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sexta-feira, 27 maio 2022 10:19

O Jornalismo numa “democradura”

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Foi-me pedido que partilhasse a experiência moçambicana num Congresso sobre jornalismo, cidadanias e democracias sustentáveis. O meu primeiro dilema tem que ver, mesmo, com o tema do Congresso. Os conceitos constitutivos desse tema são objecto de múltiplas querelas intelectuais e académicas, discussões que vão desde a filosofia política à ciência política, passando pela sociologia e teoria políticas. Como, pois, falar de jornalismo, cidadania e democracia sustentável num mundo em que a degradação dos princípios democráticos parece ser a regra cada vez geral nos países ditos de “velha democracia” e, mormente, num país onde esses conceitos têm mais um carácter abstrato e instrumental do que necessariamente existência material?


Não é, sequer, uma revelação assertar que Moçambique não é uma “democracia sustentável”, se aceitarmos que “democracia sustentável” quer dizer um regime político onde as liberdades fundamentais (Locke, Montesquieu, Mill, Aron) e as leis são livres e transparentes, onde o respeito pelos direitos fundamentais é garantido e onde a violência não é a base fundacional para o exercício do poder, como é o caso de Moçambique.

 

Todos os relatórios, nacionais e internacionais, que estudam o estado das democracias e o exercício das liberdades, no mundo, mostram que a situação da democracia e das liberdades, em Moçambique, está cada vez mais degradada.

 

Ao fazer esta comunicação, em Março de 2022, passa menos de um mês depois que saiu o último Índice (2021) de Democracia do The Economist Intelligence Unit que, com toda a discussão metodológica que suscita, classifica Moçambique, pelo quarto ano consecutivo, como um regime autoritário.


Estes resultados, mesmo que metodologicamente problemáticos, permitem, com todas as reservas, constatar que o processo de liberalização política, em Moçambique, tem conhecido profundos problemas para o seu aprofundamento. Ou seja, estes resultados mostram, simplesmente, que o regime político, em Moçambique, longe de ser democrático, é mais uma democradura, na medida em as práticas e os mecanismos autoritários são o que o caracteriza, concretamente, mas, ao mesmo tempo, nos aspectos formais, são as regras democráticas que parecem vigorar, começando com a lei constitucional.

 

No Índice da Liberdade de Imprensa 2021, dos Repórteres sem Fronteiras, Moçambique também está entre os países lusófonos com piores níveis de liberdade de imprensa. Num índice que avalia 180 países, Moçambique ocupa a posição 108, superando países como Angola (103) e Guiné-Bissau (95).

 

Ler estes relatórios, a partir da Europa ou outro local fora de Moçambique, produz uma ideia senão for distante do real, ao mínimo menos concreta sobre o estado das coisas, em Moçambique, pois, para quem experimenta, no dia-à-dia, o sentido desse fechamento ou cerceamento dos espaços e liberdades democráticas, a violência e o desespero é mais aguçado, mais traumático.


É sobre isso que pretendo articular, a partir do jornalismo como discurso sobre os fenómenos actuais, pois, a partir deste, posso melhor articular entre as vivências e uma reflexão mais elaborada à volta dessas experiências múltiplas de violência e cerceamento das liberdades fundamentais.


Mas qualquer esforço cognoscitivo para compreender o estado da democracia e do jornalismo, enquanto contra-poder, requere, primeiro, uma explicação sobre a cultura política do país. O que o The Economist Intelligence Unit denomina como regime autoritário não pode ser compreendido sem uma análise da cultura política reinante que, desde o período de partido-único (1975-1990), sustenta, até hoje, o substracto do processo de construção do Estado e alimenta as percepções sobre o poder das elites que governam o país.

 

Qualquer análise que se pretenda consistente e coerente deve, imperativamente, partir do percurso histórico do país para melhor compreender os fundamentos que explicam que, 47 anos depois da proclamação da independência e 30 anos de liberalização políticas, o regime político, em Moçambique, sob controlo da Frelimo, o partido que governa o país desde 1975, nunca se abriu, genuinamente, para a democracia, fazendo desta última um mero instrumento ao serviço dos seus interesses diante dos parceiros internacionais.

 

Os libertadores tornaram-se tão venais quanto os colonizadores

 

O que aconteceu é que, numa fase particular da história recente do país, quando a União Soviética estava a cair e Moçambique a braços com uma prolongada guerra civil, a Frelimo tinha de aceitar a institucionalização da democracia, até por uma questão de sobrevivência do próprio partido-Estado.


Ao aprovar a Constituição de 1990, que instituiu formalmente o multipartidarismo, a Frelimo fez da transição democrática um dispositivo para acabar a guerra-civil com a Renamo e reconsolidar o projecto de dominação autoritária e hegemónica (Conrado, 2021), que marcou os primeiros 15 anos da proclamação da independência.

 

Não me parece exagerado afirmar que a Frelimo aceitou, formalmente, a liberalização política para caucionar a sua sobrevivência perante adversidades internas e externas que colocavam em causa a sua continuidade como organização política e, em última instância, o próprio Estado que, até hoje, é considerado, pela Frelimo, como sua própria continuidade – ou seja, para a Frelimo, não há diferença factual entre ela e o Estado.

 

Nessa equação, a Frelimo criou instituições que estruturam as chamadas democracias, que assentam, fundamentalmente, no famoso princípio da separação de poderes, executivo, legislativo e judicial, mas, logo a seguir, o partido capturou essas instituições, passando a usá-las, como o fazia durante o período de partido-único, para enfraquecer o processo de democratização e de liberalização política nacional.


Ao fazer esta comunicação, lembro-me de Ngugi wa Thiong’o, professor e romancista queniano que, num dos seus célebres romances, “Matigari” (Thiong’o, 2018), lembra-nos, da forma mais brutal e realista possível, que a verdadeira libertação de África ainda está por acontecer, pois, tal como Achille Mbembe (1988, 2000 e 2010), para ele, os libertadores tornaram-se tão venais quanto os colonizadores, por vezes piores que estes últimos.

 

De facto, o que, em muitos dos países africanos, chamamos de independências, a rigor não foram independências no sentido mais realista do termo – foi a transição de poder de um regime colonial que era mau, para um regime nacionalista igualmente mau e, em alguns casos, pior.

 

Dito de outra forma, os libertadores, tal como já o dizia Franz Fanon (2004 e 2006), que pegaram em armas para combater o colonialismo, no final, eles tomaram o lugar do colono, de modo que, hoje, mudaram os actores, mas as questões centrais dos povos africanos em geral, e dos moçambicanos, em particular, como a miséria, as desigualdades sociais, as faltas da liberdade, a míngua, o analfabetismo, o esfolamento permanente, a corrupção endémica, a violência extrema, entre outras, prevalecem.

 

O recente escândalo das dívidas ocultas, em que altos funcionários do Governo, incluindo ministros e dirigentes dos Serviços de Informação e Segurança do Estado, formaram uma associação para delinquir, contratando uma dívida pública de mais de USD 2 mil milhões, e dividindo comissões, até pagarem casas para prostitutas, na França, quando a população moçambicana vive abaixo de USD 1/dia, não podia ser mais esclarecedor sobre o tipo de políticos e de Estado que temos. Podemos falar, sem muitas reservas, de um Estado criminalizado (Bayart, 1999, 2006 e 2019) e de um Estado gerido como um potentado ao serviço de interesses privados.


Chegados aqui, a questão que se nos impõe é: como é que a cultura política autoritária moçambicana estrutura e se reflecte no sistema de media, em geral, e no jornalismo, em particular? Se concordarmos que uma das funções centrais do jornalismo, em democracias, é de desempenhar o papel de “contra-poder”, uma espécie de “cão de guarda” que preserva as instituições e defende os cidadãos perante os desvios, as prepotências e os abusos de poder
(Nhanale, 2019), então, é fácil compreender o lugar que seria do verdadeiro jornalismo, em Moçambique.


Quando me refiro ao termo “verdadeiro jornalismo” não pretendo extrapolar os limites que se impõem à qualquer um que tem o cuidado com a aplicação de tais termos. Sem nenhum rigor epistemológico, esses são os termos que me aparecem, no imediato, para distinguir o jornalismo independente das pressões do Governo, do chamado jornalismo do sector público, capturado pelo poder do dia, cujas consequências são acessíveis para quem é atento à linha editorial de todos eles. Ou, como diria Traquina (2007), um jornalismo que é propaganda ao serviço do poder instalado, quão fácil é definir a profissão num regime totalitário.

 

Guerra contra o jornalismo

 

Para ilustrar as afirmações feitas mais acima, tomo como exemplo o caso de Cabo Delgado, uma província que, desde 5 de Outubro de 2017, regista ataques armados de inspiração islâmica. Se é verdade que um grupo jihadista lançou uma guerra contra o Estado, em Cabo Delgado, também é verdade que o Governo lançou uma guerra contra o jornalismo que se interessa em escrutinar, de forma crítica, o conflito do norte do país.


Quando, antes da chegada de forças armadas estrangeiras, estava a perder todas as frentes da guerra para os jihadistas, em parte pela má governação e os escândalos de corrupção que foram tais que até escangalharam sectores nevrálgicos como a defesa e segurança, o Governo acreditou que seria possível ocultar a guerra e as derrotas em Cabo Delgado.

 

Através das Forças de Defesa e Segurança (FDS) lançou uma inglória agenda de perseguição de jornalistas, não fossem as forças armadas moçambicanas mais talhadas na repressão contra opositores, sociedade civil entre outros críticos à governação da Frelimo.

 

O caso de Amade Abubacar, o repórter da Rádio Comunitária de Macomia, detido por militares, a 5 de Janeiro de 2019, foi uma das mais célebres expressões dessa guerra contra o jornalismo. O único crime que Abubacar cometeu foi entrevistar população deslocada, que acabava de chegar à vila de Macomia, fugindo da guerra na parte costeira do distrito, onde as FDS acabavam de falhar, mais uma vez, a sua missão de garantir a segurança do país e proteger o povo contra incursões de grupos armados.


Como Amade Abubacar, tantos outros repórteres foram vítimas dessa guerra contra o jornalismo, sobretudo, o de investigação. Adriano Germano, também repórter da Rádio Comunitária de Macomia, foi preso por militares a 15 de Fevereiro de 2015. Os dois repórteres, mantidos em reclusão por mais de 100 dias, foram acusados de crimes inusitados, como instigação pública com uso de meios informáticos a favor de terroristas, crime contra organização do Estado, instigação ou provocação à desobediência colectiva e, crime contra a ordem e tranquilidade públicas.


Ao fazer esta comunicação, falta apenas um mês para se completarem dois anos depois do desaparecimento, a 7 de Abril de 2020, do repórter da Rádio Comunitária de Palma, Ibrahimo Mbaruco que, no seu último contacto, informou, através de mensagem SMS, que estava a ser cercado por militares.


Mas se o Governo achava que, com as detenções, podia ocultar a guerra, tal como tinha ocultado a dívida de mais de USD 2 mil milhões, não podia estar mais equivocado. A investigação, em jornalismo, existe, para, também, compensar esse cerco ao acesso oficial à informação. Tem sido, pois, com recurso a técnicas de investigação jornalística que tem sido possível a cobertura da guerra de Cabo Delgado, um dos lugares onde o controlo da infirmação é dos mais cerrados em Moçambique.


Quando perdeu essa guerra de “pôr algemas nas palavras”, como diria o saudoso Carlos Cardoso, o jornalista investigativo vítima do crime organizado, em Maputo, o Governo passou a atacar e a desacreditar o trabalho do jornalismo, recorrendo a diferentes meios de propaganda e intimidação.

 

No início de 2020, um dirigente público, no caso o presidente do Conselho de Administração da Empresa Nacional de Parques de Ciência e Tecnologia, Julião João Cumbane, chegou a aconselhar, na sua conta pessoal do Facebook, para que o Estado Maior General das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), o Comando Geral da Polícia da República de Moçambique (PRM) e o Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE) conjugassem “inteligência e acções enérgicas – mesmo as extra-legais! – contra as «notícias» miserabilistas que desmoralizam as Forças de Defesa e Segurança (FDS), que combatem os ataques por procuração nas regiões Norte e Centro de Moçambique”.

 

Eu próprio, que lidero, no Jornal SAVANA, a cobertura sistemática da guerra de Cabo Delgado, tenho sido uma vítima constante nesses ataques, insultos e até apelos para execução sumária, feitos por conhecidos propagandistas do Governo de Moçambique. E por quê nos chamam de terroristas? A única explicação plausível é que nós procuramos dar a conhecer o outro lado da guerra, o que não cabe nas telas e nas páginas da comunicação social do sector público. E qual é esse lado?


Que, antes da chegada das tropas estrangeiras, as FDS estavam a perder o terreno para a insurgência, que militares estavam a ser mortos, que o inimigo até arrancava viaturas, armas e fardamento militar.


Quando grupos armados assaltam e ocupam vilas distritais por cerca de 1 ano, como aconteceu com a estratégica vila da Mocímboa da Praia, uma importante placa giratória dos milionários projectos de gás, no norte de Moçambique, então, não há tanto para dizer sobre a capacidade combativa das FDS. E dizer isso não é ser antipatriota, como habitualmente somos acusados.

 

Dizemo-lo como um sincero reconhecimento do nosso falhanço, como Estado, o que é fundamental para começarmos a pensar nas reformas que devem ser empreendidas para que haja melhor resposta aos desafios que se nos apresentam como Estado. Se, nesta guerra, há antipatriotas, só podem ser aqueles que desmantelaram (e, até certo ponto, deixaram desmantelar), as Forças Armadas, ao ponto de se transformarem numa instituição completamente incapaz de defender a pátria, bem como os que tentaram convencer a sociedade moçambicana, e não só, que estávamos de vitórias em vitórias, quando, afinal, caminhávamos para a derrota final, como se provou quando os jihadistas fizeram o grande assalto ao distrito de Palma, em Março de 2021.

 

O país foi longe demais nessa intolerância ao jornalismo livre


Quando o próprio presidente da República ataca, publicamente, a imprensa independente e seus profissionais, com ordens para as FDS não aceitarem ser “denegridas deliberadamente e, passivamente, estarem a assistir sem responsabilizar esse tipo de compatriotas”, fica claro como o país foi longe demais nessa intolerância ao jornalismo livre.

 

Quando a Repórter Sem Fronteiras e o Misa Moçambique (2019) reportam “Apagão de Informação e Perseguições contra a Imprensa em Cabo Delgado”, em particular, e em Moçambique, no geral, onde “a liberdade de informar está ameaçada”, não podiam ser mais assertivos.


Concentrei-me a falar de Cabo Delgado por ser, hoje, um caso emblemático de como o cerceamento das liberdades e da democracia está no ponto mais baixo da história de Moçambique pós-1990. Porém, se retirasse o nome dessa província martirizada pela guerra e substituísse-o por Moçambique, mantinham-se, na mesma, todas as variáveis que configuram fechamento dos espaços para as liberdades de imprensa, em Moçambique.

 

Um pouco por todo o país, chegam, todos os dias, relatos tenebrosos de cerco contra um dos pilares fundamentais de uma democracia liberal. Se Thomas Jefferson, o 3º presidente dos EUA, achava que “não há democracia sem liberdade de imprensa” (Jefferson, apud Traquina, 2007), a experiência moçambicana mostra que não, pois nunca foi programa das elites da Frelimo tomar a democracia como o quadro referencial para a construção do Estado nacional. Pelo contrário, o caso moçambicano confirma que, sem liberdade, o jornalismo, ou é farsa ou é tragédia, como escrevia Traquina, em 2007.

 

Ora são repórteres que são barrados nas suas actividades, ora são ameaçados ou detidos, ora veem seus instrumentos de trabalho arrancados principalmente por agentes da Polícia, sempre a cumprirem “ordens superiores”, que nunca têm rostos.

 

Para completar as nossas descrições e análises do quão difícil é fazer jornalismo digno desse nome, em Moçambique, o sistema da Justiça, que devia actuar como um freio contra as injustiças, é, também, usado para perseguir o jornalismo, pois o poder judiciário, não sendo independente na sua acção, funciona como um instrumento ao serviço dos interesses do partido que governa Moçambique.

 

Nunca é demais recordar o inditoso caso do Canal de Moçambique, um dos semanários mais críticos do país, levado a Tribunal sob acusação de violar segredo de Estado, simplesmente porque publicou um contrato “oculto” entre o Ministério da Defesa Nacional e a Anadarko, na altura líder do projecto de exploração de gás no norte do país.

 

O contrato pressupunha que o Estado moçambicano fornecia serviços especiais de segurança para proteger a cintura de exploração de gás e, em contrapartida, a Anadarko desembolsava valores que deviam servir para a logística dessas unidades militares, incluindo salários bonificados.

 

Mas, quando o Canal demonstrou que, ao invés de beneficiar os militares no terreno, o dinheiro disponibilizado pela Anadarko ia parar nas contas bancárias do ministro da Defesa, o Ministério Público viu, nisso, uma ameaça contra a segurança do país, o que veio a confirmar que a famosa independência do poder constitucional, decorrente da norma constitucional assim da legislação avulsa que regula este poder, é apenas uma farsa.

 

Poderia ser possível continuar a enumerar tantos casos de violação de liberdade de imprensa, em Moçambique, e da impunidade de que gozam os seus perpetradores. Mas podia, também, apontar outras situações que, fora do jornalismo, confirmam esse padrão autoritário na governação do país.

 

Podemos dizer que a violação desses direitos é o modus operandi e faciendi generalizado, em Moçambique.

 

A título de exemplo, há cerca de 8 anos que, tacitamente, foi levantado o direito à manifestação contra o Governo, em Moçambique. Desde que o presidente Filipe Nyusi chegou ao poder, os únicos moçambicanos que têm direito a marchar são os que estão filiados às organizações sociais do partido Frelimo, a OJM (organização juvenil), OMM (mulheres) e ACLLN (combatentes) que, não raras vezes, vão as ruas para saudar a dita “sábia liderança”, liderança do seu presidente.

 

Quando os moçambicanos que não são do partido Frelimo pretendem exercer o seu direito de manifestar, por exemplo contra os recorrentes ataques a defensores de direitos humanos, contra a carestia da vida, só para citar casos que me veem facilmente à memória, são recebidos por homens armados, carros de guerra, gás lacrimogéneo e cães prontos para o ataque. Não sei se haveria melhor descrição de um Estado autoritário.


Sempre que se for a estudar o autoritarismo moçambicano que, longe de ser introduzido pelo actual presidente, ganhou ímpeto durante o seu consulado, nunca será inoportuno citar o bárbaro assassinato do Professor Gilles Cistac, um dos poucos académicos que honrava o seu estatuto de académico, crivado por balas, em Março de 2015, 2 meses depois da tomada de posse do presidente Nyusi.

 

Quando foi assassinado, à luz do dia, em plena capital do país, o Professor Cistac era a voz autorizada que, com argumentos baseados na ciência jurídica, argumentava a possibilidade da criação de autarquias de nível provincial, principal exigência da Renamo de Afonso Dhlakama para pôr fim ao conflito político-militar que seguiu às eleições de 2014, mais uma vez ensombradas pelo espectro da fraude.


O maior opositor à ideia de partilha de poder tinha um nome: partido Frelimo. Antes do seu assassinato a tiros, o constitucionalista franco-moçambicano foi vilipendiado nas redes sociais, até com ataques de cunho racista, que é uma marca fundamental de intolerância por que passam as sociedades com democracias fracas ou aquelas que as chamamos de democracias “consolidadas”.

 

Como ele, outros académicos e analistas críticos à governação do dia foram raptados, seviciados e depois largados nas matas, com os raptores a lhes dizerem que estavam a “falar demais”. Escusado será mencionar os repugnantes casos do Professor José Jaime Macuane e do jurista Ericino de Salema, ainda mais quando, mais tarde, o próprio presidente da República veio evocar
“problemas sociais”, sem nunca haver esclarecimento.

 

Escusado será, também, mencionar o antigo bispo da Diocese de Pemba, o brasileiro Dom Luiz Fernando Lisboa, que era a voz das vítimas da guerra de Cabo Delgado, criticando a forma como o Governo lidava com o problema. Lisboa acabaria por baixo de um veemente ataque, ainda que velado, do chefe de Estado, contra “aqueles moçambicanos que, bem protegidos, levam, de ânimo leve, o sofrimento dos que os protegem, incluindo alguns estrangeiros que, livremente, preferiram viver em Moçambique, mas que, em nome camuflado dos direitos humanos, não respeitam o sacrifício dos que mantêm erguida esta jovem pátria e garantir a sua estadia em Cabo Delgado e em Moçambique, em geral”.

 

Termino com um caso que investigámos, no Jornal SAVANA. No dia 7 de Outubro de 2019, a 8 dias para as eleições de 15 de Outubro, um esquadrão de elite da Polícia da República de Mocambique assassinou, em plena cidade de Xai-Xai, capital provincial de Gaza, no sul de Moçambique, um observador eleitoral, que se preparava para a maior observação eleitoral de sempre, numa província onde os órgãos eleitorais haviam recenseado mais de 300 mil eleitores fantasmas para beneficiar a Frelimo, ante os receios de uma derrota pela sua impopularidade associada aos escândalos de corrupção, como as dívidas ocultas, numa eleição em que, pela primeira vez na história do país, os partidos políticos iriam fazer eleger seus governadores para as províncias.

 

Ao provarmos, na investigação, que os assassinos de Anastácio Matavele tinham sido agentes da Polícia, acabamos por mostrar, ao país e ao mundo, que os esquadrões de morte, que nasceram na administração Nyusi, sequestrando, seviciando a matando os não alinhados com a sua governação, são planificados, coordenados e executados a partir de dentro do Estado, usando armamento que era suposto proteger o cidadão e cometidos por agentes que são pagos do erário público, ou seja, pelo dinheiro de todos os moçambicanos.

 

Todo este trágico contexto está longe de estar terminado, em Moçambique. Pelo contrário, a situação tende a piorar. Não sei se poderíamos estar pior.

 

* Jornalista do SAVANA e mestrando em Jornalismo e Media Digitais. Comunicação feita no Congresso sobre Jornalismo, Cidadanias e Democracias Sustentáveis nos Países de Língua Portuguesa, que teve lugar na Universidade de Coimbra, Portugal, de 2 a 4 de Março de 2022. O texto foi originalmente publicado numa coletânea sobre o evento, recentemente lançada, em Portugal.

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