O inverno no planalto de Chimoio confere uma brisa fria mesmo ao meio dia, por isso muitos citadinos andavam já armados para se protegerem do abaixamento da temperatura que se ia agudizando a medida que o tempo passava.
Consegui uma boleia que me levou até a terminal interprovincial de autocarros. Não andei dez metros quando um angariador de passageiros abordou-me, questionando se ia viajar para Beira, quando anui ele logo encaminhou-me para um autocarro que supostamente estava prestes a partir.
Antes de embarcar averiguei o preço da passagem que concordei, protestando somente pelo preço que cobravam pela bagagem que não achei nada justo, para cada trouxa cobravam o mínimo de cem meticais, assim o passageiro pagava quase a metade da passagem por pessoa no trajecto Chimoio-Beira.
A minha contestação não foi assimilada, logo tive que submeter-me. Embarquei, tomei o lugar que me indicaram, o pequeno autocarro que parecia ter uma lotação de quarenta passageiros estava quase lotado, as bagagens ficavam na parte traseira do interior e a que lá não cabia ficava no corredor, quando os assentos laterais ficaram ocupados, os gestores do machimbombo abriam então os diminutos assentos do corredor que quase descansavam por cima da trouxa dos viajantes.
O angariador a cada vez que trazia um passageiro e o acomodava largava uma suposta piada:
- Não vale comer sua sardinha com mandioca, sem servir ao seu colega senão o seu vizinho vai-lhe desejar mal.- ai gargalhava ele mesmo.
Percebia-se que tentava amainar a impaciência dos viajantes que estavam aborrecidos pela demora e largavam suas justas reclamações.
Por fim o machimbombo arrancou.
- Até que enfim. – desabafou um dos passageiros.
A atapetada via permitia que o veículo deslisasse ganhando velocidade, algumas janelas abertas permitia-nos desfrutar de uma frescura que aliviava o cansaço que nos consumiu durante longas horas de espera. Ainda pela janela divisava moitas verdejantes que constituíam a bela paisagem resguardado por um sol luzidio conferindo uma coloração espetacular ao céu.
Trinta minutos depois da partida e com toda a animação que desfrutávamos eis que me apercebo da desaceleração empreendida pelo motorista, esquivo os corpos que obstruíam a minha linha de visão e procuro descobrir pelo vidro para-brisas o empecilho que causava o afrouxamento.
Intrometeu-se na via um sujeito que pelo traje era um agente da polícia de trânsito, o pequeno machimbombo parou por completo e o motorista fintou os passageiros e as bagagens para poder desembarcar levando consigo uma pequena pasta plástica do formato a4 que com certeza possuía no seu interior os documentos do veículo. Levou perto de cinco minutos e voltou a tomar o seu lugar e então reembarcamos.
As conversas voltaram a animar a viajem, escutava uma e outra mas a paisagem que se oferecia confiscava o meu ser e a minha atenção.
A única variante rácica no autocarro era um jovem asiático, talvez de origem paquistanesa, comerciante com certeza, este debatia com o seu colega de assento sobre a religião onde dizia com convicção que para a sua religião Jesus não era filho de Deus mas sim um simples profeta. Este debate captou minha atenção.
Um infante chorou e a progenitora calou-lhe pousando o seio na sua boquinha, voltamos a ouvir o som do motor e cada um voltou a embarcar em suas divagações. Já não ouvia o debate, não sei se era pelo som potenciado pelo machimbombo ou se já tinha cessado.
Uma nova desaceleração, não levei muito tempo para conferir um chui de trânsito que quase perdia a sua presa por distração, mas foi a tempo de precipitar-se para o meio da estrada e sinalizar triunfante a paragem do veículo. O mesmo procedimento foi executado pelo conformado motorista.
Foram somados mais cinco interregnos por conta dos agentes da autoridade de trânsito e cada um tinha o cunho de subtração empreendida pelos demónios de azul e branco que sugavam a receita do transportador.
Um refrão de descontentamento soava pela voz dos passageiros cada vez que a nossa viajem era interrompida pelas autoridades de trânsito.
Uma pequena insurreição estava prestes a iniciar e se não aconteceu foi porque não surgiu um potencial líder.
Continuamos a viajem agastados pela atitude oportunista dos agentes de trânsito que nos atrasavam a cada paragem autorizada pela sua ganancia.
- São uns verdadeiros sanguessugas uniformizadas e autorizados pelo estado. – quase gritou um passageiro – pronto estava encontrado o potencial líder.
- Barriga alimentada pelo dinheiro do povo – conferiu outro – pronto o adjunto também estava encontrado. Faltaria talvez a eleição por voto directo.
Alcançamos finalmente município de Dondo e o pequeno autocarro continuou rolando com uma velocidade média e só reduzia quando a placa de limite de velocidade para dentro de localidade mostrava 60km/h.
Solicitações de paragem foram encomendadas amiúde e descia um e outro passageiro.
Adentramos para a área de jurisdição do distrito da Beira.
- Cobradura¹ paragem Inhamissua - anunciou humildemente o cidadão asiático.
Gargalhamos todos, até o pequeno infante soltou momentaneamente o seio da mãe e mostrou uma careta alegre.
cobradura- corruptela do português paquistanês para dizer cobrador
Houve tempos em que, por estas alturas, estávamos a debater a nossa história e o nosso futuro como nação. No dia 3 de Fevereiro discutiamos sobre os contornos da morte de Eduardo Mondlane; no 25 de Junho, sobre os ganhos da nossa independência; no 25 de Setembro, a génese da luta armada e o título de propriedade do primeiro tiro e por aí fora.
Nessa altura haviam jovens jornalistas irreverentes que fizeram história. Jovens que se preocupavam em entender, por exemplo, como é que o primeiro presidente da FRELIMO - doutor Eduardo Chivambo Mondlane - morreu numa explosão de uma encomenda armadilhada (um livro), no seu gabinete de trabalho, sozinho e só; se ele não tinha secretário ou não haviam outros funcionários por perto que pelo menos se feriram na explosão; se o presidente abria pessoalmente as correspondências; e coisas tais.
Foi graças a estes jovens "confusos" que o mundo ficou a saber que o camarada Eduardo Mondlane não morreu no seu gabinete, morreu na casa de praia onde vivia a sua secretária. Há uns dois ou três anos, um combatente confessou numa imprensa da praça que no tal fatídico dia ele estava no gabinete a espera do presidente para irem à uma missão. Ou seja, já não há dúvidas que a estorieta do gabinete era ficção.
Foi também nesta mesma época de dois mil e picos que jovens historiadores irreverentes começaram a desmentir o Bê-I do partido FRELIMO. Um desses jovens afirmava categoricamente que o partido FRELIMO não era cinquentenário coisíssima nenhuma. O jovem historiador convenceu-nos que, afinal de contas, o partido havia herdado a idade da "Frente" onde nasceu, como um filho que anda com os documentos do pai para "djekar" festas de adultos.
Não sei porquê, mas, nessa altura de dois mil e poucos, havia muita irreverência juvenil e intelectual. Aliás, só para que conste, foi nesse tempo que se agudizou o debate sobre a autoria do primeiro tiro, que culminou com a quase-confissão do antigo dono desse mesmo tiro dizendo que também tinha reservas sobre a propriedade do mesmo. E foi assim que a famosa bala ficou órfã.
Foram bons tempos aqueles! Temos de agradecer a irreverência daqueles jovens advogados, sociólogos, jornalistas, antropólogos, economistas, médicos, historiadores e mais. Haviam bons e muitos tomates naquela altura. Hoje, nem por isso. Alguns tomates foram colhidos e vendidos em hasta pública.
Hoje em dia todos querem ser políticos ou viraram sentinelas de partidos políticos da posição, da oposição, da disposição, da imposição ou da sobreposição. Alguns desses jovens - outrora irreverentes - têm sido vistos embrulhados em mantos encarnados desta vida.
Hoje alguns desses jovens especializaram-se em insultos públicos de grande magnitude nas redes sociais. São a própria oposição da irreverência juvenil e intelectual emergente. Foram embrulhados. Foram embrulhados pela história recente deste pedaço de chão com alcunha de bijuteria e depositaram o seu encéfalo numa estante algures na Pereira do Lago até "sine die".
Hoje, num dia como 25 de Setembro, estamos a debater a burrice de uma cantora afrodescendente brasileira, enquanto aguardamos ansiosamente para que uma ex-donzela daqui da banda pendure a bandeira do seu país no rabo de novo. Hoje em dia as datas não passam disso mesmo - datas.
- Co'licença!
Na verdade este lugar entristeceu-se. Feneceu. Perdeu todas as molécolas da cumplicidade que se foi enraizando na amizade desinteressada da juventude. E de nós, os sexagenários, já no fim da caminhada, levados para ali pelo contágio da alegria. Sando Lodge era o cântaro em si. Um pote puro. Uma espécie de palco onde todos cantavam e dançavam por dentro, deixando o resto por conta das emoções. Aqui residia o sinónimo mais profundo da liberdade. Mas o que sobra agora, para o nosso desespero, são os fiapos da última luz deixada pelo entusiasmo de viver.
Sando Lodge fica aqui perto da minha casa, ao longo da baía de Inhambane. Já sem as sonoridades do bem estar que nos proporcionava no seu sossego. Sem a brancura das areias, ora pejadas da escória devolvida pelo mar à nossa ignorância. Tudo aquilo que nos dava paz e desejo de estar ali, sucumbiu: o espaço livre e limpo, agora ocupado por desgraçados casebres, cujos ocupantes sofrem em tempo de marés enquinociais.
E se você quiser conhecer o testemunho de toda a poesia tecida ali, no roçagar dos corpos, depois dos copos, esse testemunho somos nós. Que não queriamos mais nada para além da brandura do tempo que nos embalava entre os braços da areia branca e o peito das águas tranquilas do mar. Era isso que nos movia para o Sando Lodge. E bastava-nos.
Agora ninguém procura o lugar. Pior do que isso, ninguém fala dele. Nem o próprio Santana, o jovem tornado eixo pela simplicidade e humildade. Santana era, lado a lado com o Sando Londge, ou por detrás disso, o mote para todo o júbilo. Agora ficou sozinho, ruminando a nostalgia do tempo que pode não voltar. Jamais. Até os flamingos já não passam perto para estabailizarem a pressão do coração que se vai esvaindo. E para agravar a tristeza, aí estão as almadias quedadas em maré vaza.
O que dói é perceber que apesar do amor que alimentamos durante longo tempo, entre nós e as águas que se despejavam serenas nas areias brancas do Sando Lodge, já não há nada que nos liga. Ninguém quer saber do outro. Nem as noites de luar, que eram uma maravilha observadas a partir dali, nos afagam a dor de termos perdido um dos lugares mais prazerosos da baía de Inhambane. Nem as luzes que cintilam do outro lado, do lado da Maxixe, chegam para espantar a desolação.
Talvez um dia alguém cante uma música em homenagem ao Sando Lodge. Quem sabe!
Os políticos moçambicanos opinam que a campanha eleitoral é um momento de festa, mas a presente tem sido tudo menos festa. Ela já provocou mais de 30 mortos. Grande parte das mortes resultam de acidentes aparatosos de violência eleitoral, o que significa elas podiam ter sido evitadas.
Dez pessoas morreram pisoteadas após um comício no dia 11 de Setembro, em Nampula. O passado fim de semana também foi trágico: mais militantes e simpatizantes morreram num acidente de viação em Songo, Tete, a regressar de um outro comício - é verdade que até aqui os acidentes limitaram a bater as portas da Frelimo, mas isso pode acontecer com qualquer outro partido.
Antes do início da campanha, a PRM anunciou que estava pronta para garantir a segurança durante o processo eleitoral. Daí que, se perguntar não ofende, como é que a corporaçao tem estado a garantir a segurança dos membros, simpatizantes e seguidores dos partidos políticos nas campanhas?
Tenho em mim que a tarefa de garantir a segurança e protecção dos membros, simpatizantes e seguidores dos partidos políticos não é apenas da PRM. Sendo que, como é que os partidos políticos organizam a sua logística de protecção e segurança? Ou será que o fazem na perspectiva de apenas garantir a protecção e segurança dos seus líderes?
De todas as formas, tanto a PRM como os partidos políticos devem nos dizer como é que a protecção e segurança dos seus membros, simpatizantes e seguidores é feita. Os políticos não devem pensar em apenas encher os recintos onde vão realizar comícios. Devem também saber como controlar as multidões. Devem também garantir o transporte dos membros e simpatizantes com toda a segurança necessária.
Todos os que organizam eventos sabem que existe uma série de requisitos a se ter em conta, relacionados com a seguranca dos presentes, sejam os oradores/artistas/ ou o publico/particantes. Temos visto a polícia a acompanhar as marchas e passeatas no sentido de garantir o cumprimento dos mesmos requisitos. Sabe-se que há entradas/saídas em caso de emergência. No caso dos camiões, sabe-se que não estão apropriados para transporte de pessoas, dai o Estado ter criado o infame My Love II.
Mas mais do que isso, essas mortes todas parecem simptomáticas de um Estado onde a vida e dignidade humana são precárias. Precariedade implica viver socialmente, isto é, o facto de que a vida humana está sempre nas mãos de uma outra; implica uma dependência em relação à pesoas conhecidas e desconhecidas, e principalmente, ao Estado. O que quer dizer que é responsabilidade do Estado, dos partidos políticos, garantir a segurança e protecção das pessoas sob sua guarrida.
Sendo que, dizer que uma vida é precária, o que é verdade para a maioria dos moçambicanos, é dizer que a possibilidade dela ser sustentada depende fundamentalmente em condições sociais e políticas. Que políticas de protecção e segurança da vida humana existem no país?
Por isso, não podemos continuar a medir palavras. Há que assacar responsabilidades. Não me simpatizo com o discurso de pacto de sangue que está a dar de falar nas redes sociais. Esse discurso tem o condão de isentar quem de dever de qualquer responsabilidade nessas mortes evitáveis. Por exemplo, quem foi que fez transportar pessoas de cerca de 150 quilometros do local do comício? Quem era o motorista e para quem trabalhava? De quem é a responsabilidade moral e social de garantir que os mortos tenham funerais condignos, que os feridos tenham tratamento condigno, de que as famílias enlutadas sejam recompensadas devidamente?
Enquanto humanos entramos num contrato com o Estado de modo a garantir-nos protecção. Neste sentido, como é que o Estado deve agir para garantir que os direitos dos cidadãos que pereceram e ficaram feridos nesses trágicos acidentes sejam ressarcidos? O que a Procuradoria Geral da República está a fazer? Já intentou algum processo com vista a criminalização dos envolvidos? Para onde se dirigem as famílias enlutadas e os feridos para serem ressarcidas?
Acidente é acidente, dirão alguns. Mas enquanto humanos temos que nos preparar ao máximo para os evitarmos, minimizar os seus danos, e assacarmos responsabilidades junto dos culpados. Para já, devíamos ter vergonha de descrevermos as nossas campanhas eleitorais como momento de festa. Outrossim, até prova em contrário são um momento de dor e luto.
Parece que está na moda, ultimamente, invocar a memória de Afonso Dhlakama para justificar os fracassos e a desorganização dentro do partido RENAMO. As zangas de comadres na RENAMO terminam com desabafos que encontram no nome de Dhlakama um calmante.
O mais estranho é que as pessoas que hoje "desenterram" o general Afonso Dhlakama são figuras proeminentes do partido, até familiares, que muitas vezes tinham oportunidade de privar com ele ainda vivo. São pessoas que tiveram oportunidades soberbas de ouvir, na primeira pessoa e "in loco", os conselhos e a sabedoria do malogrado. São pessoas que hoje deviam estar a exibir muita inteligência herdada do general.
De certeza que Afonso Dhlakama terá dito em algum momento que, um dia, ele iria partir para o eterno repouso. E deve ter dito, com certeza, que depois que ele partir os seus familiares que militam na RENAMO serão vistos como simples membros e militantes como tantos outros que se encontram neste vasto Moçambique e fora. Certamente que terá dito que a RENAMO não era uma empresa familiar.
Quero eu acreditar que Afonso Dhlakama terá dito aos seus militantes mais próximos, e principalmente aos seus familiares, que a vida era um festival de hipocrisia. Que a vida estava cheia de falsos amigos. Que as pessoas só são leais quando ainda se respira.
Afonso Dhlakama era um exímio estratega militar. É certo que ele sabia que nem todos RENAMISTAS eram, de facto, leais à filosofia do partido. Ele sabia que, para uns, o que contava eram os dinheiros e as mordomias que recebiam do partido. Ele sabia - aliás, até dizia vivamente - que na RENAMO haviam gajos que o queriam acotovelar para abocanharem o partido com suas próprias filosofias.
Então, fico sem perceber as lamurias que tenho estado a ouvir hoje sobre pessoas que têm vergonha de pronunciar o nome de Afonso Dhlakama. Fico sem entender quando membros influentes da RENAMO dizem "se fosse com Dhlakama, isto não iria acontecer", "se Dhlakama estivesse vivo, não iriam fazer isso connosco", etecetera, etecetera, etecetera.
Afinal, essas pessoas não beberam nada de Dhlakama? Não era suposto estarem hoje a dizer "Dhlakama nos ensinou assim" ou "Dhlakama fazia as coisas assim"? Não era suposto o Nhongo ser gerido como Dhlakama o geria? Então, Dhlakama "dele" que dizem que era um grande líder não deixou ensinamentos? Foi-se com toda a sua sabedoria?
Se em plena campanha eleitoral já se chamam cobras e lagartos, imagina então, quando ganharem as eleições e terem que formar um governo? Não vão nascer outros Nhongos e Juntas?
Invocar hoje a memória de Afonso Dhlakama é pura cobardia. Deixem o general desfrutar do seu mais do que merecido descanso! Se a RENAMO desaparecer, não será por sua culpa. Ele já fez o que devia fazer. Se não passaram apontamentos dos seus ensinamentos, é por culpa vossa. Deixem o velhote curtir a sua eternidade na paz do Senhor! Deixem Dhlakama usufruir o que nunca lhe demos em vida: descanso! Lutem, se esganem, se piquem no olho, se furem os rins, mas não tomem o nome de Afonso Macacho Marceta Dhlakama nas vossas brigas. Não pronunciem em vão o seu nome. Não mencionem o líder nas vossas lamurias.
- Co'licença!
Tenho medo dos meses de Setembro e de Outubro. Temo que Samora Machel, o saudoso 1º presidente da pérola do índico, venha à minha casa e como sempre a altas horas. Da última vez em que bateu a minha porta foi no dia 19 de Outubro de 2016, data da sua partida em 1986. Abaixo uma transcrição considerável (e com alguns arranjos) de um texto (“a propósito de mais um 19 de Outubro”) que publiquei num dos semanários da praça. Depois volto aos meus temores.
“Dia 19 de Outubro de 2016!De dez em dez anos, Samora Machel bate a minha porta. O som da batida é já do meu domínio, embora desta vez fosse menos sonoro, mas mais incisivo. Abro! Samora esboça um sorriso diferente, enquanto entra e caminha militarmente pela casa. Faço um compasso de espera e fecho lentamente a porta. Feito o reconhecimento, Samora conclui que estou só. Vou ao encontro dele para a saudação e, já próximo, ignora-me. Entre rodopios e assobios, vai andando pela casa dentro. Era a terceira visita de Samora. Bem ao estilo da ofensiva política e organizacional.
Isto está nublado. Penso. O que terá acontecido desde a última visita há dez anos (2006)? Pergunto aos meus botões. Silêncio total. Decido que o melhor é sentar e relaxar ao som das melodias revolucionárias e do sapateado das botas russas, calculo. De rompante, Samora interrompe a orquestra e com o indicador em riste pergunta:
- Então! O Livro?
- Que livro? Respondo, dissimulando que não me lembrava.
Nessa última visita, a segunda, tinha-lhe prometido que escreveria finalmente o livro, retratando a “nossa amizade” com o título “Samora e Eu”, cujo prefácio (na verdade um postufácio) seria escrito por ele, conforme ficou combinado. Passam já dez anos.
A primeira visita (1996) foi depois de eu ter participado numa palestra ou algo semelhante orientada pela viúva (de Samora) Graça Machel, no Sindicato Nacional dos Jornalistas. Nesse dia, já madrugada, Samora encontrou-me a escrever os primeiros rabiscos, inspirado na palestra e num texto (redacção/composição) que escrevi num teste de língua portuguesa, anos antes, em que o mote tinha sido um artigo publicado, salvo erro, no jornal electrónico media-fax. No artigo, o autor referia-se a Samora como um homem amado por uns e odiado por outros.
A conversa foi tanta e prolongou-se até ao amanhecer. Confessei os 11 anos da “nossa amizade”. Na verdade, narrei factos e momentos vivenciados ou acompanhados por mim durante o seu consulado, desde o primeiro dia em que o avistei até ao dia em que me zanguei e cortei unilateralmente a amizade, observando uma trégua no período da sua morte. No livro de condolências, recordo-me de ter registado: Samora. Para os amigos, o amigo. Para os inimigos, o inimigo!
Na despedida, já com o sol a raiar, ocasião em que brindamos o reatamento da “nossa amizade”, Samora pediu que eu acrescentasse aos factos as minhas reflexões e pensamentos de forma imparcial. O desafio estava lançado. Acredito que esse desafio não seja só para mim e tão pouco para os que privaram directamente com Samora quer no seu dia-a-dia, quer no processo de libertação e governação do país.
-O Livro? Insiste Samora. E com um olhar de quem diz “daqui não saio, daqui ninguém me tira”, anota que no lugar de visitas periódicas de década em década, estará de olho todos os dias.” (fim da transcrição)
Por “ de olhos todos os dias” entendi que ele não iria esperar mais dez anos (2026) para voltar a bater a minha porta (a altas horas) e exigir o livro. Feliz ou infelizmente Samora ainda não me visitou desde o “encontro” de 19 de Outubro de 2016. Presumo que esteja ocupado com dossiers dos últimos desenvolvimentos do país. O facto de ele não ter vindo foi óptimo para mim, pois ainda não tenho o Livro ou algo que se pareça. E já passam dois anos.
Hoje é dia 22 de Setembro. Dentro de seis, sete dias será a data do seu 86º aniversário natalício. Temo que ele venha por estes dias. Sinais não faltam. Tenho ouvido passos nocturnos com a cadência típica dos de Samora Machel. Se não for por estes dias de Setembro ainda resta o mês de Outubro que está à porta.
Já é madrugada. Estou diante do computador. Na secretaria o manuscrito - já com cor de ganga de caqui - em que repousam as primeiras notas, escritas na altura da primeira visita. Um trecho do manuscrito diz: “o que sinto por ele (Samora Machel) é uma miscelânea de amizade e animosidade. Em conversa com amigos uma vezes defendo-o e outras ataca-o veementemente”.
Seja como for tenho que apresentar alguma coisa caso ele apareça. Enquanto cogito, cochilo em busca de inspiração. Em seguida um silêncio. Um frio na barriga. De repente oiço a porta a bater de forma insistente. Será Samora Machel?