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quinta-feira, 19 maio 2022 09:36

Iminente golpe à democracia, a pretexto de combate ao terrorismo?, questiona Ericino de Salema

No ano em que o movimento que aglutinou várias sensibilidades de moçambicanos, designadamente a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), com o objectivo de libertar o nosso país do jugo colonial, assinala a ‘sexagésima primavera’ desde o ano da sua fundação, eis que o partido político formalmente sucedâneo daquele clube de freedom fighters, que este ano completa 45 anos de existência, nomeadamente a Frelimo, se prepara, através de órgãos de soberania por si dominados – Governo e Assembleia da República (AR) –, para empreender reformas legislativas que, mesmo incidindo sobre um objectivo nitidamente cimeiro e de interesse público, Significarão a impressão de graves recuos democráticos, como que a dar substância à máxima dos cultores do direito segundo a qual “a lei não tem vontade própria”, não passando, num caso destes, de um mero instrumento.

 

Trata-se da revisão, sob proposta do Governo, da Lei de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo (Lei número 14/2013, de 12 de Agosto) e da Lei que Estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção, Repreensão e Combate ao Terrorismo e Acções Conexas (Lei número 5/2018, de 2 de Agosto), ambas ontem (18.05.2022) aprovadas na generalidade pela AR, com voto solitário da bancada maioritária da Frelimo, prevendo-se a sua aprovação na especialidade hoje (19.05.2022).

 

Ainda que, como refiro acima, esteja em causa algo cuja premência de combate, por parte de todos nós, não esteja nem deve estar em causa, há um conjunto de preceitos constitucionais atinentes à intervenção legislativa em domínios em que estejam em causa direitos fundamentais que não estão a ser observados no processo de revisão em em curso (a), em clara e crassa violação às obrigações internacionais de Moçambique, em particular ao nível da União Africana, quanto aos princípios a observar sempre que se estiver a legislar visando o combate ao terrorismo (b). Com isso, se consumará, a meu ver, um recuo no tocante à contínua participação do cidadão, individual ou colectivamente, na democratização e governação do país (c), no que se inclui, igualmente, a consideração de normas que afectariam profundamente direitos fundamentais como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito à informação (d). Julgo haver, mesmo, o risco de o país se expor indevidamente, pelas piores razões no plano internacional, o que terá consequências até sobre a atração de investimento e criação de emprego (e). Como tudo indica que a bancada parlamentar da Frelimo vai definitivamente patrocinar as referidas revisões legislativas, a última esperança reside na “redundância democrática” integrada no nosso sistema político, embora seja parte muito privilegiada do proponente das reformas da discórdia (f). 

 

Apresento, abaixo, elementos de consubstanciação dos pontos que atrás elenco, a coberto da liberdade de expressão – número 1 do artigo 48 da Constituição da República de Moçambique (CRM) – e do princípio constitucional da contínua participação do cidadão na vida do país (parte final do artigo 73 da CRM).

 

(a)  Da inobservância de preceitos constitucionais

 

A defesa da independência e da soberania é um dos objectivos fundamentais do Estado Moçambicano, conforme expressamente consignado na alínea a) do artigo 11 da CRM. Igualmente, e de acordo com o mesmo dispositivo legal, nas suas alíneas f) e g), constituem objectivos fundamentais de Moçambique o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual, num contexto de prevalência de pluralismo, tolerância e cultura de paz.

 

É por conta da centralidade de objectivos fundamentais tais num Estado de Direito Democrático que todas as entidades com função legislativa, em particular a AR e o Governo, tem a obrigação de se guiar, de entre outros, em linha com os ditames do princípio da proporcionalidade.

 

A norma constitucional segundo a qual “A lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias [individuais ou dos cidadãos] nos casos expressamente previstos na Constituição” (número 3 do artigo 56 da CRM) é, pois, uma das expressões máximas do dever de proporcionalidade no nosso ordenamento jurídico-constitucional.

 

Na mesma linha se encontra a disposição inserta no número 1 do artigo 248 da CRM, que estabelece que “A Administração Pública serve o interesse público e na sua actuação respeita os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos”.

 

Com efeito, incluir, em sede de leis estruturantes e absolutamente necessárias, como as de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo e da que fixa o Regime Jurídico Específico Aplicável à Prevenção, Repreensão e Combate ao Terrorismo e Acções Conexas, comandos absolutamente enviesados e desproporcionais, se mostra tão grave que até parece ir para além do “mero” vício de inconstitucionalidade, por conter fortes nuances de anticonstitucionalidade, estando em causa o desrespeito ao núcleo essencial do nosso projecto de sociedade, expresso na CRM.       

 

(b)  Desrespeito às regras de aprovação de leis contra o terrorismo

 

Na fundamentação de ambas as propostas de revisão legislativa, é visível um esforço por parte do proponente, nomeadamente o Governo, de fazer crer que as empreitadas legislativas em curso acham-se alinhadas com os instrumentos de direito internacional ratificados por Moçambique, ainda que nenhuma consubstanciação ou evidenciação nesse sentido seja apresentada.

 

Curiosamente, quiçá estranhamente, o proponente ignora as suas obrigações no contexto da União Africana (UA), de que Moçambique é naturalmente parte, no concernente ao que deve ser observado na feitura de leis que tenham como objecto o combate ao terrorismo.

 

Nos termos da Resolução da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP) sobre a Protecção de Direitos Humanos e do Estado de Direito nas Acções de Luta Contra o Terrorismo, aprovada na 37ª sessão ordinária daquele órgão, que decorreu de 21 de Novembro a 5 de Dezembro de 2005, em Banjul, Gâmbia, Moçambique tem a obrigação de garantir, de entre outros, que todas as medidas tomadas para combater o terrorismo se conformem integralmente com as obrigações do país no âmbito da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e de outros tratados internacionais de direitos humanos, incluindo o direito à vida; a proibição de detenções e prisões ilegais; o direito à justa audição; a proibição de tortura e outros tratamentos desumanos; e o direito ao pedido de asilo.  

 

Já no âmbito dos Princípios e Directrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Contexto do Combate ao Terrorismo em África, aprovado pela CADHP na sua 56ª sessão ordinária, realizada de 21 de Abril a 7 de Maio de 2015, em Banjul, Gâmbia, Moçambique tem o dever de respeitar e proteger, em todas as acções atinentes à luta contra o terrorismo, de entre outros, os direitos de defensores de direitos humanos, vítimas, testemunhas, jornalistas, investigadores, juízes e outros (secção 10); direito à privacidade de pessoas singulares e colectivas (secção 11); e o direito de acesso à informação e direito à verdade (secção 12).

 

Como forma de se acondicionar uma efectiva aplicação dos Princípios e Directrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Contexto do Combate ao Terrorismo em África, a CADHP aprovou, na sua 60ª sessão ordinária, ralizada de 8 a 22 de Maio de 2017, em Niamey, Niger, a Resolução sobre a implementação desse instrumento, ressaltando, para o nosso país, obrigações como as seguintes:

 

  1. Cuidar que os direitos e garantias preconizados nesse instrumento são garantidos em sede de leis, políticas, regulamentos e práticas sobre as operações de combate ao terrorismo, incluindo durante conflitos armados e vigência do estado de emergência;
  1. Incluir, nos seus relatórios no quadro das suas obrigações no âmbito da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, informação sobre o seu cumprimento dos princípios e directizes de direitos humanos quando são aprovadas leis, feitas políticas e estabelecidos regulamentos que tenham que ver com a luta contra o terrorismo, bem assim elementos sobre como, em acções posteriores, isso continuará a ser observado;
  1. Tomar as medidas necessárias visando capacitar todas as partes interessadas no que é abordado pelos Princípios e Directrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Contexto do Combate ao Terrorismo em África, bem assim incluir os princípios e directrizes desse instrumento nas regras de engajamento e planos operacionais no quadro da luta contra o terrorismo.

 

Em boa verdade, os deveres de Moçambique no tocante à observância dos Princípios e Directrizes sobre Direitos Humanos e dos Povos no Contexto do Combate ao Terrorismo em África, que tem como fonte a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, são acrescidas, uma vez o nosso país ter expressamente eleito, na sua lei fundamental, instrumentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos como referências obrigatórias na efectivação do seu sistema de direitos humanos.

 

É, pois, nesse quadro que o artigo 43 da CRM estabelece o seguinte: “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos”.

 

Pretender reforçar a legislação sobre a prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo, um objectivo indiscutivelmente nobre, mas desrespeitando a disciplina dos direitos fundamentais, nos termos da CRM e das obrigações internacionais do nosso país, é, pois, absolutamente problemático.

 

(c)  Recuo democrático

 

Nos termos do artigo 73 da CRM, os moçambicanos exercem o poder político de três formas: através do sufrágio universal, directo, igual, secreto e periódico para a escolha dos seus representantes; participando em referendos sobre as grandes questões nacionais; e pela permanente participação democrática na vida da Nação.

 

Os direitos fundamentais, no quadro do que se inclui a permanente participação democrática na vida da Nação, são aplicáveis não só a pessoas singulares, mas também a pessoas colectivas. Por isso, a limitação dos direitos fundamentais das associações e/ou Organizações Não-Governamentais (ONGs) deve observar os princípios constitucionais, sobretudo se se tomar em linha de conta que a CRM configura, no seu artigo 78, entidades tais como espaço de intervenção democrática organizada dos cidadãos.

 

O que se integra no artigo 57 da Proposta de Lei de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, por exemplo, choca com aspectos que têm que ver com a protecção de dados, particularmente no que tange à reserva de divulgação de informação que mexe com a privacidade das organizações, conforme disposto no artigo 20 da Lei do Direito à Informação (Lei número 34/2014, de 31 de Dezembro).

 

Não me parece fazer sentido que o Estado limite a divulgação de certo tipo de informação que lhe diz respeito, e que, por sua vez, exige que os cidadãos, devida e legalmente associados, a divulguem. Logo, pretender limitar os direitos das associações e/ou ONGs, sem observar os relevantes ditames constitucionais, bem assim as obrigações internacionais do nosso país, é problemático.

 

Por outro lado, há que ter presente que, à luz do princípio da proibição do retrocesso em matérias respeitantes aos direitos fundamentais – conforme se pode extrair, por exemplo, pelos artigos 43, 56 e 248 da CRM –, alguns aspectos que corporizam as duas propostas em causa (como, por exemplo, a privação de liberdade de quem publica informação classificada, ainda que essa informação seja de interesse público e não esteja à guarda de quem a publica, no que a escandaleira das dívidas ocultas serve como um exemplo paradigmático!) significa(ria), de forma inequívoca, um grave recuo democrático.

 

(d)  Esvaziamento da liberdade de expressão

 

Com efeito, as propostas de normas que condicionam a divulgação de informação sobre terrorismo, prevendo duras sanções, não passam de uma clara normalização da censura prévia, estando implícito, ali, que pode estar-se, permitam-se o exagero, a arquitectar o estabelecimento de uma “agência oficial de censura prévia”, de que seriam “clientes” de primeira linha os jornalistas e demais fazedores de opinião.

 

A liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito à informação, sendo direitos fundamentais (artigo 48 da CRM), devem ser exercidos num contexto para o efeito amigável, até porque a própria CRM já diz (artigo 56) que são de aplicação imediata.

 

Se se avançar como se pretende, esses direitos fundamentais passarão, pois, a ser autênticas letras mortas, como o é, de resto, a réplica política prevista no artigo 49 da CRM, o que encontra máxima expressão na governamentalização dos órgãos de informação formalmente públicos, com destaque para a Televisão de Moçambique (TVM) e a Rádio Moçambique (RM), não ignorando os esforços de abertura que se estão e verificar nos últimos meses na TVM, ainda que, muito provavelmente, não de forma sustentável.

 

E quando tudo isto sucede à velocidade de cruzeiro, num momento em que também se pretende, em sede da revisão da Lei de Bases da Comunicação Social (que agora se denomina Lei de Imprensa, estando a propor-se que passe a designar-se Lei da Comunicação Social, mas sem que, digo eu, deixe de ser, rigorosamente, uma Lei de Bases), introduzir um regulador de media governamentalizado, parece não restarem dúvidas de que falta muito pouco para os morcegos começarem a doar sangue...

 

(e)  Dos riscos para o país

 

Se se avançar com a aprovação de ambas as propostas de revisão de leis como se encontram no momento em que termino este texto (9 horas de quinta-feira, 19 de Maio), não me espantarei se Moçambique se tornar objecto de resoluções condenatórias por parte de comissões de direitos humanos das Nações Unidas e da UA, tornando o país tristemente célebre nesse tema.

 

Associado a isso, Moçambique será, muito provavelmente, destino de missões de peritos em direitos humanos, o que será massivamente noticiado pelo mundo, expondo haver absoluta imprevisibilidade e insegurança jurídica no país, o que será um grande obstáculo à diplomacia económica auspiciada pelo Presidente Nyusi, com a consequente redução da já baixa atractividade do nosso país como destino de investimentos, quando deveríamos estar a trabalhar no oposto.    

 

(f)    Funcionará a redundância democrática?

 

Não ignoro que o Presidente Nyusi, sendo chefe máximo do partido no poder, tenha plena ciência do que está no “cartório político-notarial”, aliás, na AR, ao mesmo tempo que não ignoro, por maioria de razão, que ele esteja ciente do facto de ter jurado, nos termos da CRM (artigo 149), respeitar e fazer respeitar a Constituição, bem como dar tudo de si em prol da defesa dos direitos humanos e da democracia.

 

Sendo quem detém, em regime de absoluta exclusividade, competência para a homologação de leis, e estando as duas propostas em causa no topo das discussões na esfera pública, quero acreditar que o Presidente Nyusi não abrirá mão ao facto de ser, neste momento, redundância democrática, accionando todos os mecanismos constitucionais visando a não viabilização do iminente recuo democrático. (Ericino de Salema é jornalista e jurista)      

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