Pode constituir uma novidade, para os distraídos, a missiva recentemente escrita por Graça Machel a solicitar a realização de uma reunião de quadros do partido Frelimo, mas para os atentos representa a confirmação da ruptura da sua família com o “nyusismo”, cujas posições antagónicas vêm se manifestando desde 2018.
A primeira manifestação de insatisfação com o “nyusismo”, por parte da família Machel, foi testemunhada em 2018, quando Samora Machel Júnior, filho do primeiro Chefe de Estado moçambicano, apresentou-se como cabeça-de-lista da AJUDEM (Associação Juvenil para o Desenvolvimento de Moçambique), na cidade de Maputo, para as V Eleições Autárquicas.
A “troca” da Frelimo pela AJUDEM, lembre-se, deveu-se ao afastamento da candidatura de Samora Machel Jr. (tal como de Gilberto Mendes e Razaque Manhique) da lista dos prováveis cabeças-de-lista do partido no poder na capital do país. Na altura, Filipe Nyusi, Presidente da Frelimo, impôs o regresso de Eneas Comiche (na altura com 79 anos de idade), opção que causou frustração a nível do partido.
Como retaliação à ousadia de Samora Júnior, Nyusi ordenou a instauração de um Processo Disciplinar contra o filho de Samora e Josina Machel, cuja nota de acusação foi entregue ao visado no dia 11 de Março de 2019. A nota recomendava a expulsão de Samito do partido Frelimo, porém, o processo acabou sendo arquivado e Samito foi “readmitido” entre os “camaradas” e, em Setembro de 2022, durante o XII Congresso, chegou a cantar “hosanas” a Nyusi.
Graça Machel abandona Comité Central
Enquanto Samito Machel lia monções de saudação à “sábia liderança” de Filipe Nyusi durante o XII Congresso, Graça Machel, viúva de Samora Machel (em 1986) e de Nelson Mandela (em 2013), saía de forma solitária do Comité Central, o órgão mais importante do partido Frelimo entre os Congressos.
Graça Machel não se candidatou à renovação do seu mandato naquele órgão e muito menos explicou as razões da sua saída, porém, “Carta” soube que a mesma se retirou, por um lado, por não concordar com a composição do órgão (que segue o modelo clientelista e não de militância) e, por outro, para evitar a sua humilhação pelo “nyusismo”, visto que as suas críticas à administração actual tornavam-na um alvo a abater.
Aliás, lembre-se que Graça Machel suportou a candidatura de Luísa Diogo, em 2014, quando a Frelimo elegeu seu candidato às presidenciais, facto que não agradou o candidato da ala “maconde”. Luísa Diogo, que disputou a segunda volta das eleições com Nyusi, foi candidata de “última hora”, à semelhança de Aires Ali, depois de Filipe Paúnde, então Secretário-Geral da Frelimo, ter defendido que não havia espaço para admissão de novas candidaturas além dos três pré-candidatos indicados pela Comissão Política: Filipe Nyusi, José Pacheco e Alberto Vaquina.
Com o “nyusismo” rejuvenescido, à saída do XII Congresso, Graça Machel voltou a ser alvo de ataque, logo no princípio de 2023, desta vez de forma indirecta, através da sua instituição: a FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade).
Celso Ismael Correia, o “super-ministro” do Governo de Filipe Nyusi e membro da Comissão Política da Frelimo, foi o mensageiro, depois de a FDC ter questionado a base usada pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural para concluir que 90% dos moçambicanos conseguiam passar três refeições por dia.
Em evento mediático, realizado em meados de Março último, Celso Correia disse que a FDC estava equivocada na sua análise e que os dados sobre insegurança alimentar que constavam do seu posicionamento (70% da população) revelavam tratar-se de uma organização a leste da realidade do país. “Pedi aos parceiros para a gente criar um programa para capacitarmos as ONG”, defendeu Correia.
A retaliação de Graça Machel chegou um mês depois, num debate sobre a construção do Estado de Direito Democrático em Moçambique, no qual a antiga Primeira-Dama mobilizava a sociedade a se livrar da “cultura do medo”, de modo a exercer os seus direitos e liberdades fundamentais, naquilo que foi visto como um ataque directo à administração Nyusi.
“O actual Presidente disse, durante a sua tomada de posse no primeiro mandato, que o seu patrão era o povo. Então, nós temos de lembrar a estes que estão agora a oprimir o povo que nós somos o patrão. (…) Temos de desmantelar o medo no país. Temos de fazer sentir àqueles poucos que oprimem o cidadão que eles é que devem ter medo de nós”, disse Graça Machel, em reacção à inviabilização, pela Polícia de Choque, das marchas de homenagem ao rapper Azagaia, no dia 18 de Março.
Já após as VI Eleições Autárquicas, Samora Machel Jr. apareceu, por duas vezes, a criticar, por um lado, a postura da Polícia e, por outro, da Frelimo, na sequência do escrutínio que deu a vitória ao seu partido em 64 municípios, dos 65 existentes no país.
Em duas cartas publicadas em quase sete dias, Samito denunciou o assassinato, pelas balas da Polícia, de quatro pessoas, na autarquia de Chiúre, província de Cabo Delgado. Também disse que o clamor do povo moçambicano é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores durante o processo das eleições autárquicas do dia 11 de Outubro de 2023.
Nas suas cartas, Samito fala de “actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos”, que “descredibilizam a marca Frelimo perante o povo”, para além de serem “actos que corroem o processo democrático, põem em risco a unidade nacional e comprometem a paz que se deseja para o povo moçambicano, independentemente das opções partidárias.”
Para além das duas cartas, Samora Jr. deu uma entrevista à STV a defender haver infiltrados na Frelimo, que ganharam posições de revelo e levaram o Presidente do partido a caminhos nunca antes tomados. Igualmente, questionou, na semana passada, numa conferência internacional sobre Samora Machel, o que falta para Moçambique desenvolver-se, mesmo com abundantes recursos. Nenhum membro do Governo marcou presença na conferência, porém, na mesma semana, Filipe Nyusi defendeu que não se acaba a pobreza com palavras ou simpósios.
A carta emitida por Graça Machel esta semana, depois das anteriores divulgadas por Samora Machel Júnior, ilustra a ruptura entre a família Machel e o “nyusismo” e a abertura de uma guerra pelo controlo do partido, quando se aproximam as eleições presidenciais de 2024.
Sublinhe-se que a família Machel não é a única na lista negra da Administração Nyusi, que já contava com a família Guebuza, em resultado do escândalo das “dívidas ocultas”, que levou o primogénito de Armando Guebuza à cadeia. Igualmente, não é a única que manifestou a sua preocupação com o rumo do partido, fazendo parte deste grupo Teodoro Waty, Teodato Hunguana, Brazão Mazula, Eduardo Nihia e Mulweli Rebelo. (A. Maolela)