Há dias, e poucos, estive numa casa de pasto para um encontro com o Marutissa, meu primo. Fui o primeiro a chegar. A ele, que vinha a caminho, respondi de que estava na “cadeira 38”. “Ok” foi a resposta.
Este sábado, 23 de Setembro de 2023, ainda pela manhã, recebo uma chamada da empresa de transporte que me informa o cancelamento da reserva da cadeira 38, sugerindo como alternativas a 36 ou a 40, caso quisesse ficar em lugar próximo. Optei pela cadeira 40. O telefonema termina com a informação de que eu seria “logo logo” contactado para alguns detalhes que ainda careciam de confirmação.
Por conta do fim-de-semana longo programara que o passaria na terra natal, Inhambane. Enquanto esperava pelo retorno da chamada veio-me à memória de que era a primeira vez, em 22 anos, que não viajaria na cadeira 38. À boleia da lembrança, também a da razão do hábito de viajar na cadeira 38.
“Lamentamos informar de que a partida do autocarro foi reprogramada para o próximo dia 26 de Setembro pelas 11H30”. O prometido telefonema que me comunicava a amarga notícia, acrescentando que me assegurava que era a única alteração. Resumindo: não viajaria na cadeira 38.
Porque a ida à “Terra da Boa Gente” era mais do que passar um fim-de-semana longo, prontamente anui. Na verdade a mente já havia iniciado uma outra viajem, a da lembrança da razão de sempre viajar na cadeira 38.
Natal de 1969. Dois irmãos viajam de Inhambane à então Lourenço Marques, hoje Maputo, ou no trajecto inverso. O mais velho (Lázaro) ia sentado na cadeira 37. O mais novo (Abel) ia ao lado do motorista. O mais velho, uma hora depois da partida, e de forma insistente, sinalizava com o indicador para que o mais novo chegasse a ele.
“O que será que o mano Lázaro quer?”. Interrogava-se o mais novo à medida das chamadas. A insistência fora tal que acabou por aproximar. “Sempre que viajares de autocarro sente na cadeira 37 ou 38. É mais seguro em caso de acidente ou de qualquer emergência”.
Soube desta recomendação nas exéquias fúnebres de quem ia sentado na cadeira 37. Desde então, passam 22 anos, que estar numa “Cadeira 38” é o mesmo que dizer que estou bem instalado, em lugar seguro e que se recomenda. Daí o “OK” do primo Marutissa, por sinal o caçula de quem era recomendado a escolher o lugar seguro para viajar.
Esta terça-feira, dia 26 de Setembro, chego a terminal na hora prevista. Não era o ambiente normal de uma terminal de transportes e estava com áurea de proximidade e aconchego. Nos semblantes dos presentes, embora não se vislumbrassem sinais de que fossem viajar, a sensação de que viajavam e a de celebração da despedia de alguém que partia pela primeira vez para o estrangeiro.
Perto das 09H00 entro no autocarro carregado de curiosidade sobre quem estaria sentado na cadeira 38. A “térrea-moça” confere o assento no meu bilhete e a caminho da cadeira 40, na 37 estava o seu eterno ocupante. Estranhamente que desta vez não disse “Tenha a bondade”, enquanto indica a cadeira 38. A razão: na cadeira 38 já estava ocupada pelo seu companheiro de viajem do natal de 69: o seu irmão Abel.
“Estimados, a vossa atenção. Vamos iniciar a viajem e o ponto de partida será o regresso ao passado com a duração de 99 anos, prevendo que a chegada seja no dia 16 de Setembro de 1924”. Era a “térrea-moça” que em seguida pediu que se fizesse silêncio.
No silêncio da viajem ao passado foram passados em revista, na forma e no conteúdo, a nobreza das 99 primaveras do ocupante da cadeira 38, Abel Lopes Menete.
Dia 16 de Setembro de 1924. Chegada a Jangamo, Inhambane, marcada pela alegria contagiante do regresso de quem deixara a terra natal, 15 anos depois do seu nascimento, rumo a então Lourenço Marques, a terra prometida.
10H30. A “térrea-moça” anuncia a partida e de que se farão duas paragens antes do destino. A primeira no Bairro 700, a saudosa morada térrea do ocupante da cadeira 38, e a segunda no cemitério da Texlom. E daqui a decolagem da viagem final até ao reino dos céus. E assim aconteceu por volta do meio-dia.
Por algum motivo fiquei em terra na primeira paragem. Esta madrugada de chuva, e que abençoara a viajem, soube dela de que a viagem correra bem e que o ocupante da cadeira 38 fora recebido com uma honrosa e estrondosa salva de palmas durante 38 segundos. No final, a saudação: Cadeira 38, Saravá!
Em jeito de homenagem a Abel Lopes Menete (16/09/1924 – 23/09/2023)