E de repente, na cabeça um ruído estridente como o de um meteoro a abrir um buraco na terra. Nenhuma gaivota nos meus olhos; nenhuma mão na minha mão. Apenas um ruído estridente a vaguear na minha cabeça, a fumaça a enturvecer a visão, as chamas a engolirem tudo como uma serpente gigante e o cheiro a queimado a espicaçar-me as narinas como a máquina do vizinho a moer os grãos de milho, sem piedade, até tudo ser farinha ou pó que um dia voltaremos a ser.
O fogo era tão intenso como um desejo maldito que nos visita sem aviso e sentia ferverem dentro de mim as tripas de todo o mundo. Não sei onde tinha começado, nem o que queria connosco, mas ele estava dentro da nossa casa, estava no nosso bairro que ardia numa madrugada que insiste em colar-se às paredes da minha memória.
Desde que me conheço por gente, foi sempre dentro daquelas paredes de madeira e zinco que vivi; foi sempre neste bairro de madeira zinco onde cresci e aprender a ler a cidade de Maputo que à nossa volta vai erguendo prédios gigantes que meia-volta e meia vão nos sufocando e proibindo o sol de chegar até nós. Nunca vivi noutro bairro, não conheço outras paredes para além das chapas de zinco que acendidas pelo fogo naquela noite assavam-nos vivos. O primeiro aniversário na sala de madeira e zinco, o primeiro sonho no quarto de madeira e zinco, as primeiras gotículas de menstruação e o primeiro beijo num beco de madeira e zinco, o primeiro gemido e os olhos na madeira zinco. Tudo aqui.
Perdi a conta de vezes que o presidente do município, a governadora da cidade, os sucessivos governos da República prometeram construir casas novas, melhoradas, de cimento como as outras tantas que crescem a cada dia na cidade. Mas sempre tudo o mesmo. Tudo solução de curto prazo, a peneira em cima do sol. No lugar de casas de madeira e zinco que caiem, outras casas de madeira e zinco, talvez para preservar o património histórico da cidade, talvez para preservar a nossa pobreza. Outras casas de madeira zinco até o fogo chegar de novo e consumir tudo de novo. Outras casas de madeira e zinco porque reclama-se uma semana e na semana seguinte ninguém mais fala no assunto, uma indignação que dura uma semana e uma madeira e zinco que dura até o próximo incêndio.
Quando a fumaça começou a invadir o quarto e a pequena porta de madeira foi engolida pelo fogo, o bairro já andava irrequieto e construía-se, uma vez mais, a maior chaminé da cidade. Uma chaminé que deitava para o céu uma nuvem rugosa, densa e suja de nossas memórias e passados.
Não era a primeira vez que o bairro ardia, mas era a primeira que o fogo invadia a nossa casa e devorava tudo o que tínhamos.
O fogo a consumir a porta com gula. A cara da minha mãe assustada e as suas em cima de mim a abanarem-me o corpo para que acordasse enquanto fosse tempo. As mãos da minha mãe, que com os anos foram ganhando rugas de tanto lavar os pratos nos quais os outros comiam num dos principais restaurantes da cidade, em cima de mim a abanarem-me desesperadamente até que eu acordasse, porque mais tempo e deixaria de haver tempo para escapar do fogo que devorava a porta do quarto.
Lembro-me da arrelia ao acordar; do medo no lugar da arrelia; do calor dentro da casa; a luz incandescente das labaredas a espalhadas pela casa; o medo a devorar-nos coma mesma intensidade que o fogo devorava a casa enquanto minha mãe e eu atravessamos o mesmo buraco entre as chapas por onde sempre entrou frio no Inverno.
Não era a primeira vez que o bairro ardia, mas era a primeira que o fogo invadia a nossa casa e devorava tudo o que tínhamos. Muita algazarra naquela madrugada, uma nuvem cinzenta e rugosa na chaminé gigante que cuspia no céu tudo o que tínhamos.
Sinceramente, nenhuma gaivota nos meus olhos; tudo pó no lugar da casa; no lugar do tecto de zinco apenas o céu cinzento em cima de mim, de minha mãe e do meu pobre bairro.