POSICIONAMENTO
Nós, “Mulheres ComVida”, aliança de várias OSC de luta pelos direitos humanos das mulheres, não podemos deixar de nos solidarizar com todos os esforços que estão a ser feitos pelo Governo, entidades privadas e sociedade civil para fazer face à pandemia do COVID19, que pode vir a resultar numa verdadeira tragédia, à semelhança do que está a acontecer em várias partes do mundo.
Todavia, guiadas pelo mandato da justiça e da igualdade de género, temos que repisar que o Covid 19 impactará de forma diferente mulheres e homens, mercê das desigualdades de género que estruturam as nossas sociedades. A este propósito, congratulamos o Fórum Mulher pelo excelente documento de análise de género da pandemia, e recomendamos a sua leitura (“Dimensões de Género da COVID-19 em Moçambique”), neste link: http://www.wlsa.org.mz/mocambique-o-covid-19-numa-perspectiva-de-genero/
Num país já afectado por calamidades naturais, como o Idai e o Kenneth, as condições de vida das mulheres são particularmente difíceis, considerando que é sobre elas que recai a responsabilidade de alimentar e prover a família. Lembramos também a particular situação de Cabo Delgado, em que mais de 100 mil mulheres estão deslocadas, mercê dos actos da insurgência armada que vêm ganhando cada vez mais terreno.
Para além disso, e como já mencionamos acima, as desigualdades de género são estruturantes das nossas sociedades e garantem que mulheres e homens ocupem lugares diferenciados e não tenham o mesmo acesso aos recursos. Os homens nos lugares do mando e as mulheres com o dever de obediência, é uma forma recorrente de estruturar a família e a comunidade, influenciando também o funcionamento das instituições estatais e mesmo espaços como a escola, a saúde e a justiça.
Por tudo isto, o Estado deve incluir nos dispositivos que têm vindo a ser criados e nos documentos publicados, nas estratégias da Comissão Técnica e Científica criada no MISAU e nas conferências de imprensa diárias, medidas especiais de protecção das raparigas e mulheres. À semelhança do recente discurso do Secretário-Geral da Nações Unidas, é preciso alertar a sociedade, as comunidades, as cidadãs e os cidadãos, para os potenciais aumentos da frequência e do grau de violência contra mulheres e crianças.
Com efeito, de todo o mundo surgem indícios de aumento da violência doméstica e violência contra crianças, devido à insegurança da situação e ao confinamento forçado. O nosso país não é excepção, pois, o convívio quotidiano prolongado e forçado em casa pode propiciar o agravamento de actos de violência contra as mulheres, dada a estrutura hierarquizada e autoritária das relações de poder desiguais em casa. Essa violência pode ser não só física como sexual e psicológica, havendo fortes probabilidades de se estender também às crianças e com particular incidência nas crianças de sexo feminino.
As cidadãs e os cidadãos, bem como as autoridades dos bairros, devem ser mobilizadas/os para estar atentas/os e para intervir em caso de suspeita de violência, mesmo dentro das casas, pois, assim se poderão salvar vidas e a integridade física de mulheres e crianças.
Do mesmo modo, as leis que protegem os direitos de mulheres e raparigas tendem a ser pouco aplicadas, por causa da convicção de agentes do sistema de administração da justiça e de uma parte do público de que elas são injustas e contrariam os papéis tradicionais reservados a mulheres e homens. Este é o momento para reverter esta situação e salvar vidas. A violência doméstica nas suas várias formas é crime, para os agressores não existe perdão, mas lei!
Reconhecemos também que as organizações da sociedade civil estão a ter um preponderante papel na contenção desta pandemia, mas apelamos para que refiram em todos os seus posicionamentos públicos que são as mulheres o grupo mais vulnerável à exposição do vírus e à violação dos direitos humanos. Mesmo aquelas OSC que não estão directamente a trabalhar na área dos direitos humanos das mulheres, não devem ignorar uma situação que poderá impactar de forma tão gravosa na vida de tantas pessoas.
Não podemos deixar de referir a importância do papel dos órgãos de comunicação social públicos e privados, com destaque para as rádios comunitários. É fundamental que, a par da disseminação de mensagens de protecção contra o vírus, desenvolvam acções de divulgação de actos de violação dos direitos humanos das mulheres, das leis que protegem os seus direitos e também dos dispositivos de protecção existentes ou que possam localmente ser postos em prática. É preciso passar a ideia de que é nossa responsabilidade cidadã intervir para defender a integridade física e a dignidade de qualquer pessoa, mesmo que para isso tenhamos que intervir no espaço da casa, que não pode e não deve ser impermeável às leis e aos direitos garantidos por lei.
É verdade que este é um tempo de pandemia e de grave crise sem precedentes, mas deve, igualmente, ser o tempo da solidariedade, em que crescemos como pessoas e nos afirmamos seres humanos, independentemente de sermos mulheres ou homens, desta ou daquela religião, deste ou daquele partido.
Nós todas e todos, na comunidade, vamos reinventar maneiras de estarmos juntas/os, na igualdade, no respeito e na diferença. Eu, tu, ela/e e nós, vamos reaprender a ser solidários e perceber que a nossa maior riqueza nos vem dessa força que a cooperação e a compreensão mútua cria.
Nas famílias, é altura de criarmos espaços de afecto e não de hierarquias e desigualdades. Mulheres e homens, adultos e crianças, devem ser respeitados nos seus direitos e nas suas necessidades.
Como plataforma, nós, Mulheres ComVida, saudamos todas as iniciativas já existentes que vão para além da simples preocupação de contenção das expansão do vírus, para tentar garantir a defesa dos direitos humanos e apelamos para que o governo tome como sua prioridade a contenção da violência contra mulheres e crianças, para que possamos sair desta crise, independentemente de quão grave ela venha a ser, com a certeza de ter dado o nosso melhor na protecção de todas e todos cidadãs/ãos.