Os discursos oficiais e dos amigos enalteceram as qualidades ímpares de Rui Baltazar pelo seu papel na construção do estado de direito democrático, como veterano da luta de libertação nacional, como eminente Advogado, Ministro, Embaixador, Conselheiro do Presidente da República, Reitor da UEM, e Presidente do Tribunal Constitucional. A imprensa considerou-o inigualável. Foi pessoa única, conhecida pela sua serenidade, verticalidade, integridade e alta competência.
O nome de Rui Baltazar dos Santos Alves, que fisicamente já não se encontra entre nós, está gravado na minha memória como um homem culto, que olhava longe, criativo, corajoso e de fala simples. Com lucidez de pensamento, rigor ético e coerência nas acções, expressava o seu pensamento profundo, em poucas palavras, sem levantar o tom de voz. Pessoa simples, modesta, afável e solidário. Estas são memórias sedimentadas na longa vivência e trabalho conjunto.
Conheci o Dr. Rui Baltazar em Fevereiro de 1975 quando, na sequência dos Acordos de Lusaka há quase 50 anos (*), foi constituída a Delegação Moçambicana para as negociações com o Governo de Portugal, sobre alguns 'dossiers' fundamentais, que era necessário concluir, ainda na fase de transição.
Tinha eu 25 anos, recém-formado em economia, quando fui integrado na delegação que, em Março de 1975, viajou para Lisboa, chefiada por Joaquim de Carvalho e que integrava Alberto Cassimo, Eneas Comiche, António de Almeida Matos, Victor Barros Santos, entre outros, todos com idade inferior a 35 anos. Em terra, no 'back office' de apoio a esta delegação, estavam Mário Machungo, Rui Baltazar e Salomão Munguambe, todos membros do Governo de Transição, liderado pelo Primeiro-Ministro Joaquim Chissano.
Os acordos então assinados permitiram: (i) a transferência dos activos e passivos do Banco Nacional Ultramarino (BNU) para o Banco de Moçambique, constituído em Maio de 1975, um mês antes da independência; e (ii) a conclusão das obras e a gestão operacional da Barragem de Cahora-Bassa, num quadro em que o Estado de Moçambique ia gradualmente aumentando a sua posição accionista no capital da Hidroeléctrica de Cahora-Bassa, à medida que a sua dívida ia diminuindo, o que conduziu à sua total reversão, anos depois. As negociações com a antiga potência colonial continuaram muito difíceis por mais dois anos, com temas como as chamadas de “dívidas de Moçambique a Portugal” por conta das ´infra-estruturas´ construídas no tempo colonial, obviamente rejeitadas pelo novo Governo de Moçambique.
No essencial, fomos bem-sucedidos. Foi trabalho intenso no seio deste grupo, no decurso do qual cresceu a amizade entre todos os integrantes.
De meados de 1978 até Abril de 1986, Rui Baltazar então com 45 anos, como Ministro das Finanças, eu, como Vice-Governador e depois Governador do BM, então com 31 anos, e os quadros superiores que nos assessoravam, recebemos a tarefa de governar o sector financeiro, num dos períodos financeiramente mais difíceis que Moçambique viveu desde sempre. Numa fase inicial, contavamos também com o Dr. Sérgio Vieira, que havia assumido o cargo de Governador do BM e que teve um papel fundamental em ´moçambicanizar´ a administração e os técnicos bancários e impor disciplina no funcionamento da instituição BM, recém-constituído do BNU. Ele teve ainda um papel importante no processo de troca de moeda: a substituição do escudo colonial e lançamento da nova moeda nacional, o Metical.
No dia-a-dia, enfrentávamos os efeitos das sanções determinadas pelas Nações Unidas e aplicadas em 1976 por Moçambique à colónia rebelde da Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe), o recrudescer das hostilidades do regime do apartheid no seu estertor final, que ostensivamente praticava a política de terra queimada, no meio de profundas alterações na economia mundial, designadamente (i) o fim da era do padrão-ouro e dos câmbios fixos, (ii) alta volatilidade dos preços de petróleo e (iii) no meio da intensa guerra fria entre as grandes potências. Tudo isto ocorreu num país recentemente independente, caracterizado pelo atraso económico e social e de 93% de analfabetismo, sem reservas financeiras suficientes.
Foram tempos difíceis, tempos de penúria. Ao longo de oito anos de trabalho quotidiano, de grande carência de cambiais, encontrava-me, por vezes, duas vezes ao dia, com o Ministro das Finanças. Tal era a necessidade de concertação entre o Ministro das Finanças e Governador do Banco de Moçambique e a nível dos seus quadros. Esse foi certamente um dos elementos que contribuiu para evitar o colapso financeiro total. Valeu o espírito de trabalho árduo, a dedicação, o empenho e a elevada confiança e amizade que se gerou entre nós.
Tive o privilégio de ser seu par no Conselho de Ministros do Governo do Presidente Samora Machel. Em conjunto com os demais ministros, vivemos momentos conturbados, sofremos as agruras e as angústias dos dias difíceis de manter a economia a funcionar, no mínimo, enquanto o apartheid, na sua agonia, fazia de Moçambique, a terra queimada! Com coração apertado, registávamos os massacres, as mortes indiscriminadas de civis, a frequente sabotagem do sistema de distribuição de energia, a paralisação dos sistemas ferro-portuário, a destruição de infra-estruturas, de viaturas e equipamentos, a destruição de unidades de produção, em particular das açucareiras de Luabo e Marromeu, e as constantes paralisações das açucareiras de Xinavane, de Búzi e Mafambisse, das chazeiras de Gurué, entre outras.
Conhecíamos diariamente os baixos níveis de reservas financeiras e de reservas petrolíferas, com sistemáticas rupturas, que reduziam as opções no gasto das divisas. Para assegurar a estabilidade social, com mágoa, tivemos de deliberar sobre o racionamento na distribuição alimentar nas cidades. Poucos conheciam as contas nacionais, a reduzida liquidez disponível em moeda nacional, as poucas reservas cambiais disponíveis, que impunham sérias restrições nas importações para acorrer às necessidades para o funcionamento da economia.
Rui Baltazar era rigoroso na gestão financeira. Ele próprio vivia modestamente. Foram tomadas medidas de grande austeridade nos gastos públicos. O número de pessoas das delegações que viajavam para o exterior era estritamente escrutinado e cada membro só recebia 3 dólares dos EUA (menos de 200 Meticais (**), por dia, para as suas despesas pessoais no estrangeiro, que não precisavam de justificar – o chefe da delegação recebia 5 dólares dos EUA, por dia, (cerca de 320 Meticais). Não havia excepções. Não era permitido esbanjamento, nem fausto. Nosso tempo de trabalho diário ultrapassava as 12 horas por dia, por vezes, aos fins-de-semana. O mesmo sucedia a todos os quadros que connosco trabalhavam. Vivemos juntos este drama humano e de sobrevivência da Nação. Nunca ouvi um lamento ou um desabafo por parte de Rui Baltazar. Muitas outras coisas, não é útil contar, permanecerão nas nossas memórias.
Sob a direcção do Presidente Samora Machel, com o apoio próximo do Dr. Rui Baltazar e a participação do Dr. Eneas Comiche, negociamos o 1º reescalonamento da dívida externa de Moçambique, ao abrigo do ´Clube de Paris´. De forma similar, negociamos a adesão de Moçambique às instituições de Bretton Woods em 1984, cujos acordos foram assinados em Washington (EUA) por Rui Baltazar, na qualidade de Ministro das Finanças.
Não obstante ser muito rico culturalmente, Rui Baltazar não acumulou riqueza material. Apesar do imenso poder que ambos detínhamos no sector financeiro, a governação foi impoluta, sem desvios. A lisura e o exemplo de rigor e de trabalho árduo permitiram-nos exercer as funções com determinação e sempre com a convicção de que a guerra iria terminar e a paz seria restabelecida, o que permitiria retomar a normalidade da vida. Tudo isto foi vivido com intensidade e sem possibilidade de contar às famílias ou aos amigos.
Num certo momento, com o fim do apartheid e os Acordos de Roma, as armas calaram-se e, em paz, toda a região da África Austral ficou livre do racismo e da discriminação. O nosso País retomou a sua vida, com novos desafios de crescimento e da luta contra o subdesenvolvimento e o atraso. Tempos mais difíceis foram ultrapassados. Moçambique voltou a reerguer-se, olhando com esperança o futuro, com novos desafios. Nos últimos anos da sua vida, com o avanço da corrupção e os baixos níveis de ética e de moral na gestão pública, nos vários fóruns, Rui Baltazar expressou a sua frustração e se demarcou dos corruptos que se serviam do bem público, que a todos pertence. Sem hesitar, acrescentava que não entendia como é que um País com carência tão aguda de quadros experimentados se dava ao luxo de os desperdiçar, como se fossem descartáveis. Estes são certamente os maiores desafios da fase presente da nossa vida. Para os superar, os jovens devem inspirar-se neste imenso legado de Rui Baltazar.
Esta foi a realidade concreta que enfrentamos. Muitas instituições hoje florescentes assentam nesta dura realidade que exigiu coragem, ousadia e criatividade. Foi certamente difícil, muito difícil, pessoalmente muito doloroso. Não foi pera doce, não!
A intensidade do trabalho foi tal que germinou a amizade, a confiança, o respeito e a admiração, mútuas. Sendo eu muito jovem, o Camarada Rui Baltazar foi meu mentor. Aprendi dele o rigor, a importância da moderação, a necessidade de fundamentar as palavras e os conceitos, a ser contido nas falas e prudente nos actos e contratos. E a necessidade de ler muito, de estudar, sempre estudar, estar actualizado, para melhor enfrentar o futuro.
Devido à enorme amizade, diria cumplicidade, forjadas em anos de trabalho e de convivência, num ambiente familiar e de amigos, Rui Baltazar foi a pessoa escolhida para o discurso da festa do meu 60º aniversário. Foi gratificante ouvir as suas palavras generosas que retrataram o tempo em que juntos contribuímos para a edificação da 1ª República, ao lado de muitos outros heróis vivos e de outros que já não se encontram entre nós, que a Pátria por que lutaram ainda não os reconheceu nem exaltou os seus feitos. Foi gratificante conviver com esta figura tão exemplar, tão humana, tão simples, um jurista de primeira água!
Evocar o nome de Rui Baltazar é falar do seu nacionalismo, do seu patriotismo, da sua fidelidade e lealdade à causa do Povo. Rui Baltazar era altruísta, não se serviu do Estado. Pelo contrário, serviu o Estado com honestidade, respeitou a coisa pública, acima de interesses pessoais, o que faz dele uma referência, que os jovens nele se podem inspirar. Há mortes que pesam menos que uma pena. Há mortes que provocam um estrondo - a morte de Rui Baltazar provocou um abalo, gerou um vazio, difícil de preencher.
De forma incontornável, Rui Baltazar ocupa um lugar no Panteão dos Heróis de Moçambique, ao lado de muitos outros notáveis que deram tudo e arriscaram as suas vidas para erguer bem alto a Bandeira de Moçambique independente, que aglutina no seu seio moçambicanos de todas as raças, etnias, religiões ou origem social. Por enquanto, o Rui Baltazar de todos nós está, certamente, no Panteão Celestial.
A sua grandeza humana, o seu enorme legado, servirá de inspiração principalmente para os jovens, para continuar a obra iniciada e a alicerçar os fundamentos da nossa vida, da nossa história.
Descanse em Paz, Amigo Rui!
Até sempre Dr. Rui Baltazar dos Santos Alves, Grande Homem!
(*) Acordos de Lusaka, em 7 de Setembro de 1974
(**) ao câmbio actual
As “profecias” de TRUMP sobre a Guerra na UCRÂNIA e outros conflitos armados mundiais – Análise!
III. Não creio que TRUMP tenha em manga uma fórmula mágica para acabar com conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia, muito menos com outros conflitos militares internacionais e/ou regionais sem abrir uma “III Guerra Mundial.” Pensar nas estratégias militares acionadas para assassinar QASEM SOLEIMANI através de uma emboscada desumana com recurso a um ‘drone-bomba’ contra PUTIN seria uma solução sem desfecho feliz. A Rússia de PUTIN, não é a mesma que o IRÃ DE QASANI SOLEIMANI – para os americanos e boa parte da comunidade internacional, terrorista; mas, saudoso General QASANI para os iranianos que choraram sua morte). Para os russos, ainda que não transpareça, PUTIN é claramente uma Máquina Robótica substituível. Não se trata de PUTIN (…), mas da ideologia Putin; uma ideologia, em última análise, russa/nazista, hitleriana… seguida por milhares de russos e pela esmagadora maioria dos parlamentares russos. Pensar, por exemplo, que a agressão (ou melhor: que a Invasão) Rússia à Ucrânia foi legitimada pelo “Parlamento comunista”… enfim, os dias que seguem dirão mais sobre as “profecias demoníacas” de TRUMP. Desta vez, saímos do “coração generoso” de PUTIN – como escrevemos no Semanário, Jornal Canal de Moçambique – e voltamos para as lições dos “versículos satânicos” de RUSHDIE ao “coração generoso” de TRUMP. Enquanto acordamos pela noite histórica nas americanas de 2024 que em muito pode ditar o futuro do mundo, assistimos a outra noite histórica (poucos dias atrás) para alguma alegria nossa: acompanhamos que Parisienses celebram vitória do bloco da esquerda em França de MACRON e MBAPPÉ. Finalmente, um calmante para os nossos corações… PARIS, mantém-se: anti-fascista, anti-racista, anti-xenofaba! O milagre de Deus (e do Amor) sempre acontece!
Mas a vida é assim, como as marés que vibram numa época, e baixam na época que vem. As flores também. Acordam vigorosas nas manhãs com os cheiros perfumados da noite, e ao picar do sol cedem. Perdem a graça, e ninguém as quer. É o interminável recomeço do ciclo. Que nos faz acreditar na força interior da utopia.
Eu também sou assim, sigo, ou sou levado a seguir pelos espíritos, esse caminho do sol que nasce no esplendor do amanhecer, exubera em todo o dia, porém vem o anoitecer e apaga essa luz que supera todas as estrelas. É por isso que não tenho medo, aliás perante as pedras do caminho visto o escafandro da música dos bitongas, para ver se amanhã acordo outra vez, com as mesmas azagaias. Com os mesmos ritos.
É o mar a minha prancha para os voos da imaginação, então volto sempre a este lugar para ouvir a ressonância das ondas que se esbatem na areia. E hoje cheguei a meio da manhã com a maré vaza e, para minha surpresa, está no meu lugar habitual uma mulher desconhecida deitada de barriga, deixando as fartas nádegas ressurgindo do fio do bikini, e eu ainda me perguntei: mas o que é isto?!
Sentei-me ali mesmo, ao lado dela, baralhado pela sensação de alta voltagem que me percorria por inteiro, não sabendo bem se por causa de uma mulher deitada no meu lugar, deixando as nádegas cheias de carne em exposição, ou porque sou fraco. Esqueci-me completamente de contemplar os pernilongos dos flamingos que dançam na esgravatação dos moluscos, e já estou em ebulição, sou feito de carne também.
Bebi um gole da cachaça que sempre levo no bolso à praia para que a harmonia entre mim e a natureza se aclare, mas este gole foi longo demais. Os meus olhos não saem das nádegas livres de uma mulher que está deitada na areia da praia, sòzinha, ainda por cima no meu lugar onde implantei uma sombra de folhas de palmeira para estar sozinho na minha solidão, e eu jamais imaginei que isto podia acontecer num retiro que ainda perserva os tabus.
Bebi outro gole numa altura em que ela se revirava, deitando-se agora de costas com as pernas estendidas, meio afastadas uma da outra, para gáudio da loucura. Os seios são perenes, oprimidos porém no soutean, e o bikini só protege a parte mais macia de um corpo esculpido por mãos invisíveis, o resto está fora. E essa mostra não será propriamente um problema, estamos na praia.
A maré está a encher e os flamingos vão bater as asas em liberdade, rasgando os céus em fila para outros poisos, mas eu estou hipnotizado por um ser feminino deitado no meu lugar, na minha sombra. Na sombra das minhas lucubrações.
Então ela agora levanta-se. Espreguiça-se. Olha para mim despreocupada.
- Oh, desculpa, o senhor é o dono desta sombra?
- Sim, sou eu.
- Avisaram-me uns miúdos que passaram por aqui, disseram-me que é um sítio privativo, desculpa pela invasão.
- Você não invadiu o meu lugar, você adornou a minha sombra.
Afinal somos conhecidos. Estudamos na mesma escola primária, e depois o tempo separou-nos, cada um para o seu destino. Mas, como o próprio mar, voltamos para a nossa terra, depois de muitas escalas pela vida, com muitas alegrias e derrotas até hoje, que recusamos ser vencidos.
Abraçamo-nos longamente. Bebemos juntos a cachaça, e eu disse assim para ela, a vida dá-nos sempre um espaço para recomeçar! E ela respondeu: é verdade!
Existem músicas que encaixam na perfeição nas nossas memórias. Alguns artistas se identificam com esses estilos musicais e deixam o seu rastilho de génios nesses estilos. O Jazz, por exemplo, só é produzido por lendas. Quem envereda por estas melodias precisa de ter mais do que arte; deve se revestir de rebeldia e genialidade.
O Jazz nasceu do improviso de solos sobrepostos de arranjos. Em finais do século XIX e bem no começo do século XX, escravos e seus descendentes gritavam pela liberdade. Vociferavam a grandeza de um continente e de povos subjugados. Negavam a humilhação que o mundo lhes quis impor.
Existe uma profunda diferença entre viver a vida com vitórias e com derrotas. Nos confrontamos, existencialmente, com estas facetas.; tudo faz parte da condição humana. Revisitar os eventos tendo por pressuposto o benefício da percepção ou do conhecimento, permite entender o passado. Este postulado pertence a Eduardo Mondlane Júnior, Eddie, que prefaciou um dos livros de sua mãe, Janet Rae Mondlane, as celebríssimas confidências que trocou com seu esposo, entre declarações de amor, paixão e desencanto. Esses ecos que perpassam tempos e memórias.
Janet Mondlane transitou pela então Lourenço Marques, entre Novembro de 1960 e meados de 1961. Ela e seus dois filhos, sem a presença de Mondlane, foram os nobres hospedes da família Clerc. Espaço privilegiado na missão presbiteriana de Moçambique, nem por isso, imune à suspeitas. Janet recorda, com fervor, dos serões musicais da família Clerc. Noites musicadas à piano, flauta e violino. As habilidades musicais do próprio Clerc, acompanhado pelo casal de reverendos Morier-Genoud e sua esposa Juliette. Estas eram as manifestações messiânicas e revolucionárias de uma igreja que também se libertava.
Jennifer Chude, que grafava o seu nome musical, emprestava a sua voz. Cantava muito afinada e entrava para um universo de onde nunca mais se libertou. Sua capacidade musical era notável. Acertava as notas com exactidão e aprendia os versos com mestria. Sua mãe não tinha dúvidas do seu futuro. Ela era uma pequena lenda que nascia para engrandecer o jazz; trazia de volta os ritmos que não sendo da sua idade eram da idade dos seus progenitores. Não admira que a rebeldia desconcertante desses sons a tivesse enfeitiçado.
Desde esta época, até a altura que integrou os treinos de preparação militar em Bagamoyo, na Tanzânia, ela virou uma voz autorizada de uma paixão revolucionária e não deixou dúvidas da sua capacidade de subversão. Ela própria forçou um aprendizado na academia de coreografia de dança moderna de Filadélfia; esbanjou o seu perfume artístico na academia de dança de Moscou, na União Soviética e, anos mais tarde, assentou arraias em Brooklyn em Nova Iorque. Os génios podem ter estado em Nova Orleans, mas, é em Nova Iorque que eles se revelam.
Este percurso a definiu com uma artista sublime. Era o espírito libertário do qual a família não tinha dúvidas, nem do seu talento, muito menos da sua graciosidade e da sua vocação. É comum as famílias não aceitarem que os filhos enveredem por carreira musical ou desportiva, antes de se firmarem na escola. A opção passa por trabalho formal, remunerado e com títulos. Todavia, o impulso musical da Chude a perseguia, criando em si contradições insanáveis e uma disciplina tão ortodoxa quanto inquestionável.
Para o casal Mondlane, revolucionar e libertar um país, com crianças tão pequenas se tornou, igualmente, um problema por resolver e era preciso pensar na sua segurança. Dar es Salaam, apesar de muito segura, requeria outras condições. Por falar no desenvolvimento dos talentos naturais, escreveu Mondlane para a sua esposa, em 1967, que os miúdos, por vezes, faltavam às lições de piano e trompete. A Chude, amiúde, vivia aborrecida por não ver retomadas as suas aulas de ballet.
O tempo fez da Chude uma das mais prolíficas artistas de jazz de Moçambique. A rigor, ela emergiu como figura central e se tornou mentora de tantos outros. Cantou a liberdade, a sua cidade de Maputo, cantou o amor, salsas e coentros; virou uma iconoclasta. A sua forma de ser, quantas vezes incompreendida, revelava o inabalável compromisso com o jazz, com a cultura e, sobretudo, com o seu activismo social que tinha como substrato o seu altruísmo.
No começo dos anos 80, e residindo Estados Unidos da América, Nova Iorque, lançou os álbuns “Tomorrow’s Child” e “Samurai”; internacionalizou Moçambique. Um país socialista e de que o capitalismo teimava em combater. Colaborou com Marcus Miller, um dos expoentes máximos do Jazz and Blues no mundo. Escreveram canções, assombraram palcos e se transformaram em ícones indispensáveis. Marcus Miller pode ter sido quem mais sofreu com a partida precoce da Chude. Enviou uma mensagem que não era apenas dirigida à família Mondlane, mas para África e para o mundo; reconfirmou a rebeldia da sua amiga querida e testemunhou o quanto ela ajudou artistas como Roberta Flack, Jason Miles, Lionel Richie e tantos outros, que gravaram algumas das suas letras, cantaram com ela e fizeram de Moçambique um país que não poderia ser omitido.
Uma voz tão apaixonada e melodias de timbre inigualável, levaram-na a ser agraciada com o Grande Prémio, em diferentes festivais internacionais, nomeadamente Coreia do Sul, em 1980; Japão, em 1981; prémio artista do ano, pela Rádio Moçambique, em 1999 e figura central da Rádio Moçambique, em 2016. O seu álbum “Salsa e Coentros” pode ter sido premiado em outros festivais que bem desconhecemos. Estes prémios revelavam esse compromisso pelo desenvolvimento artístico de Moçambique e, sobretudo, um legado para as novas gerações e para esse jazz moçambicano com milhares de seguidores, nem por isso, ainda tão assumido por todos.
Ninguém se olvida das suas intervenções, palestras e outros eventos nas escolas de música e artes e, nas diferentes associações de músicos, espalhados pelo país. Estes grupos populares não carecem de reconhecimentos públicos e nem se quer, dispõem dos meios para esses efeitos. Este é o maior legado de uma mestra que o tempo soube testemunhar e que muitos de nós, apenas, vimos passar como uma rara galáxia dessa constelação de estrelas.
Chude permanecerá sempre actual e inquietando as nossas memórias. Com o dobro da idade de Cristo, ela partiu de forma prematura. Sem muitas coreografias, essa pungente mulher da subversão e de causas, repousa junto de seu pai, Eduardo Mondlane. Revisitam Moçambique, falam sobre a independência; sobre o socialismo tão relevante enquanto durou, sobre a prolongada guerra entre irmãos, sobre o actual capitalismo selvagem, trasvestido de neoliberalismo, da democracia incipiente e titubeante; falam de um país que busca a reconciliação nacional, a paz e progresso social.
A mente criativa precisa de impulsos e de absorver do mundo e lugares as suas experiências. O artista é, apenas, um intermediário, que vive ao serviço da criação. As lendas estão sempre presentes. O sol continuará brilhando para todos, mas, nem todos podem reflectir o seu brilho.
“A falta de alimentos, como resultado da deslocação das populações por causa da guerra, devido a calamidades naturais ou outros fenómenos naturais, ate é compreensível, contudo, hoje, depois de celebrarmos os 49 anos da nossa independência, falarmos de 45% de população subnutrida, com destaque nas crianças, parece-me exagerado. Se considerarmos que Moçambique realiza estudos periódicos para aferir o grau em que se encontra em matéria de nutrição, é pior ainda, ou usamos mal os estudos que realizamos ou andamos “brincando” aos estudos.
Devemos, como moçambicanos, cada um no seu sector, combater as causas da malnutrição, sobretudo em crianças e mulheres grávidas. Mas também devemos educar a mulher a evitar a gravidez, quando as condições não são favoráveis. Todos devemos ser activistas de saúde alimentar”.
AB
“Moçambique é um país deficitário em alimentos, classificado em 103º de 107º no Índice Global da Fome de 2021. Além disso, o conflito no Norte afectou cerca de 1,5 milhão de pessoas - deslocando 1 milhão de pessoas nas províncias de Cabo Delgado, Nampula e Niassa, sendo 55 por cento crianças. De Outubro de 2022 a Janeiro de 2023, a situação de insegurança alimentar em aproximadamente 36 por cento dos agregados familiares, provavelmente, atingiu níveis críticos (Fase 3 do IPC), uma vez que a época de escassez começou em Novembro de 2022, aumentando as vulnerabilidades existentes. Quase 1,45 milhões de pessoas enfrentam actualmente níveis elevados de insegurança alimentar aguda, das quais 932.000 se encontram na província de Cabo Delgado”.
In UNICEF
Algo está a falhar nos sucessivos Governos de Moçambique, no que respeita ao combate à insegurança alimentar e subnutrição crónica. Existem várias narrativas sobre o assunto, mas o facto é que nada muda, continuamos a reportar graves bolsas de Fome em determinadas regiões e em outras, reporta-se fartura, que deixa os camponeses com os nervos à flor da pele, porque não conseguem vender os seus excedentes agrícolas, o que os leva a diminuírem as áreas de produção.
Para minimizar os impactos da insegurança alimentar e subnutrição, o Governo tem vindo a criar organizações e ou institutos, como por exemplo o Instituto de Cereais de Moçambique, que deveria ser a instituição que cria a balança de alimentos, através de compra de último recurso, encaminhando esses alimentos para as zonas onde se antevê bolsas de fome. Temos ainda o prognóstico facilitado pelo Instituto de Meteorologia, que produz Boletins de previsão de chuvas no País. Contudo, pelo que parece, o trabalho de todas essas instituições não é usado para o bem-estar das populações. Veja a seguir as atribuições do Instituto de Cereais de Moçambique.
“a) Intervir, como agente de comercialização agrícola de último recurso para assegurar a compra, agenciamento, intermediação, armazenamento, conservação, o escoamento de excedentes agrícolas contribuindo para a estabilização de preços; b) participar e contribuir no estabelecimento de reservas estratégicas de cereais, leguminosas e oleaginosas para a segurança alimentar; c) promover e coordenar parcerias público-privadas para o desenvolvimento de programas e projectos estruturantes sobre a cadeia de valor da comercialização agrícola, com enfoque para os intervenientes; d) contribuir, em coordenação com outras entidades, na instalação de infra-estruturas de armazenagem e conservação para dinamização do comércio rural nas zonas fronteiriças; e) colaborar no mapeamento, registo e monitoria das acções realizadas pelos intervenientes da cadeia de valor da comercialização agrícola; f) identificar fontes, facilidades e oportunidades de investimento e financiamento às actividades da cadeia de valor da comercialização agrícola e agronegócio; g) mobilizar recursos financeiros e materiais, por via de entidades públicas, parceiros de cooperação e de desenvolvimento, para o estabelecimento, em parceria com instituições financeiras, de linhas especiais de crédito e outras formas alternativas de inclusão financeira para apoio à cadeia de valor de comercialização agrícola; h) estabelecer uma base de dados sobre as necessidades do País em cereais e outros produtos agrícolas, com vista a contribuir para a normalização no mercado interno destes produtos; i) gerir as infra-estruturas de armazenagem, conservação, silos e agro-indústrias; j) assinar protocolos, memorandos e contratos de gestão de infra-estruturas públicas adstritas à cadeia de valor da comercialização agrícola; e k) apresentar propostas sobre o quadro de políticas, legislação e demais regulamentação sobre cereais e outros produtos da comercialização agrícola”.
In, Regulamento Interno do Instituto de Cereais de Moçambique
Mas não só, Moçambique tem gasto rios de dinheiro em estudos do fenómeno desde a independência nacional. Se podemos atribuir a falta de informação, no tempo colonial, depois da independência, sobretudo na primeira República, muito se fez para reverter a situação alimentar e nutricional em Moçambique. Muitas organizações nacionais e estrangeiras foram sendo criadas para lidar com o fenómeno da subnutrição. Mas se antes se falava de localização geográfica específica ao nível nacional, hoje, é o País inteiro que apresenta índices de desnutrição. Veja, abaixo, os estudos que Moçambique realiza, de forma sistemática.
“Em Moçambique vários estudos são feitos para avaliar a situação de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), nomeadamente: (i) Inquérito Demográfico e Saúde (IDS), (ii) Inquérito aos Orçamentos Familiares (IOF), (iii) Inquérito sobre Indicadores Múltiplos (MICS), (iv) Estudo de base de SAN, (v) Avaliações anuais de segurança alimentar e nutricional. Os primeiros quatro estudos medem a Insegurança Alimentar e Nutricional Crónica (InSAN Crónica), enquanto as avaliações anuais medem a Insegurança Alimentar e Nutricional Aguda (InSAN Aguda).
As avaliações anuais da InSAN Aguda são coordenadas pelo SETSAN e participam os seguintes sectores: Agricultura, Pescas, Saúde, Educação, Águas e o INGC. Contam com assistência técnica e financeira do Programa Regional de Avaliação e Análise da Vulnerabilidade (SADC/RVAA) e parceiros locais (Agências das Nações Unidas, FEWSNET) ”
In Situação de Segurança alimentar e nutricional, Ministério de Agricultura.
Dito isto, talvez seja altura de reavaliar a forma como a mensagem chega aos interessados (população) porque, 49 anos depois da nossa independência nacional, falarmos de 43% de população em insegurança alimentar e nutricional é bastante preocupante. Devemos rever a mensagem difundida e propor novas formas de abordagens, reconhecendo que, muitas vezes, os políticos têm se aproveitado da ignorância das pessoas para tirarem proveito e é nestes casos que se pode dizer que o Estado Democrático atrasa o desenvolvimento humano.
Adelino Buque
Nos últimos tempos estamos a ser, literal e sistematicamente, inundados com a figura de Daniel Chapo, o candidato presidencial da Frelimo às eleições de Outubro próximo. Chapo é já uma vírgula nacional. Nascido em Inhaminga, distrito de Cheringoma, Sofala. Chapo chegou a este vale de lágrimas no ano em que organização que o endossa, se assumia em congresso (o Terceiro) de orientação marxista-leninista, abraçando o doce socialismo científico, na esperança certa de instalar o homem e uma sociedade novas onde cada qual viveria conforme as suas capacidades e cada qual segundo as suas necessidades. Curiosamente, o ano do início da guerra entre os moçambicanos.
Em 1994 quando Moçambique realizava as suas primeiras eleições gerais e multipartidárias, Chapo navegava ainda nas turbulentas e doces águas da puberdade, ainda não podia votar. Hoje 30 anos se passam da única eleição que ele não terá votado, e o bebé de 1977, já adulto e senhor, é um dos em quem se espera votar e, para sua felicidade, que a maioria o confie e escolha.
Na eventualidade de ser eleito, será de facto o marco da propalada transição geracional na Frelimo e no estado moçambicano. O primeiro, que vive os seus momentos mais moribundos da sua existência; sem ideologia, sem valores e o segundo, arrastado pela indefinição e incapacidade agravada pelo recuo tribalista de um partido que se diz de “massas”. “A Frelimo é o Povo!” gritava Samora, mas que guarda as ma$$as para um grupo cada vez mais reduzido.
A utopia que pairava no ar quando Chapo viu a luz do dia no agora longínquo ano é uma doce recordação de um país martirizado por um liberalismo bandido, pela consagração de uma burguesia prostituída aos sabores e encantos de grupos criminosos internacionais e pela cada vez mais ousada e desavergonhada malandragem local.
A burguesia, outrora combatida num hino “Avante operários camponeses/ na luta contra a exploração (...) Somos soldados do povo marchando em frente na luta contra a burguesia”. Hoje o revolucionário refrão foi substituído pelo liberal “pela paz, pelo progresso” vincando uma união quase incestuosa numa Frelimo bipolar onde Chapo não é nenhum extraterrestre nas metamorfoses que atravessam a história do partido e do país.
Aliás, Bob Dylan anunciara nas vésperas da queda do murro de Berlim que “the times are changing” e a Guerra Fria hoje decorre sob outros prismas e em pequenos tamanhos, onde a economia é campo fértil. Chapo pode agarrar o ceptro mas o consulado de Nyusi pode deixar-lhe de herança, tal como Guebuza deixou a Nyusi, uma realidade minada e múltiplos barris de pólvora com os rastilhos acendidos:
1.) as Dívidas Ocultas: apesar das boas notícias recentes;
2.) Cabo Delgado: onde ainda se escondem na noite os feiticeiros da estranha guerra que martiriza inocentes e fortalece um grupo específico que ainda esconde-se nas sombras; e
3.) o tráfico de drogas: que ganha mais terreno na nossa sociedade que assaltou muitas instituições e já gangrena o país.
As notícias falam de um Nyusi que levou Chapo pelas mãos para Kigali para o chancelar junto ao General Paul Kagamé, (O Mau) o verdadeiro Comandante em chefe da luta contra o terrorismo e da protecção dos interesses gauleses na região Austral de África. Uma iniciação que pode custar muito caro a Chapo.
Chapo é um dos “quadros” saídos dos bancos da Faculdade de Direito da maior e mais importante universidade pública moçambicana. Certamente, aprendeu dos seus professores e mestres, conhecimentos sólidos sobre as múltiplas dimensões da natureza do Estado de Direito democrático, do primado da lei e dos riscos da sua subversão. Não é de todo desavisado.
Outro dinamismo que nos é dado a assistir é a romaria do entrosamento apressado, nos círculos partidários de um Chapo (já) Presidente e da repetição da entronização do líder visionário no movimento associativo de “Amigos de Chapo”, “Família de Chapo”, “Tias de Chapo”, “Colegas de Chapo”, “Vizninhos de Chapo”. Tal como aconteceu com Nyusi, mas na versão exagerada da então Anyusi. Sendo, sempre, os seus mentores movidos por muito boas intenções, as tais que enchem o inferno e a terra infernizando a nossa já mísera vida.
Assiste-se nas televisões ou em leaks imprudentes, um Chapo bastante ocupado ou uma multidão bastante agitada em tê-lo como seu, ou à espera da sua atenção. Empresários, académicos, políticos, músicos, homens, mulheres e crianças, santos e pecadores. Todos estão à espera do Mano Chapo para lhe renderem as vénias e o colocarem no panteão de líder visionário e colherem os frutos dessa entronização enganadora para anos depois falarem mal dele e o acusarem de não ouvir ou de ser alguma coisa até incapaz e ambicioso.
Numa organização já assumidamente assaltada, falta apenas assaltar o próximo timoneiro e tudo está a ser feito nesse sentido. Deste lado, pedimos e alertamos, Mano Chapo, que ponha a família de lado e acima de tudo proteja os seus filhos das tóxicas poeiras do castelo do poder quando escolher seguir esses grupos de malandros e abandonar os desejos e vontades adiadas de um país e um povo que até aqui, quando não faz guerra, só tem vivido de bichas, reuniões e promessas.
Esperamos, rezamos e esperamos que seja finalmente o tão esperado Pagador de Promessas.