Encrustado no regaço de um cadeirão, ele embrenhara-se numa sesta quase de barriga vazia, mas esses são aqueles momentos em que o sono eclipsa a dor e a angústia das perdas arrastadas pelas águas na madrugada de uma noite em que, quem sabe, mais um zip se encravaria nas frabiquetas de orgasmos de cada um. E, depois, em cada despertar de cada sesta renasce sempre a esperança.
O homem, encontrado na viela central de Buzi, não ronca. Seu sono parece profundo, a clientela ausente e a mercadoria amontoada numa mesinha bem junto de si. O homem é um dos vários heróis do Buzi. Aliás, no Buzi todos são heróis. Nenhuma hierarquia captaria uma diferenciação do heroísmo, a não ser por decreto oficial.
Infelizmente, o ser humano não é tão organizado, sensível e solidário quanto parece. Em 2001, durante as cheias que devastaram a zona centro do país, particularmente os distritos ao longo do rio Zambeze, participei dos trabalhos de apoio aos afectados, como voluntário. Éramos quatro moçambicanos contratos às pressas, por uma organização humanitária americana na cidade de Quelimane, para trabalharmos como tradutores (na verdade, queriam gajos que "tolkavam" um pouco de inglês), mas acabamos fazendo trabalhos logísticos, sanitários (tratar água e ajudar as pessoas a tomarem correctamente os medicamentos) e outros que o momento requeria. Na verdade, fizemos de tudo. O nosso quartel-general era Luabo, na altura, Posto Administrativo do Distrito de Chinde. A partir dali, dávamos assistência aos mais de uma dúzia de centros de reassentamento implantados naquela zona. Foi uma experiência e tanto.
Dizia, então, não somos assim tão organizados e bem intencionados quanto aparentamos ser. Circulam vídeos nas redes sociais que mostram pessoas (aparentemente vítimas do ciclone IDAI) lutando para conseguirem comida ou assaltando armazéns de viveres. E os comentários dizem que aquilo deve-se a demora e má distribuição da comida ou então esquemas de corrupção das equipas de gestão dos bens. NÃO É BEM ASSIM.
A ajuda humanitária é dividida em duas fases: período de cheias e período pós-cheias. A primeira fase é a mais complicada e difícil. Nesta fase ninguém tem certeza que a comida é suficiente para todos. Nem a pessoa que distribui, muito menos os que vão receber. É que neste primeiro período não há números concretos das vítimas, os centros são improvisados e há muita desinformação e desconfiança e, por isso, muito oportunismo. É o período do caos. Gera-se muita ansiedade e insegurança nos beneficiários que acaba gerando nervosismo nos gestores e que, as vezes, acaba em confusão. Pior quando se envolve a Polícia.
Já a segunda fase é mais soft para todos. A vida começa a reerguer-se, os centros estão melhor organizados, já se sabe com exactidão o número de beneficiários de cada centro, os gestores já têm listas dos beneficiários (organizados em homens, mulheres, crianças, idosos, viúvos, órfãos e chefes de família, etecetera). Nesta fase, já se sabe com exactidão as quantidades necessárias para cada comunidade e já há confiança entre as partes. Tudo flui a contento.
Infelizmente, têm havido muitos oportunistas em momentos de crise. Há pessoas que viajam de locais não afectados para criar confusão nos centros de distribuição de comida para venderem os produtos à preços especulativos nos mercados de outros distritos. Eu vivi isso. A comida (arroz, farinha, feijão, óleos, etecetera) que distribuiamos vinham da África do Sul, mas nós encontrávamos nos mercados a venda. Até medicamentos, as vezes.
Os assaltos aos armazéns de produtos muitas vezes não têm nada a ver com a demora na distribuição. As vezes nem é naquele local que os produtos são distribuídos. A desinformação, a fome, a ansiedade, a insegurança, a desconfiança, mas também - muitas vezes - a má fé, contribuem para isso. É claro que também há factores organizacionais dos próprios gestores dos produtos e corrupção. Por isso não consigo julgar os cenários com base nos vídeos que circulam. Seria muita leviandade da minha parte. Não estaria a ser justo. Há muita gente se solidarizando e se entregando para ajudar os nossos irmãos. Há pessoas que deixaram as suas vidas em Maputo, por exemplo, para irem ao terreno para prestarem o seu apoio a custo zero, assim como eu e meus conterrâneos fizemos há dezoito anos. Não é nada fácil. Distribuir comida em tempos de crise não é tarefa fácil. Só quem já esteve no terreno sabe do que falo. Muita calma nessa hora!
- Co'licença!
Ontem liguei para um tio meu residente na cidade da Beira para saber como estava a sua vida pós IDAI. Depois daqueles salamaleques de início de conversa, o cota entrou automaticamente num festival de lamentações dos comerciantes locais que inflacionaram tudo. O velhote atribuiu todos adjectivos pejorativos em português, ndau, emacua, elómuè, inglês, árabe, alemão (é madgermane), e uns outros idiomas que eu não conheço. Falou do descaso do governo perante a situação: este governo é assado, frito e cozido.
E eu: Mas, tio, qual é o espanto? Por quê tanta indignação? Onde está a novidade nisso tudo que acabou de falar? Tio, aqui no nosso país quem tem moral suficiente para repreender esses especuladores de preços? É que este país já anda inflacionado faz muito tempo com o próprio Estado/Governo na linha da frente. O Estado/Governo passa a vida a sobrefaturar as suas próprias obras. Estradas, escolas, hospitais, pontes, viaturas, equipamentos, e tudo, anda com valores superiores àquele que efectivamente devia ser cobrado.
Ahhh, porque isso é burla. Burla é também aquilo que a É-Dê-Eme, a FIPAG e a Ele-A-Eme fazem com os seus clientes. Na verdade, a energia da nossa É-Dê-Eme nem devia ser vendida pela quantidade de cortes e pela qualidade de estragos que faz aos nossos electrodomésticos. Num país normal aquela água da FIPAG não se dá ninguém para beber nem de borla. Quanto é que pagamos pelos voos domésticos da Ele-A-Eme? Isso é roubo. Roubo também são os juros praticados pelos bancos da praça. Chegam até a ter mil por cento de lucro anual. Os nossos bancos não têm pena. Como se chama aquilo que as farmácias privadas fazem? Paracetamol a preço de uma operação plástica. Aqui funciona a política do mar: quem tem boca grande engole o outro. No dia que camarão tiver boca grande vai engolir tubarão.
Estamos todos inflacionados. Até no governo temos ministros inflacionados. Há ministros que você não se dá conta da sua existência até ser acusado de desvio de fundos. Neste mandato temos um ministro que apenas trabalhou no dia em que uma adolescente pendurou bandeira algures no rabo. Temos alunos da primária inflacionados em licenciados e agora andam por aqui insultando ideias contrárias e citando livros que ainda não foram escritos. Estamos a pagar balúrdios a um "seleciona-a-dor" que devia estar a treinar cortes e penteados no "Mozambique-Feixon-Wik". Isso também é especulação.
Quem tem moral para repreender os inflacionadores da Beira? Alguém diria "as autoridades". Que autoridades? O ciclone IDAI só trouxe o mesmo velho debate com esses especuladores de preços em miniatura. O país foi oficialmente vendido a um preço especulativo desde a implantação do cabritismo. Hoje alguns cabritos se transformaram em girafas; você amarra aqui e, graças ao seu pescoço, o gajo come ali. Há outros que já comeram a própria corda que os amarrava e agora andam soltos e comem em qualquer lugar. Enquanto falamos dos comerciantes oportunistas da Beira, há quem já deve estar a inflacionar os próprios donativos: entrega um quilo e reporta dez.
Está tudo especulado. Eu próprio sou um produto inflacionado dessas redes digitais. O mano Marcelo Mosse só veio carimbar a inflação dando-me um espaço no seu prestigiado jornal, deixando-me escrever ao lado de grandes celebridades como o Mia Couto. E agora eis-me aqui feito um grande intelectual, pensador, analista e sei-lá-mais-o-quê (de acordo com a ilusão) dando-me o direito de falar dos outros burladores desta "mátria". Capitalismo, dizem.
- Co'licença!
João Lourenço, Presidente de Angola, exemplo invejável de toda a África, inesperado pela atitude de colocar o seu país acima de quaisquer interesses pessoais ou de grupos, vai ser com certeza o meu orgulho como africana. Estou a pensar nisso agora que me encontro confinada neste acampamento no Búzi, erguido para nos acolher depois de sermos varridos pelo dilúvio. O problema não é estarmos aqui arrebanhados. Não é esse o problema. Mas sim a dor de perceber que estamos a ser usados para alimentar os apetites dos abutres, sem podermos fazer nada, senão derramar as lágrimas para dentro do nosso coração. Formando a albufeira da tristeza.
João Lourenço fala do pote, para o qual desciam os marimbondos (vespas) com o intuíto de chupar o mel do povo. E eu falo da manjedoura que a nossa desgraça construíu para ser usufruída pelos abutres. Eles pairam sobre as nossas cabeças, descem com as horríveis garras abertas, e tiram a comida trazida pelos amigos e pessoas de boa fé para nos alimentar e disfarçar a dor de estarmos aqui.
Enquanto choramos a morte dos nossos filhos e dos nossos maridos e dos nossos irmãos e avôs, eles choram lágrimas de crocodilo. Aviam-se uns na clareza do dia, outros à calada da noite, com o que foi trazido para nós, mas estamos a ver tudo. E eu, que cheguei aqui apenas com as minhas mamas cheias de leite, sem a criança que gerei com dor e amor, essa criança arrancada dos meus braços e levada pela enxurrada sem eu poder fazer fosse o que fosse, pergunto-me: afinal porquê que fazem isto?
Eles não ouvem. Os abutres são surdos. Continuam a descer e a tirarem da manjedoura o que trouxeram para nós. Mas não tem problema. Eu sou uma mulher nascida da terra. A terra é o meu maná. Todo o meu corpo cheira à terra que trabalho com o lombo vergado, danificando a minha espinha dorsal. Voltarei para lá quando tudo isto passar. Tudo isto vai passar. Menos a minha dignidade.
Abutres! O que me dói não é vocês tirarem a comida que trouxeram para nós. Não é isso que me dói. Isso podem continuar a fazer para encher os vossos reservatórios já fartos. Não me importo. O que me dói é vocês desprezarem o sofrimento das crianças, a nossa morte. Isso é que me castiga. Repugna-me o vosso sorriso de hienas vestidas de pele de cordeiro.
Mas eu sei que o coração está com aqueles que sofrem de facto com o nosso drama. É diante desses que me inclino e agradeço. À eles entrego meu rosto para me limparem as lágrimas, já que as minhas mãos tremem de dor e desepero. Enconsto minha cabeça do peito deles enquanto vos observo, abutres abominados, disfarçados entre estas pessoas de boa fé. Que nos abraçam com afecto.
Saiam daí, saiam!
Se houvesse um ranking global para medir a credibilidade de um Estado, Moçambique seria avaliado negativamente. Imagine um ranking de 0 a 10, onde 0 é menos credível e 10 o mais fiável em termos de moralidade e integridade. Nosso país estaria abaixo do zero. Fazendo um paralelo com o critério de notação da dívida pública, estaríamos abaixo do lixo, que é o lugar onde nos colocaram todas as agências de notação financeira.
Por causa do calote da dívida pública, nosso Estado é olhado com desconfiança nos mercados financeiros internacionais. Os credores são aconselhados a não emprestar porque nosso Estado não tem estrutura financeira para honrar compromissos, como se revelou com o “default” relativamente à dívida da Ematum e, subsequente, das restantes MAM e ProIndicus.
A romaria solidária que inundou a zona de cabotagem do Porto de Maputo é uma demonstração inequívoca de que os moçambicanos podem facilmente abraçar o outro, independentemente da origem regional ou étnica, credo ou partido político. Mas, para isso acontecer, é preciso que tudo o que seja figura do Estado ou elemento de partido político esteja a milhas de distância da mobilização dos apoios.
É o que se vê com esta onda de afectos das gentes de Maputo para com as gentes da Beira, do Buzi, de Nhamatanda ou do Matundo, enfim, os moçambicanos violentados no seu quotidiano desprotegido por uma classe política enredada na ganância e que fez do saque do bem público e da pura ladroagem um meio de vida, adiando vários programas de protecção social.
Meia dúzia de moçambicanos puseram mãos à obra num projecto que está a tornar-se na maior onda de solidariedade jamais vista em Moçambique. Uma torrente de afectos embarcando em contentores ofertados por empresas com gestores sensibilizados pela causa. Essas empresas e esses gestores e todo o voluntarismo consequente não representam nenhumas cores políticas ou partidárias. Ali não há Partido nem Estado. É o chamado terceiro sector fazendo renascer redes de solidariedade há muito tempo destruídas pela política.
Ainda bem que é assim. Ainda bem que o INGC é um elemento passivo neste processo particular. Houve tempos em que os moçambicanos eram mais solidários. Mas essas redes foram capturadas. A CVM e o INGC tornaram-se antros da privatização da ajuda. E abriu-se um fosso de desconfiança entre a parte da sociedade que pode doar e as instituições do Estado ligadas à emergência, privando a parte da sociedade carente de ajuda. Nos últimos anos, a coisa se agravou. A política capturou todos os espaços da sociedade, imiscuindo-se até no terceiro sector. Pior, as calamidades naturais foram também instrumentalizadas, tornando-se fontes de enriquecimento ilícito. E, hoje, a percepção de que muita ajuda local e externa não chega a quem realmente precisa é geral.
Por isso, se o mobilizador central desta onda de apoios tivesse sido o Estado é provável que muita gente com capacidade de doar ficaria retraída. Mas como é a própria sociedade civil fora da politiquice barata, então a adesão é enorme. Os moçambicanos de todas as matizes mostrando uma marca do seu ADN: abraçar os outros, não olhando a meios. Afinal, há muitas coisas que poderíamos fazer melhor sem os políticos.