, nasceu a geração “8 de Março”.

 

Sobre os feitos e defeitos da decisão e da própria geração “8 de Março” muito já foi dito e escrito. De tudo apenas não se compreende  uma coisa: por que carga de água a geração “8 de Março”  não  tomou o PODER? (não confundir tomar o Poder com servir o Poder).

 

No debate sobre o acesso e controle do Poder no seio do partido dominante, e não só, esta geração  não é tida e nem achada e bem que poderia ser uma das alas ou grupo influente. Aliás, a sua participação e influência poderia abarcar outros quadrantes de intervenção pública nacional.  Neste Domingo e por ocasião da celebração da passagem do   43º aniversário do encontro de 77, é expectável  que os “oitomarcistas” tenham aproveitado para, entre outros,  responderem a pergunta, sobretudo e  agora que a reforma e as cobranças da consciência,  batem-lhes  a porta, e esta, para alguns, já se encontra escancarada.

 

Numa recente  discussão  com amigos e a propósito da pergunta,  ficou patente  que a geração “8 de Março”  teve (porventura continua a ter)  todas as condições para conquistar/exercer/controlar o PODER.  Fora o denominador comum de terem sido “vítimas” do 8 de Março,  os “oitomarcistas” são, na sua maioria, urbanos,  com estudos, vasta experiência profissional e de governação e com uma profunda inserção  em todos os sectores-chave de actividades a nível de todo o país, incluindo do partido dominante. Assim sendo, não se compreende que em matéria de Poder, a geração “8 de Março”,  não tenha feito melhor que a anterior geração, a geração “25 de Setembro”. Esta , maioritariamente rural, sem estudos, sem experiência profissional e muito menos inserida em sectores-chave da máquina  colonial,   conquistou o Poder, exerceu-o e controla-o até aos dias que correm. Desta geração,  fora a vénia, é importante que se tire  dela as devidas lições em matéria de manutenção e expansão do Poder.

 

Numa comunicação do anterior Presidente da República (PR), Armando Guebuza, por ocasião da passagem do 27º aniversário do 8 de Março e diante de representantes da  respectiva geração, disse:    “Aproveito esta oportunidade para vos lançar um desafio para que se unam e  se organizem (…) para transmitir às gerações mais novas a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre os processos políticos e históricos do nosso país, para neles buscarem referências, exemplos e inspiração, …”. Neste trecho, o então PR faltou afirmar: “Que a geração 8 de Março transmita às gerações mais novas a necessidade e a forma de conquista e manutenção  do poder de acordo com os padrões de cada época”. O PR não o tendo tido, é compreensível. Porém, é incompreensível que os destinatários da comunicação  nada tenham feito para que tal fosse um dos legados a transmitir.

 

Nas celebrações dos 38 anos do “8 de Março”, em 2015,  um representante da associação com o mesmo nome, intervindo numa sessão de auscultação  à convite do actual Presidente da República, Filipe Nyuse, disse: “De nada vale dizer constantemente que nos meus tempos, nos meus tempos, quando daí em diante nos alheamos de tudo o que ocorre à nossa volta” (Jornal Noticias, 18/03/15).   E uma das alheações  - e bem  à volta dos “oitomarcistas”-   foi a de terem deixado o Poder passar.

 

Infelizmente, e por terem deixado o Poder passar, a história não absolverá a geração “8 de Março”.  Dela,  apenas o registo da prontidão na resposta ao chamamento da pátria, e a podridão na resposta ao chamamento da cidadania.

 

 

segunda-feira, 09 março 2020 06:08

Senhores Doutores, vocês são melhores que isso!

Não sei porque razão, mas o processo eleitoral - neste pedaço de terra com nome de jóia - é um autêntico festival de boçalidade, futilidade, vulgaridade, inutilidade, banalidade, etecetera. O evento torna-se uma fossa e os concorrentes, excrementos de toda ordem e feitio. Não se discutem manifestos, discutem-se pessoas. Cavam-se passados fúteis que não agregam valor ao debate. 

 

Isto a propósito da eleição da Ordem dos Advogados. Mas também a propósito da eleição da Cê-Tê-A e da SOMAS. Sem esquecer a eleição do MISA, passando pela Esse-Ene-Jota, pela Efe-Eme-Efe, pelas eleições gerais, presidenciais, autárquicas e das assembleias provinciais. Mas também a propósito da premiação do N'GOMA e da AEMO.

 

Se olharmos de soslaio a esses eventos, vamos encontrar algo em comum: desconfiança na comissão eleitoral que acaba no descrédito de todo o processo. São dedos acusatórios, adiamentos, desistências, assobios para o lado, lamúrias, insultos, desacatos. Para piorar, fala-se sempre de um certo partido político que anda infiltrado nos processos eleitorais das agremiações civis. Sempre a imiscuir-se, a baralhar os processos e a criar desordem, qual energúneno obcecado. 

 

A diferença entre esses eventos é que malta FRELIMO e RENAMO e Eme-Dê-Eme se batem, se incendeiam casas e sedes, se insultam, se abusam, se ferem e se matam abertamente ao vivo e a luz do dia, enquanto que os outros fazem tudo isso cobardemente. Hipocritamente, no meio da peleja, os advogados ainda se tratam por "ilustre colega". No fundo no fundo, bem lá no fundão mesmo, começa a ficar claro que por detrás dessas organizações há muita farinha e carapau. Começa a transparecer que o mais importante é ficar na cozinha.

 

Eu era fã de advogados. Os advogados eram os gajos com os quais eu mais rendia em termos de civismo e seriedade. Eram "top" para mim. Mas, honestamente falando, os dois últimos processos eleitorais me decepcionaram muito. Alguém vai dizer que em democracia é assim mesmo, que o que venceu é a Ordem, que a agremiação está mais coesa, que tudo ficou para atrás, que o futuro é o que interessa, bla bla bla... Uma ova! É assim - sim, mas não devia ser. Eleição devia ser uma coisa muito séria... de advogados, muito mais séria ainda. A ética e a moral deviam ser o A-Dê-Ene da Ordem. "Adversário não é inimigo" devia ser o fio que cose o seu genoma. 

 

Os advogados deviam ser o espécime da justiça, da transparência, da cordialidade e do civismo. Onde se reunem para discutir ideias devia ser o molde da ética e da moral. Os processos eleitorais da Ordem dos Advogados deviam ser o protótipo da democracia. Cobrir-se de ternos e gravatas e ostentar pastas de pele de crocodilo ou búfalo e carregar molhos de chaves não basta. Lembrem-se da "mulher do César", meus senhores! Sentem e discutam profundamente sem evasivas nem subterfúgios e elevem a vossa fasquia. Emancipem-se a altura da vossa importância e prestígio na sociedade! Não deixem nodoar o último pano que falta. Vocês são a luz da sociedade. Não se desonrem, senhores doutores! Vocês são melhores que isso. 

 

Não rendi convosco. Estou desconsoladamente decepcionado. Aquelas "cobras e lagartos" de um lado para o outro não eram necessárias. Jogar baixo também não era necessário. Vão ver que podiam ter feito um processo eleitoral sem barulho. Um evento civilizado de uma classe que se espera civilizada. Se advogados devem-se insultar para se votarem entre si, então é o fim da picada. Eu esperava muito mais. Pensava que o país ainda tinha alguma esperança. Agora só falta ouvir que há um Nhongo-advogado que está a disparar na 24 de Julho ou na Julius Nyerere.

 

Enfim, ao novo Bastonário, os meus mais sinceros parabéns. Bom trabalho! Una a classe! 

 

- Co'licença!

sexta-feira, 06 março 2020 07:59

Os ajoelhados

O brasileiro e professor de Filosofia, Clóvis de Barros Filho, define os valores como identidade. Ele diz que ao se apresentar a alguém pela primeira vez você fala dos seus valores para a pessoa saber quem você é na essência. Ou seja, quando alguém pergunta "quem é você?", você começa a falar das escolhas que você fez na vida. O seu percurso de vida. 

 

E eu cá digo, se você quer conhecer um Estado, olha para os seus governantes. Se você quer saber a identidade de um Governo, olha o que fazem os seus dirigentes. Isto é, o que responde a pergunta "que Governo é este?" é aquilo que os dirigentes que suportam esse governo fazem. Se você quer conhecer um país, veja as atitudes do seu povo. O que constrói uma nação são as escolhas, as crenças e a identidade do seu povo. Cada um é indissociavelmente o reflexo do outro.

 

Ora, sendo o camarada Edson Macuacua a figura indicada pelo Presidente da República Filipe Nyusi como Secretário de Estado da província de Manica espera-se que este seja o seu fiel representante. Ou seja, Edson Macuacua é Filipe Nyusi em miniatura. Edson Macuacua é a identidade de Filipe Nyusi. Aquilo que Edson Macuacua faz, enquanto Secretário de Estado da província de Manica, define os valores do Estado moçambicano.

 

Não sei em que circunstâncias foram tiradas as fotos do camarada Edson Macuacua que circulam nas redes sociais. Nas imagens, o camarada Edson Macuacua aparece sendo "coroado" com um trono em madeira, sendo dadivado com frutas da época e adornado em camisas de capulana. Mais do que simples gesto de "presenteamento", a cerimónia chama atenção pelo seu ritual de idolatria faraónica. O mais preocupante é o rasgo de sorriso que ele faz ao ser adorado e o a vontade dos adoradores.

 

Na verdade, se aquilo foi um evento de Estado, eu, particularmente, não vejo motivo de tanta celeuma. Não vejo motivos de grande indignação, uma vez que aquilo define a nossa identidade. Se Edson Macuacua é a melhor escolha de Filipe Nyusi para Manica e Filipe Nyusi é a melhor escolha do povo para Moçambique, então, aquela cerimónia define o povo que somos. Aquele acto representa os nossos valores, a nossa identidade enquanto povo. 

 

Paremos, então, com essa indignação hipócrita. Se trocarmos a imagem de Macuacua pela de Nyusi, vamo-nos aperceber que essa revolta não faz sentido. O Macuacua não fez nada de estreia. É assim que tratamos os nossos governantes, desde o Chefe de Estado até o chefe de quarteirão. Aquilo é o que nós somos. Somos um povo de cócoras sem motivo. Um povo que nunca se ergue. Um povo que dá até aquilo que não tem. Um povo uniformizado. 

 

O problema não é de Edson, nem de Nyusi. O problema é do nosso conceito de governante. Os nossos governantes são o reflexo do que somos como povo. São as nossas escolhas. Os nossos valores. A nossa identidade. Antes de pensarmos em mudar os nossos governantes, mudemos as nossas escolhas e os nossos valores. 

 

Quando perguntarem "quem são vocês?", responda: "nós somos os ajoelhados". As pessoas vão entender. O mundo sabe que nós existimos. Não é uma condição, é uma escolha.

 

- Co'licença!

quarta-feira, 04 março 2020 09:01

Os últimos delírios de Samora Machel *

A entrevista está marcada para Chilembene, terra natal do presidente mais borbulhante da África, em todos os tempos, que pecava entretanto por pensar que as coisas deviam obedecer ao ritmo da sua loucura. É manhã solarenta de um domingo que pode estar a começar da pior forma, ou seja, Samora evoca a Deus desmentindo todos os Seus preceitos. Ele disse-me de frente, que Jehová nunca existiu. Chegou a afirmar, na sombra frondosa onde estamos sentados, de homem para homem, apesar de ele representar o símbolo maior do poder, que a bíblia era obra de paranóicos. Mas esse pensamento, claramente era um delírio.

 

Samora Machel passou a noite anterior ao nosso encontro numa cubata desguarnecida, dormindo na esteira de palha previamente preparada, completamente nu, sem travesseiro, respirando o perfume tóxico dos incensos trazidos por curandeiros ndawus de Nova Mambone. Era necessário que assim fosse, segundo soube do próprio durante a entrevista. O poder não se oferece, arranca-se, e ele sabia que estava cercado por bajuladores e gananciosos que nunca o quiseram na cadeira mais importante da governação, por o considerarem  inculto e incapaz de dirigir um Estado moderno.

 

Fui alojado no mesmo lugar, noutra cubata, ao lado da que acolhia Samora, e pude aperceber-me que o homem passou toda a noite a balbuciar. Mas  tive que fazer um  esforço para me abastrair daquele pesadelo porque não era nada comigo. Eu fui ali apenas para entrevistar o Presidente da República, que me parece, desde o primeiro dia que o vi, um grande actor que mesmo assim, carece de descernimento. Ele é capaz de agir como um touro num supermercado.

 

Acordei muito cedo, na madrugada que ainda recebia as últimas gotas do luar. Espretei lá fora pelas frestas da casota, e vi Samora saíndo do seu casulo vestindo uma saiota vermelha, cingida no lombo por um cinturão de pano preto. Estava descalço.  Atrás dele vinha uma mulher com seios enormes à mostra, segurando na mão esquerda um rabo de boi que ia introduzindo num recipiente que trazia noutra mão e chapiscava nas costas do Presidente, e eu fartava-me de rir perante aquele espectáculo ridículo. Nem parecia Samora Machel que rugia nos palanques, Independência ou morte!

 

Depois da “ducha” e do pequeno almoço, fui escolatado por dois brutamontes para o lugar onde vai decorrer a sessão de perguntas e respostas. Indicaram-me a cadeira onde devia sentar e reparei que não se diferia da outra que acomodaria o também apelidado “leão de Gaza”, embora esse epíteto pertencesse a Ngungunhana. E eu estou ali, sentindo com prazer o cantar do vento leve, enquanto espero pela sumidade do nosso tempo. Samora come na cubata, à mão, sentado na esteira com as pernas entreabertas. A panelinha de barro bruto, abastecida de xima e carne, está aconchegada muito perto dos testículos, que estão à mostra diante da mulher com os seios fartos e livres.

 

Serviram-me uma garrafa de água mineral importada da Rússia, para ir bebendo enquanto espero pacientemente pelo “boss”, e eu divirto-me com todo este cenário comandado pelo silêncio. Venero o silêncio. O silêncio é o melhor palco para amar. E o amor está acima de todas as coisas. “Vais amar o próximo, assim como de amas a ti próprio”.

 

Samora Machel sai da cubata vestindo, agora, o uniforme militar que o torna personagem destacável. É um leão saciado, pronto para novas batalhas. Mas contrariamente ao felino rei da selva que ruge depois de encher o bandulho, Samora ruge porque está com medo. Tem medo dos que lhe rodeiam.

 

Olho para ele e percebo que não está seguro. Titubeia na minha direcção. Parece um sonâmbulo que caminha para o fim,  e eu levanto-me para saudar  o ídolo das massas. Samora já não se envaidece. Muito menos embevece. Ele degenera. Está sitiado por um batalhão armado que o protege. Parece Ngungunhana quando estivesse ébrio, metia medo. Só que, Samora Machel, para além de meter medo, ele também está com medo. Não consegue responder às minhas perguntas. Delira em todo o tempo dizendo, A luta continua!

  • * Texto fictício