Em 1973, ainda em período colonial, tomei conhecimento da existência da Frelimo. Logo me tornei simpatizante e, ainda jovem, iniciei minha actividade política na clandestinidade, mesmo sem estar explicitamente ligado ao movimento. Com o fim da guerra de libertação e a chegada de Samora, integrei-me de imediato na então Frente de Libertação de Moçambique e logo que me foi dada a oportunidade filiei-me à Frelimo já como Partido.
A linha programática do Partido e o carisma de Samora Machel eram contagiantes. E aí foi a tentativa de construção de uma sociedade justa com educação e saúde para todos e rigorosos princípios que se baseavam no respeito e bem-estar da população. Vieram então uns auto denominados libertadores que, criados e treinados por um sistema baseado no apartheid, espalharam o ideal da democracia com bombas e balas, tornando o país num caos e inviabilizando qualquer tentativa de construir uma sociedade saudável. E foi o que foi.
Mesmo assim, a Frelimo mantinha-se fiel aos seus princípios de construção de um país baseado em valores que se prendiam com os interesses da população. De erro em erro, e enfrentando uma sabotagem feroz, acabámos por ter de aceitar mudar o jogo e entrarmos na chamada democracia baseada na livre concorrência e no sistema multipartidário. Aceitámos o inevitável e entrámos no jogo. Até aí tudo bem, a realidade assim o impunha. Mas o que veio à frente foi outra coisa.
Ofuscados pelos encantos do consumo e frustrados pelo fracasso do sistema socialista embarcámos no sonho capitalista para o que parecia o país das maravilhas. E esse espírito invadiu o Partido que depressa passou do cabritismo à ganancia. O divórcio com o comprometimento com o país e sua população foi rápido e a ideia que querer ser rico era não só algo justo como desejável e louvável.
Os heróis deixaram de ser os lutadores pela Pátria para serem os que possuíam carros de luxo, multiplicavam suas mansões, vestiam roupas de marca e bebiam Don Perignon. E para adquirir tudo isso, o caminho seguido foi o de expropriar os bens do Estado. Depressa essa ideia de “bolada” se espalhou e tornou-se o modelo que conduziu à preguiça do trabalho justo e honesto, única forma de desenvolver uma nação. Ser-se honesto e trabalhador deixou de ser o exemplo para passar a ser algo parecido com patetice. E instalou-se no nosso Partido essa ideia de liderança pela ostentação da riqueza e do uso e abuso do poder e dos bens do Estado. E os bons foram se afastando, sendo afastados ou, simplesmente, acomodando-se à “nova ordem”. A todos os níveis se disseminou a prática da corrupção, em que ninguém pode condenar ninguém porque todos se portam como tal. A corrupção passou a ser o modelo de vida.
A manutenção deste status quo implicou medidas fatais ao país e ao Partido enquanto que líder popular. Primeiro foi preciso criar um mecanismo ideológico que sustentasse esta nova ideologia. E isso foi feito pelo controlo, muitas vezes na raia do ridículo, dos órgãos de informação. Depois no desinvestimento no sector de educação para que não se criasse um povo literado. Daí se explica que os jornais oficiais pareçam doutro país, a repressão a jornalistas que procurem debater os assuntos de forma séria e responsável ou a manutenção de uma Ministra de Educação completamente desqualificada. Depois com o reforço do aparelho policial que virou as armas contra seu próprio povo, chegando a situações que lembram a polícia colonial. Inimaginável, mas real. E pior ainda, a Frelimo tornou-se um sipaio dos grandes interesses, entregando barato as nossas riquezas e levando o país ao seu papel de fonte de matérias-primas baratas que são sugadas de forma implacável pelo império colonial. Vivemos hoje num país sem programa de desenvolvimento e refém duma política económica colonial.
Chegámos agora ao impensável. Aqueles que foram criados pelo sistema do apartheid são hoje a esperança popular. Os jovens, e não só, apelidam publicamente o Partido de ladrões e aquilo que foi um dia o nosso orgulho está a ficar a nossa vergonha. O abandono da população por parte do Partido, a arrogância e abuso com que gerimos o país nos últimos anos deu nisto. Não reconhecer é apenas mais um passo para a desgraça, do Partido e do país.
Ao invés de zelar pelos interesses da nação, a Frelimo passou a zelar pelos interesses de uns poucos, mesmo que isso implicasse ir contra os interesses de todos. Na arrogância, aliada a uma enorme ignorância, o Partido tornou-se alheio ao seu próprio povo. E assim perdeu o apoio popular. É um facto. Não é preciso contar votos. Todos sabíamos que a votação não ia ser pela Frelimo e por isso a organização de uma fraude que só nos envergonha. Provavelmente não seria pela acção da Renamo, mas sobretudo pela manifestação de insatisfação com a Frelimo. Não podia ser de outra maneira, nós afastamos os eleitores.
E agora o que fazer? A meu ver, a Frelimo é a única organização política estruturada e a sua derrocada não será saudável ao país. Isso requer uma imediata reflexão e mudança. O Partido tem de deixar de ser uma organização de lobistas. Tem de retomar o seu papel de condução do país e deixar de representar os interesses dos gananciosos. Isso pode ser feito num sistema económico capitalista. O Partido tem de reconhecer a derrota e suas causas. Não pode pensar que se vai manter no poder pelo poder e, sobretudo, que vai resolver o problema fraudando eleições e enviando a polícia para reprimir a sua população. Até porque a polícia é constituída por pessoas que são também vítimas deste abandono.
Não resta outra opção, aceitarmos a derrota onde perdemos, aprender a lição e sermos um Partido que luta, agora em contexto de democracia parlamentar e economia de mercado, pelos interesses do país. Os quadros do Partido e, sobretudo, seus líderes não podem ser indivíduos que procuram o Partido para servir seus interesses, mas sim militantes motivados e patriotas que pensam e definem estratégia para desenvolver Moçambique, a bem de todos.
Moçambique tem tudo o que qualquer país precisa em termos de recursos. Falta apenas sabermos gerir a nosso favor. E a nosso favor somos todos e não apenas um grupo que se auto elegeu. Temos de saber negociar melhor com quem nos quer sugar, temos de voltar a ser um Partido que luta pelo seu povo, temos de ter coerência e lógica na nossa gestão. De outra forma outros tomarão esse lugar.
A Frelimo tem, pois, de corrigir o seu rumo e assumir o seu papel. O preço de não o fazer é levar o país ao caos, entregando nossas riquezas a quem foi criado para o destruir. Afinal de contas quem está a ganhar com tudo isto é quem provavelmente o planificou. Não é nada de novo. Criam a discórdia, provocam o caos e depois vêm “nos salvar” que é o mesmo que dizer vêm nos pilhar porque já estaremos (ou já estamos) de joelhos. Lembremos Mondlane, lembremos Samora mesmo com todos os erros que se possam ter cometido.
Viva Moçambique, Viva a Frelimo (a nossa Frelimo).
*Leitor devidamente identificado