O Administrador do distrito de Marracuene, na província de Maputo, Shafee Sidat, está a ser acusado de favorecer um empresário num caso de disputa de terra entre o agente económico e residentes do Bairro Zintava, naquele ponto da província de Maputo. O caso está ainda a ser dirimido em Tribunal.
A disputa de terra em causa remonta ao ano de 2012, altura em que os residentes e o empresário não chegaram a consenso sobre a posse legal de 15 hectares de terra (o agente económico fala, porém, de uma área total de 24 hectares, parte da qual usa para prática da agro-pecuária). Sem consenso, o caso foi até ao Tribunal Judicial do Distrito de Marracuene.
O empresário de nome Milton Valdemar Bourlotos Torre Do Vale diz que detém a posse da terra em causa desde a época colonial, precisamente desde 1920. Alega que herdou do pai que também ganhou do avô. Os residentes são representados pelo régulo Alexandre Chitlanta Mabjaia. Em princípio, de Maio último, fonte próxima ao régulo explicou à “Carta”, em anonimato, que Mabjaia detém os 15 hectares, igualmente, desde tempo colonial, ou seja, há mais de 80 anos.
Conforme nos foi reportado, na disputa, Do Vale tem apresentado documento de Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) de 1920, altura em que Moçambique ainda era província ultramarina de Portugal. Ciente de que o mesmo é atemporal, em 2014, requereu actualização, mas em vez de proceder como tal, o empresário diz que o Governo da Província de Maputo resolveu conceder um novo DUAT e provisório.
Quanto ao régulo, para além de suas benfeitorias e de outras mais de 200 famílias, não tem prova documental. Ainda assim, feita a consulta comunitária e todo o trabalho de inspecção judicial, na parcela de terra em questão, o referido Tribunal julgou, em 2015, a favor do régulo. A sentença do Tribunal foi antecedida por uma providência cautelar, requerida pelo régulo em 2014 (devido à intensificação das ameaças), tendo o Tribunal Judicial do Distrito de Marracuene ordenado que Do Vale parasse de perturbar, pois, conforme conta a nossa fonte, o agente económico tinha até “chamado a polícia para prender os familiares do régulo”.
De acordo com a sentença a que tivemos acesso, a decisão do Tribunal fundamentou-se da premissa legal, segundo a qual, a “ausência de título não prejudica o DUAT adquirido por ocupação nos termos das alíneas (a e (b do artigo 12 da Lei 19/97 de 1 de Outubro (Lei de Terras). Ora, tal aplica-se ao A [régulo], na medida em que resultou provada a ocupação da referida parcela pelo mesmo, de boa fé, e, publicamente, desde o tempo colonial, portanto, por mais de dez anos, por um lado, e, por outro, o mesmo possui benfeitorias efectuadas na mesma parcela de terra, sendo que o processo de pedido de DUAT pelo mesmo desencadeado consubstancia uma mera formalidade para a obtenção do respectivo título”.
Do Vale não se contentou. Em Setembro de 2017, recorreu da sentença ao Tribunal Judicial da Província de Maputo, Matola. Neste, e em 2020, o empresário ganhou a causa, alegadamente por possuir o aludido DUAT, que em vez de ser actualizado, foi-lhe emitido em primeira mão e provisoriamente.
Sobre esta matéria, no recurso, o agente económico expõe, através do seu advogado, o seguinte: “Diz a juíza que, feita a análise do processo de actualização do DUAT do Apelante [Do Vale], constatou-se que o mesmo não se tratou de actualização, mas sim de atribuição de tal direito pela primeira vez. Ora, não conseguimos perceber em que se alicerça tal afirmação, é que o Apelante solicitou o pedido de actualização de dados e, se as autoridades competentes o tramitaram como se de novo pedido se tratasse, esse facto é alheio ao apelante e nem cabia a este questionar a forma como o processo estava a ser tramitado”.
Embora esta alegação não seja convincente (pois, em geral, de forma alguma Do Vale aceitaria receber um documento que não lhe diz respeito e, sem questionar, ou seja, novo DUAT, em vez de actualizado), o Tribunal Judicial da Província de Maputo julgou procedente seu recurso, portanto, condenando o régulo Mabjaia.
Insatisfeitos, os residentes (representados pelo advogado do régulo) também recorreram da decisão, em Setembro de 2020, junto do Tribunal Superior de Recurso de Maputo. No recurso opuseram-se à decisão do Tribunal Judicial da Província de Maputo porque, como fundamentam, Do Vale obteve o DUAT de forma fraudulenta.
Desde a data do recurso, a nossa fonte diz que o Tribunal Superior de Recurso de Maputo ainda não se pronunciou. Ainda assim, os residentes denunciam ameaças de demolições por parte de Do Vale, acto que, conforme nos relatou a nossa fonte, está a ser apoiado, nos últimos meses, pelo Administrador de Marracuene, Shafee Sidat.
“Foi ao local, ameaçou demolir todas as construções pertencentes a mais de 200 famílias, numa área de 15 hectares. Ora, parte dessas construções aconteceram porque o Tribunal permitiu, em 2015, ao julgar a favor da comunidade. Do Vale faz isso porque tem dinheiro. É um branco com influência e Sidat está a jogar nisso porque ele tem algum ganho”, queixou-se o denunciante.
“Sidat está do lado do empresário, de tal modo que usou o seu poder para tentar embargar, sem sucesso, a construção de uma bomba no referido espaço, sendo que o dono tem documentação”, acrescentou o denunciante.
Face a esta acusação, o Jornal contactou o Administrador de Marracuene. Sidat negou estar a favorecer Do Vale. Diz não ter nenhuma relação com o empresário. No entanto, neste caso de disputa de terra, Sidat diz ter recebido Do Vale no seu gabinete, na qualidade de Administrador do distrito de Marracuene.
Todavia, Sidat contradiz-se quando diz: “Quem embargou a obra foi o Ministério, através da Direcção Provincial. A mesma está a ser construída sem nenhuma documentação. E o Sr. Milton (Do Vale) ganhou o espaço em Tribunal. O embargo é legal e o senhor da Bomba sequer apresentou um projecto de construção. Posso provar com documentação e que ele faça o mesmo. Trabalho dentro das normas e é a primeira vez que ouço que defendo alguém”.
Como se pode notar, esta reacção contém duas contradições. Uma é que, conforme acima exporto, o caso ainda está em Tribunal, embora Sidat deixe transparecer que não houve recurso por parte da comunidade. Outrossim, aquele gestor público contradiz ao afirmar que foi o “Ministério” que mandou embargar a obra, porque conforme constatamos foi a administração do Distrito de Marracuene que mandou embargar a obra.
Eis a ordem de embargo emitida e assinada por Shafee Sidat, a 17 de Maio último: “No uso das competências que me são conferidas pelo nº 1 do artigo 49 do Decreto nº 02/2004, de 31 de Março, ordeno o embargo das obras de Construção de Bombas de Combustível pertencentes ao Sr. Cláudio Adónis João Magaia, na parcela pertencente ao Sr. MILTON Valdemar Bourlotos, localizada no Bairro Zintava, Localidade de Sede, distrito de Marracuene. O incumprimento deste auto sujeitará ao visado penalizações previstas na lei. Cumpra-se. Marracuene, aos 17 de Maio de 2021”.
Num outro desenvolvimento, Sidat reagiu em relação a esta infra-estrutura referindo: “Se estiver legal, pode reclamar o embargo sem problemas. Quanto às 200 famílias nunca questionamos nada e nem retiramos ninguém. São as tais questões de invasão de terra”. (Evaristo Chilingue)