Sempre dizia o saudoso mestre Álvaro Belo-Marques, o Bodoni, para a nossa turma de 1988 na Escola de Jornalismo, que “aquilo que você pode escrever, só você e somente você é que pode escrever, não espere que outro alguém o possa fazer por si”. Expando, aqui e agora, este preceito: aquilo que temos que ser nós a dizer, só nós e unicamente nós é que podemos dizer, ninguém mais. Não há que ditar a outrem o que nos vai na alma. Guiemo-nos sempre por esta lição.
Estamos, a nação inteira, nos últimos meses, a digladiarmo-nos impiedosamente à volta das portagens na “circular” de Maputo e recorrendo a todo o tipo de armas, até tribunais. Irmãos completamente desavindos. O argumento central do Governo é que ele não tem dinheiro para fazer a manutenção das estradas do país e onde vê um pé de meia para ir buscar tal fundo é no bolso dos cidadãos utentes das vias, automobilistas ou passageiros. Para muitos cidadãos, esta medida é uma violência extrema à sua já dificílima condição de vida; trata-se de mais um violento assalto ao bolso dos moçambicanos.
Minha leitura é simples. Estamos tão somente num autêntico virar de costas entre cidadāos e o Governo. Num ‘não diálogo’; ninguém está disposto a ouvir ninguém. Os cidadãos já não querem ouvir a razão do Governo e este, também, por seu turno, não se tem comunicado como deve ser, dando clara ideia de que não quer ouvir os cidadãos. Não há nenhum diálogo aqui. Por conseguinte, estamos diante de uma ‘ausência de comunicação’ entre partes da mesma família.
Claramente, o Governo tem-se, amiúde, comunicado muito mal com os cidadãos. Às vezes, nem chega a comunicar-se mesmo. Estando nós nesta guerra de manutenção de estradas, vou-me cingir apenas nesta questão para demonstrar esta asserção que faço.
É sólido que no Orçamento do Estado há, anualmente, uma verba para a manutenção de estradas em todo o país. As então direcções provinciais de obras públicas (como insistentemente estamos a mudar de nomes, não sei como se chamam agora) e as delegações provinciais da Administração Nacional de Estradas (ANE) recebem anualmente uma dotação orçamental para a manutenção de estradas. Isto é bem líquido. Pouco ou insuficiente, sempre tem lá!
Primeira ausência de comunicação por parte do Governo. Nunca foi dito quanto é esse valor. Nunca nos foi dito quanto é que Niassa, Zambézia, Manica, Tete, etc. recebem, ou recebiam para a manutenção das suas estradas. Nunca foi dito quanto é que cada uma das nossas províncias recebe para a manutenção das estradas no seu território de jurisdição. Mas que recebem, recebem!
Segunda ausência de comunicação por parte do Governo. Nunca nos foi dado a saber se o valor que se aloca às províncias para a manutenção das estradas é exíguo, insuficiente ou satisfatório; ou se já deixou de existir. Nem uma única palavra. Podia dizer que tudo foi sempre segredo, mas prefiro dizer “esta informação foi sempre omitida; não disponibilizada ao país”.
Terceira falha de comunicação do Governo. Nunca em um único dia uma direcção provincial qualquer apareceu a dizer ou a queixar-se sobre suficiência ou insuficiência, ou ainda ausência total, de fundos para a manutenção das estradas na sua área de jurisdição. Nada. Never!
Quarta e última falta de comunicação do Governo. Em nenhum ano jamais nos foi dado o balanço de quantos quilômetros e em quais estradas e em que província foi feita manutenção; nunca nos foi dito quanto se alocou às províncias, quanto se fez com o que se alocou, o défice, o que ficou por fazer; nunca nos foi dito que os valores alocados às províncias para a manutenção das estradas são suficientes ou insuficientes; ou existem ou inexistem. Never. Nunca.
Agora, como é que nos vêm agora dizer que não há dinheiro para a manutenção das estradas. Pelo que vemos a olho nu - a não manutenção de estradas - calculamos que não haja dinheiro. Mas o Governo nunca nos apareceu a dizer preto no branco. E nós não podemos, nem devemos, adivinhar. Péssima comunicação. O cidadão não tem que calcular nada. Tem que ser informado.
Como, então, exigir que os moçambicanos compreendam que as ideias do Governo são genuínas, lícitas, dignas de serem ouvidas e consideradas? Se os nossos governantes, em qualquer que seja a área - melhor dizendo, em todas as áreas -, querem cooperação, colaboração, compreensão, apoio e solidariedade dos cidadãos, colaboradores e parceiros, têm que se comunicar como deve ser. A comunicação é uma arma chave para tudo na vida: para o sucesso, para a compreensão, para a solidariedade, para a colaboração e ou cooperação; mas também para o descalabro, insucesso, desgraça, guerras e destruições. Em suma, para a consecução dos objectivos pretendidos. Ou o objectivo pretendido é esta desunião, disputa, conflito… barulho… é isso? É só escolhermos.
Assim como estamos a fazer vai ser difícil criarmos harmonia, solidariedade e a tão almejada unidade entre nós moçambicanos. Lamentável.
Mas o Governo ainda vai a tempo de nos trazer estas informações todas que não nos dá.
ME Mabunda
Ernesto Golize nasceu em Maputo, numa família equilibrada, com um pai locutor e uma mãe comerciante. Ernesto era um rapaz alegre e amigo dos livros. Logo cedo evidenciou-se no seio dos amigos e familiares como uma esperança intelectual da tradicionalista família Golize com raízes na histórica província de Gaza, lá nas bandas de Manjacaze. Com 12 irmãos de diferentes mães, Golize começou a correr logo cedo atrás do money. Com diferentes habilidades, seguiu os passos do pai, tendo sido estagiário na Rádio Moçambique, após uma formação média na Escola de Jornalismo.
Com boas habilidades na escrita e na locução, liderava ovelhas na sua congregação religiosa – tudo corria devidamente. Através de um tio que era Chefe nacional dos Recursos Humanos no Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), Ernesto Golize conseguiu um emprego no Gabinete de Comunicação Social naquela instituição estatal.
A vida corria a mil maravilhas, viagens de trabalho para aqui e para acolá. Conheceu vários países do mundo – avião era seu transporte diário. Passou as noites nos melhores hotéis possíveis. Mesmo casado, o jovem Ernesto tinha as melhores gatas que quisesse – era um mulherengo e boêmio assumido. Há quem dizia que o dinheiro lhe havia mudado a cabeça.
Em pouco tempo foi promovido no departamento, passou a ser adjunto-chefe. Com as capacidades que tinha, conseguiu admitir ao ensino superior no curso do Direito, onde viria a estudar três semestres e depois trocou para jornalismo pós-laboral que não chegou a terminar, já que passava a vida em constantes viagens. A vida do homem mudou, abandonou o quartinho de 1.500 meticais no bairro Benfica para um apartamento no terceiro andar no bairro do Jardim – afinal tudo corria a mil maravilhas.
A ambição subiu, aparição de novos actores políticos na arena política moçambicana foi vista por Ernesto como uma oportunidade de fazer nome. Levou as habilidades aprendidas nas várias formações investidas pelo Estado moçambicano, através do INSS, para assessoria política no aludido partido. O homem queria ser deputado com a idade que tinha – 27 anos! O jovem foi correndo, atacando fortemente o partido no poder – Frelimo. Ganhou espaço em colunas de jornais, rádios e grandes programas televisivos. Já era estrela.
Na busca constante pelo dinheiro e acerto de projectos que nunca saíram da mente para o papel e de lá à execução – Ernesto Golize mesmo com salário que ganhava no INSS e os vários subsídios de viagens que levavam dias e meses, decidiu contrair empréstimos bancários em dois bancos – comprou uma baita viatura – as shuggas aumentaram. A terapia sexual era feita em qualquer canto, desde que houvesse escuridão.
Ernesto Golize era o que tinha a voz mais alta na família, afinal era quem tinha pujança financeira. Quando pensava que tudo estava sob controlo, repentinamente tudo viria a mudar depois de receber uma visita ilustre de um irmão – quando o acompanhava à casa, bateu, mesmo com razão, num fulano na zona da Junta. O que Ernesto não sabia é que o homem era pai de oito filhos e tinha três mulheres, e apenas ele trabalhava e alimentava as mesmas. No atropelamento, a viatura teve um problema e quando levada ao mecânico explodiu dias depois.
Com medo das autoridades e de ir parar no tribunal, numa fase em que concorria a deputado e aguardava uma promoção no serviço e no partido, Ernesto Golize decidiu fazer um acordo com o fulano que havia atropelado – chegaram a um acordo – ele assumiria todas as despesas do homem, enquanto este recuperava em casa e não apresentaria nenhuma queixa. O que Golize não sabia é que o homem tinha oito filhos e três mulheres e cada uma, em sua casa, e dos filhos, cinco estudavam.
Com os empréstimos no banco, um apartamento luxuoso para pagar, mensalidades escolares suas e de dois irmãos, para além das ajudas constantes às despesas da casa da mãe solteira, o homem tinha que assumir por seis meses todas as despesas da casa do fulano atropelado por ele. Os dias foram passando, as despesas crescendo e a vida caminhando para o buraco.
Do investimento feito no partido tudo correu mal, acabou por ficar como suplente. Os seis meses de pagamento das despesas do homem atropelado acabaram se tornando em nove, onde tudo que faltava era imediatamente solicitado, até quando as crianças quisessem um rebuçado. O homem não aguentou, caiu doente, teve que parar de trabalhar por um longo período e, para além disso, teve que voltar para a casa da mãe com a família. Com o salário repartido para os bancos, a família do homem atropelado e as despesas de casa – sem trabalhar e com a falta das viagens que realizava, Ernesto Golize teve que encontrar outra forma de estar – dever todo o mundo que lhe aparecia pela frente!
Tendo adoecido por três meses, Golize perdeu a forma elegante que tinha – a barriguinha da felicidade se foi – os fatos lindos já não lhe cabiam – pareciam roupas de Museveni. O homem mudou de congregação. De tanto dever agiotas e amigos havia caminhos pelos quais não passava. Os agiotas, cansados de serem aldrabados, já o procuravam no local de trabalho – onde chegavam a pegá-lo pelas golas. O homem estava ferrado!
Procurou curandeiros, maziones e profetas. Teve vários banhos tradicionais. Mas nada resolvia. Ernesto Golize vivia um autêntico pesadelo. Estranhamente, a família tentava pensar que tudo estava sob controlo. O homem era resistente. Entretanto, num certo dia, alegadamente, o irmão mais novo foi parar numa boleia errada – os ocupantes transportavam quilos de cocaína e foram detidos pelas autoridades que lhes exigiam para a soltura por cabeça 50 mil meticais.
Ernesto Golize, como irmão mais velho, quis estar por frente do problema e saiu atrás do dinheiro, mas estava difícil – eis que apresentou o problema a um colega que prontamente emprestou-lhe parte do dinheiro, mas faltava-lhe alguns mil. Sem alternativas, teve que recorrer ao património do serviço, que foi penhorar aos agiotas.
Sucede que o colega teve problemas em casa e já queria o dinheiro de volta. Ernesto Golize levou a parte do empréstimo no agiota e reembolsou. Horas depois era solicitado no serviço, porque a máquina fotográfica estava a ser precisada para constar no inventário local que estava a ser exigido pelo Conselho de Direcção. O homem estava tramado! Sem alternativas, foi implorar para os agiotas, mas estes não cederam – os colegas do serviço, comunicaram-no que, caso não trouxesse o bem, o caso seria levado ao SERNIC – coitado do Ernesto Golize!
Horas passaram, os pés tremiam. Não parava de transpirar –devido à situação tenebrosa que o Ernesto vivia, a esposa havia o abandonado – com pena do mesmo, emprestou-lhe o valor, mas quando chegou lá, a instituição já havia recuperado a máquina fotográfica através da inteligência local que havia rastreado o bem.
Cansados com a conduta do jovem, Ernesto sofreu um processo disciplinar que culminou em expulsão. Mas mesmo com este fim, o vício pelo dinheiro alheio e fácil havia se aculturado no homem.
Com bons amigos que tinha, como Abel Nhancale e Abdul Remane. Ernesto Golize foi recebendo apoio dos seus companheiros. Nhancale, um jovem que acabava de terminar o ensino superior, na área de jornalismo e que já vinha perdendo dinheiro com as tramoias de Golize, conseguiu um emprego numa Organização Não-Governamental (ONG) como oficial de comunicação. Mas dadas as limitações profissionais que tinha, recorria a Golize para o apoiar em troca de uma verba mensal estimada em 10 mil meticais. No entanto, Ernesto roubava o companheiro, tendo extraviado um laptop, telemóvel, discos externos e bens não quantificáveis.
Já Abdul Remane era um amigo batalhador que passou por diferentes pesadelos da vida, mas que havia conseguido colocar os pés no chão, vivendo uma vida familiar e profissional em constante ascensão. A amizade deles era de constante ajuda – haviam se conhecido em tempos de militância política. Abdul Remane pretendia tirar da lama Ernesto Golize. Convidou-o para um projecto. Combinaram os valores mensais. Remane disponibilizou-lhe um laptop como material de trabalho. Entretanto, em vez de usar o mesmo para o trabalho, Golize vendeu o material.
As burlas de Golize são tantas que teve que se afastar da vida pública e do activismo social nas redes sociais, para além de ter trocado os contactos telefónicos. Ernesto Golize ainda continua num sono profundo – vivendo o pesadelo!
Por uma questão de salvaguarda e compreensão, antes que os amantes do imediatismo e da leitura menor façam uma hermenêutica ingrata e desajustada ao âmago deste texto, chamo aqui o conceito de Ignorância Quântica. Na Ignorância Quântica, Thomas Vidick e Stephanie Wehner esclarecem que no mundo quântico é possível um aluno esconder a sua ignorância e responder a perguntas correctamente num exame, sem que a sua falta de conhecimento seja detectada pelos professores. A par disso explicam, também, que este conceito alerta sobre a necessidade de conhecer o todo, para que as nossas conclusões, centradas em conhecer apenas as partes, não nos façam resvalar para o imediatismo e edificar a ilusão do conhecimento. Isso pressupõe que quanto mais partes conhecemos sobre algo, mais entendemos o todo – e quanto mais entendemos o todo, maior compreensão temos de cada uma das suas partes.
Esta colocação vem a-propósito da participação de um grupo de músicos moçambicanos na “Expo Dubai 2020”, cujo assunto tornou-se viral e fixou assento na esfera pública nacional. Alguns intelectuais, diga-se, orgânicos içaram a bandeira do imediatismo, na medida em que emitiram artigos opinativos centrados apenas num fragmento da performance dos músicos moçambicanos que foram escalados ao evento. A “pólvora” que deu origem à polémica é a nova vaga de artistas, com destaque para o “pandzista” Mr. Kuka, que se fizeram ao palco de Dubai. Na imagem nota-se uma entoação vocal que, na óptica de alguns, sugere desafinação, para além de exibir uma narrativa lírica aparentemente supérflua. Foi a partir deste vídeo que alguns artigos opinativos sentenciaram, com “pena capital”, a participação de Moçambique em Dubai. O excesso de saudosismo ao invocar as figuras de Wazimbo, Mingas, Xidiminguana, Ghorwane, etc., e o “anti-pluralismo” que sugere vedação a inclusão etária, rítmica e territorial, estão entre os principais enunciações dos articulistas.
Sucede que a performance dos artistas moçambicanos em Dubai compreendeu também outros momentos, designadamente a interpretação de clássicos como são os casos de Eyuphuro – cantado em Emakua pelo jovem Valdemiro José, a Canção Popular “Elisa” pela jovem Onésia Muholove. É aqui onde Ignorância Quântica encaixa aos que se ativeram a sentenciar, com “pena capital”, a participação de Moçambique em Dubai. Socorreram-se de um fragmento apenas e edificaram uma pseudo razão. Usaram uma amostra não representativa para inferir o que não é. Invocar clássicos da música como exclusivos baluartes da Cultura é de um tamanho erro de raciocínio, todavia os clássicos merecem o seu respeito porque funcionam como referenciais à edificação da Memória Colectiva - sem que isso implique necessariamente a extensão forçosa do passado.
Concordo que a Cultura deva, como observou Cheick Anta Diop, afigurar-se Baluarte de um povo, mas isso não impõe que tal desiderato se consiga apenas por via da extensão do passado. Há Valores, diga-se, relativamente novos que também passam a residir no imaginário colectivo (Memória Cultural Social). À semelhança da capulana que outrora nos foi imposta num contexto subordinação imperial árabe, e do terno e gravata “herdado” do império ocidental, há tantos outros valores alheios que se “herdam” e se tornam “nossos”. Todas as Culturas são produto do hibridismo - a pureza já não existe. A nossa preocupação para com a Cultura não deve ser reduzida às indumentárias e as artes musicais. Deve gravitar sobre o “Pensamento Moçambicano”. O mais importante, no seio destas celeumas desnecessárias e triviais, é preocuparmo-nos sobre como a Identidade Cultural no prisma do “Pensamento Moçambicano” pode gerar produtos culturais no contexto das Indústrias Culturais.
Nessa ordem, e sem querer discutir a meritocracia ou não da qualidade, não me parece racional reivindicar a colocação dos clássicos na montra contemporânea enquanto produtos dessa Indústria Cultural. Afinal são os Justin Biebers da pátria que existem porque têm o suporte de uma plateia local. Os Justin Biebers da pátria existem porque têm o suporte das maiores janelas mediáticas da praça (é o que a televisão nos oferece quotidianamente), sem descurar o suporte das maiores empresas locais em matéria de trocas comerciais. Se as massas não “compram” e tão pouco “pagam” para ver e ouvir os clássicos – qual seria a racionalidade de exibi-los em pessoa em Dubai? Neste prisma, a discussão que quanto mim seria justa é como tornar os Justin Biebers da praça culturalmente mais robustos dentro e fora de Moçambique e, sobretudo, como torná-los capazes de gerar produtos culturais que explorem a Memória Cultural local.
É importante frisar que a língua é o maior vector cultural e o Emakua, que foi cantado na interpretação do Eyuphuro em Dubai, para além de firmar a Memória Cultural Étnica, está entre as línguas nativas mais faladas em Moçambique. E sobre a Memória Cultural Étnica é oportuno esclarecer que a Cultura se resume em Valores materiais e espirituais de um povo. Tais Valores não implicam necessariamente a extensão do passado. Têm que ver com o que se absorve ao longo de um tempo e passa a residir no repositório colectivo que designamos por Memória Cultural, sublimando sobretudo o “Pensamento Moçambicano”. E sobre o mérito ou demérito em Dubai, este debate deve, antes, tomar por base os pressupostos consensuais sobre Cultura e, depois, discutir a meritocracia ou não da actuação dos nossos fora.
Termino referindo que, sob ponto de vista de opções e escolhas artísticas, não me identifico com qualquer um dos que foram escalados a Dubai – o meu saxofonista é o Ótis, o meu baterista é o Stélio Zoe, as minhas vocalistas são muitas e, para além da Zena Bacar (em memória), nenhuma delas esteve lá, todavia julguei oportuno e justo “separar as águas”, pois pareceu-me que o populismo já estava a dar sinais de enterrar precocemente um assunto premente. Portanto, a Ignorância Quântica levou-nos ao falso problema e este está a conduzir-nos a um debate periférico. Nada tenho contra discussões periféricas, mas elas fabricam a ilusão do conhecimento.
Circle Langa
(Comunicólogo)
Entrara mudo e amuado até que a dado momento o taxista – que se atrasara - quebra o silêncio, introduzindo uma conversa sobre política. Na verdade era de políticos que diz não confiar.
- Entre um político e quem pinta o cabelo não existe nenhuma diferença. Não confio em ambos e se o político pinta o cabelo, ainda pior: desse quero é distância!
Embora achasse que eu não fosse o alvo – não só político - esta tirada do taxista tocara-me, pois estava a caminho de uma casa especializada para dar uma leve pintada ao cabelo. Teria ele sabido? Não! Até porque nem havia revelado o meu destino, apenas um ponto próximo de desembarque.
Em seguida, e por ter visto que eu carregava uma cesta transparente com alguns jornais e livros, o taxista aproveita este detalhe para exibir que é uma pessoa informada.
- Um dos poucos políticos que eu admirava era o antigo Chanceler alemão, Gerhard Schroeder, mas tudo terminou quando ele, depois de ter apresentado um relatório com dados que favoreciam a sua governação, foi posto em causa por um deputado da oposição.
Ainda sob efeitos da irritação da tirada, que deixara-me hesitante na empreitada da pintada, disse-o que não era nada de anormal um deputado contrariar um chefe de governo.
- De facto é perfeitamente normal, a anormalidade está no argumento usado pelo deputado.
Estas palavras do taxista foram ditas enquanto simulava alguma concentração na estrada, criando assim um suspense irritante. Resisti. Indiferente, ele prossegue com a sua política de suspense.
- Por acaso gostei do argumento do deputado. É forte e fortalece a minha posição sobre os políticos.
Com mais este suspense irritante voltei ao ponto de partida (mudo e amuado) cujos sinais eram bem visíveis no meu semblante (e do leitor) e desta vez num ambiente mais próximo da hostilização. Diante da situação, solicitei que descesse antes do ponto de desembarque.
- O deputado disse ao Chanceler que teria muito prazer em acreditar nos dados do relatório, mas porque o Chanceler pintava o cabelo, manipulando a sua identidade, podia, e muito facilmente, também manipular os dados do relatório.
Estas palavras são proferidas no momento em que eu descia do táxi e um mau jeito na porta esta derruba o meu gorro. Enquanto apanho o gorro, o taxista, já em marcha lenta, abre o vidro e em tom jocoso vocifera: “Já desconfiava de que não levavas jeito para político”.
Muitos africanos sensatos não aceitam ouvir estas palavras rústicas, porém límpidas no seu interior, ditas por Vladmir Putin. Mas ele pode ter dito a verdade e todos nós sabemos disso. Ainda no último domingo (6.2.2022), a apresentadora da Televisão Miramar, Adelaide Isabel, perguntou a Joaquim Chissano, a propósito do “3 de Fevereiro”, se era este Moçambique que eles uma vez sonharam na luta pela Independência. Chissano teve medo de dizer que não, não é este o Moçambique pelo qual lutaram. Desfiou a mesma ladainha já conhecida, numa clara fuga para frente, e sso significa que não tem coragem de falar a verdade, e quem não tem coragem de falar dos seus fracassos, não tem esperança. Então, Putin ganha razão.
Há um homem que vive aqui perto da minha casa, um maconde antigo combatente, que me parece ser uma pessoa derrotada. Abdicou de todas as armas que tinha, inclusive esqueceu-se das canções que alimentavam a vontade de vencer nas marchas infindáveis, durante anos e anos ao encontro da luz. Uma luz que agora transmite a ideia de que está a apagar-se. Quer dizer, um indivíduo que se esquece das canções que lhe levaram à vitória, então é alguém sem esperança. E tudo o que terá feito por uma causa, está a ser desfigurado pelo tempo e pela ganância.
Vladmir Putin ainda disse que os africanos odeiam-se uns aos outros. Mas nós não precisamos de ir longe para dar razão, uma vez mais, ao presidente Russo. Se não nos odiássemos uns aos outros, entre irmãos, Moçambique estaria a brilhar no ponto mais alto das montanhas, contrariamente ao estado actual em que vivemos. Cobertos de cinza. Aliás, o facto de as estruturas da Saúde recomendarem a lavagem das mãos com cinza, como alternativa ao sabão, significa que somos desprezíveis. Não somos pessoas. Uma pessoa civilizada não lava as mãos com cinza.
Até as mulheres! Pensam que não são bonitas com o cabelo natural que Deus lhes deu, querem ser como as brancas com cabelo liso, entrando muitas vezes no ridículo de colocar perucas loiras na cabeça, e os brancos fartam-se de se rir de nós, ou seja, somos os bombos da festa deles. Outros ainda, nossos irmãos, fugiram daqui por terem percebido que África não tem esperança. Demandaram outras terras onde emana leite e mel, como se na nossa terra não houvesse leite e mel.
Quando Adelaide Isabel anunciou Joaquim Chissano para a sua entrevista, não esperei muitas coisas do vencedor do prémio Mo Ibraimo, não porque não as tenha. Sabia que ia contar as mesmas histórias que vem contando desde sempre. E na verdade foi o que aconteceu. Chissano diz aquilo que lhe convem dizer, da maneira que ele acha melhor, mas isso não é espantoso. Comportou-se como uma pessoa que não tem esperança, e isso é doloroso quando o que nós queremos, são lídres que nos convoquem à mudança. Chissano parece ter medo das palavras e quem tem medo das palavras não tem esperança.
O que aumenta a dor das nossas feridas, nesta falta de esperança, é que os próprios músicos já não nos aglutinam para a liberdade. Os que nos convocavam morreram todos. E, sendo assim, nós também vamos cair daqui a pouco, sem que nunca mais tivéssemos esperança, depois de eles partirem.