Não nos parece ser contraditório afirmar que o espaço digital veio ‘revolucionar’ a maneira como comunicamos. No campo das mobilizações sociais, Manuel Castells (2012) já havia designado tal realidade com o que chamou de ‘’redes de indignação e esperança’’ [Networks of Outrage and Hope], onde examinava o papel das redes sociais da Internet na formação do activismo social e político. Concentrando-se na Primavera Árabe e no Movimento Ocupar, Castells argumenta que tais movimentos foram organizados através de tecnologias de comunicação em rede, que permitiram aos activistas partilhar informação e coordenar as suas acções de forma rápida e eficiente.
Castells também explora os contextos culturais e políticos que deram origem a estes movimentos, argumentando que foram alimentados por um sentimento de frustração com os sistemas políticos existentes e por um desejo de maior justiça social. O autor enfatiza, por fim, a importância do horizontalismo e da organização sem líderes nestes movimentos, bem como o papel dos jovens na condução da mudança social.
Numa outra dimensão, encontramos o anglicismo « cancel culture » ou então ‘’cancela a cultura’’, um acto que designa um conjunto de factos relacionados com a ‘’nova censura’’ no espaço digital, cujo campo privilegiado de manifestação diz respeito à universidade e à cultura. Este fenómeno surgiu acoplado ao movimento Me Too, em 2017, e nessa altura a intenção primordial era não mais do que ostracizar os agressores, ora denunciados pelas vítimas, exigindo que exibissem comportamentos de reparação e de arrependimento para com as mesmas. Teoricamente, diga-se, a ‘’cultura do cancelamento’’ pode ser descrita como a tentativa activa de silenciar uma pessoa que expressou uma opinião que ofendeu alguém quer tenha sido intencional ou não.
No campo político, o historial remonta para Junho de 2020, quando a revista americana Harper’s publicou uma carta aberta intitulada ‘’A Letter on Justice and Open Debate”. Na mesma carta, era referido que a resistência ao então Presidente Donald Trump não devia conduzir os cidadãos ao dogmatismo ou à coerção. Tal carta foi co-assinada por 150 escritores, artistas e jornalistas, sendo que entre eles estavam várias figuras históricas da esquerda americana, como Noam Chomsky, Gloria Steinem e Michael Walzer. A carta apontava, assim, um clima intelectual de ameaças, denúncias e até o medo que os americanos chamam ‘’cancelar a cultura’’ ou a cultura da censura. Nascido nas universidades mais prestigiadas, centrado em questões de raça e género, este clima é semelhante ao McCarthyismo de esquerda, que infestou os meios de comunicação social, o mundo da cultura e até mesmo a vida empresarial.
Voltando para Castells, para o caso de Moçambique propomos o que entendemos por ‘escapatória juvenil’, um mecanismo de contornar a impossibilidade da presença física através da mobilização de rua no país. Assim, os cidadãos no geral, os jovens de forma particular, encontram nas redes sociais da Internet, uma forma de escapar aos actos de sevícia de suas liberdades que não são garantidas no espaço físico (offline). Adicionalmente, as redes sociais da Internet fornecem uma aparente segurança que não pode ser garantida em sede de uma demonstração popular por meio da manifestação ou da associação colectiva directa. Dessa forma, o espaço digital é transformado num verdadeiro ‘tubo de escape’, para, por via dele, expor diferentes opiniões.
Por conseguinte, como ilustra o título do presente texto, o termo ‘cidadania de fúria’ é nossa invenção para designar o exercício de actos cívicos, tidos como resposta à ocorrência de um evento ou realidade que viola os direitos cívicos e participativos de uma certa franja populacional, no caso em apreço os jovens, bem ‘’o mutismo dos bons’’ perante tais violações. Para nós, a ‘cidadania de fúria’ é manifestada por meio de escritos, imagens (memes, sobretudo) e palavras codificadas, que induzem para o posicionamento que deve ser entendido como repúdio social e político diante de uma ‘irritação colectiva’. Ou seja, os já conhecidos actos de ‘cancelamento’ e ‘banimento’ de artistas, fazedores de cultura, academia e alguns órgãos de comunicação são disso um exemplo.
Porém, para nós, tais ocorrências não são necessariamente uma mensagem contra os cancelados ou banidos. São, na verdade, contra um modo de vida em sociedade que ao longo do tempo foi tido como aceitável por uns, enquanto outros viviam em situação de deploração social, económica e governativa, tendo como maiores afectados os jovens. Assim, em sociedades menos tolerantes e abertas ao pensar contrário como Moçambique, é nosso entendimento que as tecnologias digitais têm se mostrado como uma poderosa ferramenta para a mobilização social e política, permitindo que os jovens possam se organizar e expressar suas demandas e reivindicações. E, mais do que diminuir, tal realidade se espera que aumente nos tempos próximos.
Embora aparentemente funcionais, alguma atenção deve ser recordada sobre as actuais demonstrações de ‘’cancelamento’’, dado que em teoria os activistas são cidadãos que possuem uma opinião formada sobre algo e as suas acções tendem a ir no sentido do benefício último da sociedade. Tendo como base a análise feita em outros contextos [Observador, 2022], a ‘’cultura do cancelamento’’, bem como tudo que lhe está associado, assemelha-se mais a um linchamento social, uma forma pejorativa de justiça privada, de fazer cumprir a função jurisdicional sem a necessidade de esta estar adstrita a determinados órgãos de um dado Estado, através de um sistema organizado de justiça e, sendo assim, perante esta evidência, a ‘cultura do cancelamento’ pode facilmente ser sinónimo de abuso e excessos.
Considerados os elementos acima, uma pergunta permanece sem esclarecimento: se não fosse a escapatória juvenil no espaço digital e a ‘cidadania de fúria’, que opção resta aos cidadãos num contexto de fechamento das suas liberdades em Moçambique?
FIM!