O Juiz Desembargador da Segunda Secção Criminal de Recurso do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo (TJCM), Fernando Fenias Bila, ordenou, na passada terça-feira, 24 de Março, a soltura imediata de Nurbibi Lacman, funcionária do Centro de Desenvolvimento de Sistemas de Informação Financeira (CEDSIF), que havia sido condenada, em Maio de 2019, a uma pena de 10 anos de prisão maior, no âmbito do Processo n.º 1231/18-C, relacionado ao rombo de mais de dois milhões de Mts na instituição responsável pelo provimento de sistemas de informação de gestão de finanças públicas.
Nurbibi Ismael Lacman, de 47 anos de idade, foi restituída à liberdade, na passada terça-feira, na sequência da anulação do julgamento, ocorrido no ano passado, pelo facto de a Quarta Secção Criminal do Tribunal Judicial do Distrito Municipal de Kampfumo, na capital do país, ter condenado os réus num processo, em que os mesmos nem sequer foram pronunciados, o que coartou o seu direito de defesa.
De acordo com o Despacho a que “Carta” teve acesso, no acto do julgamento, o Juiz da causa, Eusébio Lucas, apenas considerou os actos processuais praticados num dos processos e ignorou completamente os actos processuais do outro, o que nos termos da lei processual penal é uma nulidade.
A decisão deriva do recurso submetido àquela instância judiciária pelo Advogado de Defesa de Nurbibi Lacman, Elísio de Sousa, no qual levanta várias irregularidades processuais, tanto na fase de instrução, assim como no próprio julgamento e tomada de decisão (elaboração da sentença) pelo juiz Eusébio Lucas.
Segundo consta do Despacho, o colectivo de Juízes da Segunda Secção Criminal de Recurso do TJCM, no julgamento do Processo de Recurso n.º 27/19-2ª, considerou “excessiva e desproporcional” a medida de prisão preventiva que fora aplicada à recorrente Nurbibi Ismael Lacman, uma vez que “dos autos não resultava prova bastante do seu envolvimento nos crimes de que a mesma fora acusada”.
No Recurso submetido ao Tribunal, a defesa chama a atenção à acusação (neste caso, o Ministério Público e o Serviço Nacional de Investigação Criminal – SERNIC) pelo facto de “ter, simplesmente, ignorado um dos principais implicados no caso, que esteve presente em todas as fases das operações fraudulentas e sendo ainda a pessoa (um cidadão identificado pelo nome de Nélio, que era na altura tido como filho de um Embaixador cujo nome não nos foi revelado) que, mesmo depois de se ter juntado aos autos provas bastantes do seu envolvimento no recebimento de valores ao vivo por parte de outros co-réus, o mesmo não foi tido nem achado quer na instrução, no despacho de pronúncia e no julgamento”.
Por seu turno, os juízes consideram que, para além de desproporcional, a investigação foi tendenciosa porque se mostrava forte para os fracos (neste caso Nurbibi) e fraca para os fortes, neste caso, Nélio que era filho de um Embaixador, tido como o mastermind da operação fraudulenta que nunca sequer foi interrogado e que teve contacto com os réus que usaram a sua empresa de serigrafia para receber os valores desviados do CEDSIF.
No que se refere ao uso da palavra-chave da co-ré Nurbibi Lacman, o Tribunal concluiu que não havia quaisquer indícios de ter sido a mesma a aceder ao sistema, apesar de se tratar de um elemento pessoal e intransmissível, uma vez que o co-réu Felisberto Manganhela, especialista em informática, sempre confessou a autoria dos crimes de que era imputado, tendo igualmente demonstrado as suas perícias na aquisição de palavras-chave de terceiros, onde foi vítima a ré Nurbibi Lacman.
O Tribunal de Recurso chamou ainda a atenção ao Juiz da causa, pelo facto de ter invertido o ónus da prova para a ré Nurbibi, quando dos autos juntavam-se imagens de câmara no dia em que as operações ocorreram. Nas referidas imagens, refere o Despacho, em nenhum momento aparece a imagem da ré tendo qualquer contacto com o réu Felisberto Manganhela, porém, o juiz ignorou este facto “crucial para a decisão justa da causa”.
O Tribunal de Recurso foi ainda mais a fundo na reanálise do processo em causa, tendo indagado os motivos da aplicação de uma medida de coacção de “tamanha gravidade”, que foi a prisão preventiva para uma arguida (quando o processo ainda ia na fase da instrução) de quem nem sequer havia provas de ter-se beneficiado de algum valor na famigerada fraude.
O documento garante ainda que, mesmo depois de analisadas meticulosamente as contas bancárias de Nurbibi Lacman, como os seus rendimentos, “dos autos não subsistiram quaisquer provas materiais da mesma ter recebido qualquer valor referente aos dois movimentos fraudulentos de que o CEDSIF fora vítima”.
Contrariamente, refere o Despacho, soubemos ainda que dois dos réus que pertenciam à empresa que foi usada como trampolim para a fraude dos valores da CEDSIF, depois de detidos, foram imediatamente restituídos à liberdade, contrastando com as medidas de coacção aplicadas à senhora Nurbibi Lacman.
Aliás, do Relatório Final do colectivo de juízes, constata-se que até o Ministério Público, na mesma secção, posicionou-se no sentido de dar provimento ao Recurso intentado pelo advogado, atendendo a gravidade dos erros processuais, constantes no processo n.º 1231/18-C, pelo que os juízes daquela instância tiveram o trabalho facilitado.
Conforme contou o Advogado de Defesa de Nurbibi Lacman, Elísio de Sousa, “trata-se de mais um caso, em que a justiça tardou, mas chegou. Sempre dissemos que a senhora Nurbibi era inocente e chamamos atenção ao Juiz da causa das diversas irregularidades processuais de que o processo n.º 1231/18-C estava infestado, mas mesmo assim fomos ignorados”, afirmou a fonte.
“Felizmente, o julgamento, em primeira instância, é só um passo na busca da justiça. Infelizmente, a minha constituinte teve de fazer um estágio de um ano e meio no inferno para poder voltar ao paraíso. Atendendo ao despacho dos Venerandos, o processo ainda não acabou, mas foi dado um passo gigantesco com vista ao alcance da justiça”, considerou a fonte.
“Importa referir que não se pode dizer que o processo tenha terminado porque o colectivo de juízes não decidiu sobre a sentença, apenas anulou o julgamento. O que importa dizer que o processo poderá ser novamente submetido a um novo julgamento pelo mesmo Tribunal, embora com um juiz diferente, atendendo que na mesma secção onde o processo foi julgado, já se encontra uma nova magistrada em exercício”, clarificou.
Segundo Elísio de Sousa, com esta decisão, ficam goradas todas as hipóteses de nova condenação de Nurbibi Lacman, uma vez que “todos os prazos processuais já se mostram ultrapassados e há diligências essenciais no processo que já não podem ser realizadas por razões práticas”.
De acordo com fontes ouvidas pelo Jornal, a actual decisão poderá chamar atenção aos órgãos de administração da justiça sobre as possíveis falhas que podem ser cometidas no novo processo que poderá estar em curso na descoberta dos novos desvios que estão a acontecer no CEDSIF, cujo valor poderá ascender os 100 milhões de Mts.
Conforme apurámos de fontes internas, os escândalos financeiros continuam no CEDSIF, havendo actualmente ameaças de morte aos investigadores internos que despoletam os rombos e uma não actuação das instâncias superiores que velam pelo sector. (Carta)