Você fala muito. Tudo que acontece neste país para si está sempre errado. Afinal qual é a sua agenda? – Mas irmão, reclamar sobre as portagens que foram espalhadas por quase todo o país, até onde não há estradas em condições, para si é reclamar à toa?
– Repudiar a subida dos preços dos "chapas 100" e transportes interprovinciais é falar muito? Problematizar sobre a possibilidade de subida do preço do pão é ser agitador? Questionar sobre a possibilidade de reajuste do preço do combustível é ser confuso? – Afinal para si, basta andar, comer e dormir, a vida está boa?
Quando alguém acorda e liga a televisão ou rádio, acede à internet ou compra jornal e vê as trafulhices que estão a ser reveladas na tenda da B.O, como pode dormir tranquilo, sabendo que milhares de serviços e direitos foram privados devido àquele escândalo? Hoje, o assunto é rombo no Terminal Internacional Marítimo, como é possível libaneses, malianos, chineses e outros abrirem serviços tão vitais e de segurança do Estado como um despachante aduaneiro de mercadoria diversa?
- O pior de tudo é que altos funcionários do sector alfandegário facilitavam tudo, em nome de vidas largas e jantares à francesa. Como não se indignar quando todos os dias lemos noticiários de que deslocados de guerra estão a passar fome em centros de acolhimento e nos locais onde existe comida, os que distribuem não o fazem sem que as mulheres abram as pernas. Como manter-se calado quando na minha zona construiu-se um centro de saúde num lugar propenso a inundações ou onde funcionava uma bacia de retenção de água da chuva?
- Como nos podemos manter calados quando mulheres morrem nas salas de parto ou enlouquecem/ ficam traumatizadas simplesmente porque não tinham uma nota de 500 Meticais amarrada na capulana. Como não se indignar quando quantidades de madeira valiosa são saqueadas das nossas florestas e meia volta assistimos crianças sentadas no chão e estudando por debaixo de uma árvore em risco de ser abatida pelo primeiro madeireiro que aparecer!
- Como manter-se calado quando pessoas são raptadas, mortas e ninguém vem explicar o que está a acontecer de facto. Como continuar indiferente quando assistimos crianças sendo assassinadas e removidos seus órgãos genitais e outros? Porque nos vamos manter no silêncio quando o nosso desporto anda coxinho e tudo feito à base de remendo. Quando os jornais são incendiados. Jornalistas detidos ou acusados de crimes que não cometeram. Quando o político passa a vida a mentir e a roubar.
- Como não manifestar sentimento de repulsa quando assistimos um edil a construir casas do tempo dos indígenas alegadamente modernizadas. Como não sentir dor quando um homem vestido de agente policial ou municipal consegue arrancar bananas a uma idosa ou mãe com bebês no colo por alimentar e crianças em casa catando lixo? Quando um policial barra uma passeata de bicicleta perante parceiros internacionais. Quando um líder religioso é severamente atacado simplesmente porque decidiu clamar pelo apoio nacional e internacional de um povo atirado para o sofrimento, devido ao terrorismo.
Como não se indignar, cota Mário, com este roubo legalizado?
- Eu continuo a pensar que pessoas como tu, Omardine, deveriam ter nascido no tempo do marxismo-leninismo, estariam a essa hora no campo da reeducação para mudar esta sua forma de pensar – reclamam de tudo, pah!
– Falas sempre da liberdade de expressão, de opinião, de manifestação, mas esta coisa não nos interessa, agradeça o pouco que tens e ninguém irá te incomodar, filho! – Sinceramente, cota Mário, como esperas que isto mude se pessoas crescidas como tu pensam assim? Que legado esperas deixar para os seus netos e bisnetos? – Queres deixar uma sociedade onde o roubo foi legalizado?
Jovem, oiça o que eu te digo! Isto está bem assim – pelo menos para mim que não tenho carro, então que subam a portagem. Prefiro ficar a beber minha primeirinha na banda, depois de fazer meus biscatos por aí! E não me meto em problemas com ninguém. Vocês ficam nas redes sociais a atacarem tudo e todos, saírem de lá para rua, nada! O que vocês já chegaram a mudar com estas coisas que escrevem e falam?
Cota Mário, acho que andas equivocado em relação a isso, ao contrário do que imaginas, nem tudo que se escreve nas redes sociais é nocivo, e as intervenções que muitos fazem acabam resolvendo muitos problemas de pessoas que, de outro modo, não seria possível. Precisas mudar esta forma de pensar para que não condene esta geração que tudo tem para dar certo, mas falta-lhes acções!
- É isso que eu digo, nós lutamos contra o colono. Dormimos nas matas para conquistar esta independência que vocês usufruem e, mesmo assim, têm coragem de desvalorizar nosso esforço! – Não é isso, vocês fizeram vossa parte e serão sempre lembrados pelos vossos bons feitos, mas não podem condenar as outras gerações simplesmente porque pretendem voar em jatos, enquanto vocês viajavam em antonov, foi uma fase da história e hoje os desafios são outros!
- Actualmente, as pessoas são mais informadas e algumas preocupam-se com a vida do país, tal como vocês lutaram contra as atrocidades do passado – cota, não legalizem o neo-cabritismo que se instalou em tudo que é instituição pública e privada – saibas que estas coisas acontecem porque as pessoas legalizaram o roubo, ou seja, até parece que as pessoas se formam e assumem funções no aparelho do Estado para fazerem o contrário e cabe a nós, o povo, exigir que eles melhorem – cabe a nós exigimos melhores condições e uma vida justa e sem pedras da montanha no colo cada moçambicano (…)!
O edil de Quelimane, Manuel de Araújo, por alturas da sua primeira filiação ao partido RENAMO, salvo erro nos anos de 1998/99, concedeu, a um dos semanários da praça, uma entrevista na qual explicava as razões da sua decisão.
Para o efeito, ele recuara aos seus tempos infanto-juvenil de peladinhas futebolísticas e contara que sempre que se atrasasse a uma partida, e antes que entrasse em campo, procurava saber “Quem está a perder?”. Em seguida tomava a decisão de reforçar a equipe que estivesse em desvantagem. Assim foi quando se filiou à RENAMO
Esta terça-feira, durante a transmissão do segundo dia da retomada do Julgamento sobre as “dívidas ocultas”, que decorre na cadeia de máxima segurança, vulgo B.O, lembrei-me deste procedimento metodológico, que o classifico, para efeitos de teorização, como o “ Princípio de Manuel de Araújo”. Um princípio que é aplicado no processo de tomada de decisões sobre a escolha a fazer, entre equipas em jogo.
Sucedeu que a dado momento da sessão de julgamento, dera por mim a imaginar o edil de Quelimane, que de regresso do exterior, em mais uma viagem pela sua edilidade, desembarcara no “Ringue da B.O” em pleno clímax da peleja jurídica.
Ainda ofegante, e enquanto procura por uma cadeira, sinaliza sorridentes cumprimentos a uma data de presentes. E antes que decidisse, entre os sujeitos (processuais) em combate, o lado em que ficaria, o ora edil, visivelmente apressado, pergunta ao saudado mais próximo: “Quem está a perder?”
O seu interlocutor, sem pestanejar, responde: o árbitro! Porventura, porque este, eventualmente, e por força do vapor da troca de argumentos, dera sinais que tomara partido de uma das partes em confronto. Aliás, é amiúde comentado de que sinais nesse sentido transparecem desde o início do jogo.
Todavia, temo que nos termos do “ Princípio de Manuel de Araújo” a resposta não proceda. Face a dúvida, e quanto antes, o melhor é que se procure saber, se nas peladinhas futebolísticas dos seus tempos infanto-juvenis, ele não tivera que reforçar a equipe de arbitragem.
Enquanto isso, e voltando ao “Ringue da B.O”: uma vez que o árbitro principal dispensou os serviços dos árbitros auxiliares (Juízes eleitos), faz ainda falta um “VAR” (Vídeo Árbitro) que em tempo útil, e distante do calor das sessões, possa avaliar, e em seguida validar ou invalidar, os lances que se mostrem problemáticos.
Um certo encarregado de educação, que depois de monitorar as habilidades de escrita e de leitura do seu educando, concluiu que este estava aquém do mínimo para a classe, sobretudo em vésperas de exames, e decidiu ir à escola para cobrar. No caminho, uma manhã de chuvisco, e ainda distante, deu para ele reparar que as aulas decorriam ao relento e os alunos sentados no chão.
Achada a “sala-árvore” do seu educando, a professora, que já adivinhava o assunto, agradeceu a visita e pediu-lhe a melhor metodologia de ensino-aprendizagem que se ajustasse às condições (in) existentes. O encarregado respondeu-a de que apenas viera para confirmar se o seu educando havia comparecido, uma vez que saíra amuado de casa por conta do raspanete que levara na noite anterior.
O episódio vem a propósito da insurgência terrorista que, desde 2017, assola a província de Cabo Delgado, causando um movimento de deslocados cujo destino seguro, entre outros locais, tem sido a cidade municipal de Pemba. Consta que esta cidade já tenha acolhido deslocados em número (acima de 170 mil) que se aproxima ao dos seus residentes (pouco mais de 200 mil) o que a coloca, entre os seus pares municipais, como do top 5 ou 6 em termos de população.
Face a este súbito e célere crescimento demográfico, e numa cidade que já apresentava sérias dificuldades de funcionamento que são apadrinhadas, pelo que se acompanha, por crónicos défices de recursos humanos, materiais e financeiros, a corrupção e ainda por dívidas que a sufocam, não custa imaginar qual tem sido a sorte diária dos seus residentes.
Felizmente, e é uma boa notícia, se assiste a um movimento solidário de apoio aos deslocados, e no caso aos acolhidos em Pemba. A imprensa e as redes sociais têm divulgado as cerimónias de entrega do apoio e ainda do inevitável marketing social e político em torno delas.
Infelizmente, e salvo melhor informação, ainda não se assiste a um idêntico e dinâmico movimento dirigido à instituição Município de Pemba, no sentido deste poder minimizar as suas carências e fortalecer a sua capacidade para estar à altura dos desafios da actual situação, e não só.
Havendo quem saiba de uma constatação contrária, por exemplo, a de que mostre que o governo central, através do Ministério da Economia e Finanças, incrementou substancialmente a verba que aloca anualmente à Pemba. O mesmo para exemplos análogos de outros organismos públicos e privados, entre nacionais e estrangeiros.
Entretanto, e não é de admirar, é provável que representantes desses organismos, que por força das suas actividades correntes, passem regularmente por Pemba, mas, por outro lado, também transparece que a passagem seja ainda para as poses de marketing social e político das cerimónias de entrega de apoio aos deslocados. Naturalmente que existem excepções, mas estas, e já se sabe, não fazem a regra.
Por enquanto, e para fechar, a solidariedade com o Município de Pemba – ou de um outro local na mesma situação – lembra o episódio do encarregado de educação, que depois de ter presenciado as condições de ensino-aprendizagem da escola do seu educando e que até comprometia o futuro da sua família, não tugiu e nem mugiu. Aliás: chegou, viu e partiu!
Depois de ter vivido grande parte da vida acima da atmosfera, gozando do mel e leite, o diabo tratou de trazê-lo cá a baixo onde teria o fel como alimento. Tinha um carro da marca Volkswagem station, num tempo em que poucos da sua raça negra, ousariam adquirir uma viatura pessoal. Fazia parte, ainda, da sua colecção de bens, uma moto de 250 cm3 com dois tubos de escape. Era um janota que se destacava entre os seus, mas tudo isso, sem que ele próprio desse conta, escorregou das mãos e passou a levar uma vida de rastejante.
Voltou para Inhambane depois de longos anos, andando de província em província como oficial de primeira classe do Estado colonial português. Era respeitado, não apenas pela sua formação académica, mas também porque detinha uma postura de gentlman com vasta cultura, possuía fina educação. Nunca vociferava, mesmo quando perdesse as estribeiras. Mas tudo isso diluiu-se a partir de um determinado momento.
Ao pisar a sua terra, de regresso, depois de mais de quarenta anos, o choque que teve é que ninguém se recordava dele. Ninguém o conhecia. A casa onde nasceu estava abandonada, as paredes ruiaram, e o tecto esparramou-se sobre elas. Não havia vizinhos próximos quando ele partiu, agora tem casas novas e modernas à volta, cujos donos são desconhecidos. Estranhos. Como é estranha toda a cidade, para um homem que já não tem muito a oferecer. Perdeu tudo o que a vida lhe havia provido.
Agora, depois de perceber que não terá nenhum ponto por onde recomeçar, ou a partir do qual irá continuar o sofrimento, a única esperança que parece existir, reside no recolhimento à ruína deixada pelos pais, onde vai conviver com a bicharada. Ganhou a consciência de que o sol para ele jamais irá renascer, para lhe lembrar a música que gostava de ouvir no reprodutor do seu carro. Mesmo assim, sabendo que do escuro não vai sair mais, não tem medo. Olha para os chacais de frente.
Nas manhãs levantava-se e vai à gandaia, de onde traz, quase sempre, algo para comer e recolhe na sua pequena cabana feita de papelão no meio dos escombros. Não pede nada a ninguém. De vez em quando anda pelas ruas da cidade sem que ninguém o cumprimente, sem que ninguém olhe para ele de forma particular, ou se alguém o olha, fá-lo com desdém. Porém, não se importa com as pessoas, o que ele quer é a liberdade de poder caminhar na memória do tempo em que vivia na lua.
Surpreendentemente, enquanto eu esperava um amigo meu na esplanada do Hotel Inhambane, na véspera do Natal, vejo o homem andrajoso vindo na minha direcção, com um ramo de buganvília na mão. Pensei que vinha pedir-me qualquer coisa para comer, mas não! Chegou perto de mim, estendeu-me o ramo de buganvília sem flores e disse: é teu presente de Natal.
Tremi de medo ao receber o presente, e ele foi-se embora, sem dizer mais nada, depois de me focar com um olhar cheio de esperança.