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sexta-feira, 20 novembro 2020 08:09

Vinte anos após assassinato de Carlos Cardoso: “Foi um professor de Jornalismo… e de outras coisas da vida”, Gustavo Mavie

A 22 de Novembro próximo, o jornalismo moçambicano vai “parar” para celebrar a vida daquela que é a sua pedra angular: o jornalista Carlos Cardoso. Cardoso foi cobardemente assassinado a 22 de Novembro do ano 2000, quando, depois de um dia de trabalho, regressava para os seus aposentos. Este ano, o seu desaparecimento físico completa os precisos 20 anos. São 20 anos da morte de um homem de um compromisso umbilical com a verdade, justiça e integridade.

 

Carta de Moçambique inicia, hoje (segunda-feira), o ciclo de publicação de depoimentos de individualidades que, de perto, viveram e acompanharam parte do percurso e lutas de Carlos Cardoso. Dá o pontapé de saída à “maratona” um seu antigo pupilo na Agência de Informação de Moçambique (AIM), Gustavo Mavie. Pedimos a Gustavo Mavie que contasse como foi conviver e trabalhar com Carlos Cardoso na AIM, que deixou a direcção máxima em 1989. Mavie distribui atributos e virtudes ao seu antigo “chefe”, mas de uma coisa ele diz não ter dúvida: Carlos Cardoso foi para ele “um professor de jornalismo” e de “vida”, vincando que guardava os seus ensinamentos.

 

Aliás, Gustavo Mavie disse que lhe deve a vida, não fosse a sua proactividade quando esteve mais para morte que para vida em 1988, em resultado de uma doença grave que contraíra. Mavie assume-se como um seguidor fiel dos ideais de Carlos Cardoso, anotando que se bate pelos princípios que ele defendia em vida.

 

Convidamos o estimado leitor a acompanhar, nas próximas linhas, no discurso directo, os depoimentos de Gustavo Mavie, que de um simples repórter passou a delegado, em Londres, e mais tarde director da AIM, cargo que deixou de exercer em 2015, depois de ter cumprido dois mandatos.

 

Quando e em que circunstâncias conheceu Carlos Cardoso?

 

“Eu conheci Cardoso, creio, em 1978, mas para ser mais preciso durante o primeiro seminário da informação, que foi realizado por esse período e, na altura, o Ministro da Informação era Jorge Rebelo. Conheci­-o nestas circunstâncias, como um colega distante e, naquela altura, havia poucos órgãos de informação e todos tinham o mesmo dono que era o Estado e ele, na altura, trabalhava na Revista Tempo. E, claro, eu estava no começo da minha carreira nessa altura e tinha menos de um ano. Notei, na altura, que era um indivíduo muito interventivo, frontal, mas para mim era uma aprendizagem porque eu não sou necessariamente um urbano, mas um emigrante das zonas rurais e estava aprendendo a ver pessoas a fazer intervenções e mais calado do que para falar porque eu ali era uma espécie de um aluno naquele seminário. Depois disso, nunca mais tive uma convivência com ele a ponto de sentar com ele num café. Eu lia algumas coisas que ele escrevia na Revista Tempo e foi transferido para a Rádio Moçambique, o que, a meu ver, foi uma espécie de despromoção porque foi fazer cultura, quando na Revista Tempo escrevia sobre assuntos políticos. Quando estava na Tempo, o que ele escrevia não devia agradar, não diria ao Governo, mas, sim, a algumas pessoas do Governo. Aquelas pessoas que eu penso que eram muito sensíveis. Cardoso escrevia o que ele pensava. Não se censurava como faziam outros jornalistas. O que ele pensava ele escrevia”.

 

Como foi trabalhar com ele?

 

“Ele veio para AIM em 1981. Ele era um director diferente dos outros. Era um director sempre presente e não se isolava dos outros, muito menos de forma física como fechar um gabinete. Nunca teve uma secretária e ele tratava tudo pessoalmente. Quando quisesse alguma coisa na redacção, ele não telefonava. Saía do seu gabinete e ia para a redacção e falava com a pessoa que ele queria. Era na perspectiva dos sisudos uma pessoa muito liberal. Era uma pessoa muito prática e que não tinha complexos em fazer aquilo que ele achasse que devia fazer pessoalmente. Não precisava que alguém lhe servisse um chá. Não era um indivíduo que adorava o poder como tal. Quem não soubesse que ele era o director da AIM naquela altura podia nunca imaginar porque comportava-se como qualquer um de nós. Era tão igual a nós e fazia tanto quanto nós. Cardoso escrevia muito. Não era de mandar. Era muito exigente tanto é que muitas vezes quando foi ao mediaFAX era normal aparecer um texto, em que ele assinava e depois punha: recolha de material é do fulano de tal. Ele nunca se assumiu como director no sentido clássico. De chegar e dar ordens. Ele distribuía as actividades pelos colegas e ele também ficava com alguma coisa por fazer, jornalisticamente falando. Cardoso delegou muitas vezes as funções de direcção da instituição e quem estava mais empenhado nisso era o Fernando Lima. Esse é que tinha algum apetite nessa matéria e depois aos administrativos. Cardoso não era dado a isso. Ele era mesmo o director editorial. Uma das coisas que fazia era regularmente para escalpelizamos aquilo que havíamos feito e projectar outras coisas que deviam ser feitas daí em diante. Era um director de dar balizas e iluminar os menos experimentados. Muitos de nós aprendemos com ele o fervor jornalístico. Portanto, era uma espécie de director professor”.

 

Que recordações têm no fundo do baú do período em que conviveu com CC na AIM?

 

“Cardoso era um indivíduo extremamente humano. Ele cuidava dos seus colegas. Não era um indivíduo que tivesse um mínimo de egoísmo. A ambição de Cardoso era de ter as coisas a andar para que todos pudessem contribuir para o bem de Moçambique. Nunca foi um indivíduo que pautou pela acumulação individual. Se se fala de alguém que é pela maioria ou por todos, Cardoso é um deles. Como eu dizia, era um indivíduo que não se preocupava com o dirigismo. Não era um director a quem não devíamos pensar duas a três vezes para ligar ou procurar. Estava sempre disponível a qualquer hora do dia e da noite. Em 1988, tive uma doença repentina que quase me matava porque foi dar ao hospital de um dia para o outro, embora eu estivesse a sentir-me mal há uma semana ou mais. Quando já se tinha decidido que eu já não tinha cura, Cardoso não acreditou que aquilo pudesse ser verdade. Ele fez de tudo para que me levassem à África do Sul e acontece que eu tinha um passaporte que estava escrito a minha profissão (jornalista), isto no tempo do apartheid. Para um jornalista estrageiro entrar na África do Sul era quase impossível e Cardoso tentou mandar fazer um outro passaporte em que não constasse a minha posição e, naturalmente, que explicou a situação às pessoas da migração. Só que, nesse intervalo, chega à Moçambique um médico americano que por sinal era um indivíduo que tinha uma relação comigo porque eu o havia entrevistado quando era trabalhador do Hospital Central de Maputo e veio por acaso. Uma das coisas que fez foi ligar para minha casa só que, na altura, as pessoas da minha família disseram a ele que não estava em casa porque estava muito doente e no leito hospitalar. E ele ficou preocupado. Sabendo que Cardoso era o meu director, o médico ligou-lhe e ele disse-lhe que estava a tentar levar-me à África do Sul. Era meia-noite, quando o médico lhe ligou. Cardoso saiu a pé de onde vivia (na zona do Ministério da Educação) e foi ter com o médico e dali seguiram para o hospital e apanharam-me lá. Aquele médico, na mesma noite, me operou. Portanto, estou aqui a falar porque Cardoso foi proactivo em ir ter com aquele médico. Quando chegasse o fim do ano, Cardoso fazia questão de apoiar a toda a gente a partir do servente até ele próprio e o valor que se distribuía era igual para todos. Ele fez isso na Mediacoop como fazia isso quando fundou o Metical. Era um indivíduo muito justo. Muito humano. Não era perfeito. Se ele morreu é porque acreditava que o jornalismo era um instrumento de mudança. Que podia levar uma sociedade a melhorar através da exposição do mal. Do que não estivesse bem. Expor isso, incluindo coisas que lhe pudessem colocar em risco de vida”.

 

“Ele entrou em conflito com alguns dirigentes desse país. Ele dizia coisas que para essas pessoas eram indizíveis. Não vou falar de nomes porque ele não está vivo. E essas pessoas poderão vir, a público, dizer que eu estou a mentir. Mas, poderia mencionar alguns? Foi público o episódio com Jorge Rebelo que acho que foi no segundo ou terceiro seminário da informação. Foi um dos seminários extremamente violentos, em termos de linguagem. Cardoso confrontou-se verbalmente com Jorge Rebelo. Jorge Rebelo achava que Cardoso estivesse a ser extremista pela linguagem. Pela forma como abordava as questões. Ele já falava de o país estar a resvalar para um nível de corrupção intolerável. Outra coisa que levou Cardoso a confrontar-se (verbalmente) com Jorge Rebelo é porque ele achava que devíamos ter mais liberdade de imprensa mais do já tínhamos nessa altura e o Rebelo era contrário a isso. Rebelo defendeu a crítica e a autocrítica dentro das instituições e não na imprensa. E o Cardoso disse assim: isso que o senhor quer não é correcto e nem vai ser assim. Este país tem de ter uma liberdade de imprensa tão genuína quanto é nos Estados Unidos nos outros países. Aqui neste país vamos ler publicações de que o senhor nunca imagina. Vamos ter daqui como também serão importadas. Isso está a acontecer. Nesse dia houve uma discussão tal. Houve uma troca de palavras que se fossem tiros não sabia que morria primeiro ali (entre Cardoso e Rebelo). Até que algumas pessoas ali presentes se aperceberam que a discussão estava a entrar numa situação quase de falta de respeito ou que podia ir aos socos. Se fosse algo que produzisse fogo, poderia ter saído porque foi muito forte”.

 

“Cardoso foi cobrir a guerra em Angola MPLA, UNITA e os sul-africanos. Ele foi cobrir quase que in loco. Ele mandava os artigos, eu muitas vezes estava na redacção. Às vezes, eu tinha que fazer alguma edição porque eu, na altura, já era editor do nacional. Não que eu pudesse alterar nada do que fosse, mas pelo menos ver aquilo que chamávamos de gralhas e corrigir aquilo antes de ir à publicação. Eu me apercebia que os artigos que ele escrevia eram uma revelação dos segredos de guerra. Revelação da estratégia de guerra dos angolanos em relação aos sul-africanos. Eu ligo ao Cardoso e digo que estas suas notícias para mim, que estudei assuntos militares (eu fui militar), parece que estás a ir muito longe porque estás a revelar que no dia X vai chegar equipamento militar, que há uma ponte área que vem de Moscovo. Coisas de detalhe que cabiam a um Serviço de Segurança. Mas, Cardoso não aceitou que eu alterasse aquilo e isso arranjou-lhe problemas com o Governo angolano aqui. O Presidente José Eduardo dos Santos queixou-se”.

 

Houve quem lhe apontasse o dedo devido à frontalidade que lhe era característica?

 

“Talvez não possamos esticar o problema para todo o Governo como tal. Aconteceu, sim, que certas pessoas, que estivessem no Governo, na altura, não gostassem e isso é normal. Mesmo eu, que dizem que sou jornalista do regime, há quem não gosta dos meus artigos. É como uma refeição que se prepara aqui e é servida na mesa. Há-de haver quem não vai gostar e outros vão adorar. É verdade que a forma como Cardoso tratava as coisas, com aquela frontalidade, abrangência e irreverência, naturalmente que lhe criava muitos inimigos”.

 

Há quem diga que Cardoso foi combatido quando estava na AIM?

 

“Não. Cardoso demitiu-se. Depois da confrontação que lhe falei aqui (Jorge Rebelo), ele demitiu-se. Ficou em casa. Eu fui visitá-lo várias vezes. É verdade que poderia ser pela pressão que poderia sofrer. Que eu não me tivesse apercebido. Mas não. Cardoso tomou a liberdade de demitir-se porque achava que não havia condições para fazer o jornalismo que ele queria. Um jornalismo livre. Nessa confrontação que lhe falei, o discurso de Cardoso era coerentemente correcto e muitos de nós, para citar uma expressão de Castigo Langa, aplaudíamos com os pés só para que não fossemos vistos que estávamos a aplaudir. Mas o mesmo discurso foi feito por Leite Vasconcelos do princípio ao fim e Rebelo não o interrompeu. Porquê? Porque ele pôs alguns óleos. Já Cardoso chamou as coisas com os seus próprios nomes”.

 

Como é que recebe a notícia da morte de Cardoso e como é que a encarou?

 

“Sabes que isso é humano e nem todas as mortes nos atingem com a mesma intensidade. Nós em jornalismo dissemos que as notícias nos têm o impacto que tem em função da afinidade que temos com a pessoa visada. Portanto, sendo a pessoa de Cardoso que eu conheci e com quem trabalhei e que, como eu disse, contribuiu para me salvar da morte porque aquele médico não sabia onde estava internado e não podia entrar naquele hospital apesar de ter trabalhado ali. Sendo Cardoso quem facilitou tudo e se estou vivo ele contribuiu muito para que esteja aqui hoje a falar, é uma pessoa que me diz muito e muito mais pelo facto de que aquilo porque ele se batia é aquilo que eu também quero. Que este país seja um local onde as coisas são feitas como elas são. Sem roubo, sem desvio, sem corrupção, sem estes esquemas todos. Cardoso queria isso e queiras acreditar ou não, sou isso. Se eu tivesse roubado todos esses milhões que dizem eu estaria rico. Quando recebi a notícia chocou-me bastante e não daquelas pessoas que dizem da boca para fora, chocou-me bastante. Fiquei uns momentos e perdi a respiração. Como disse, recebi a notícia através de um primo e até nalgum momento pensei que fosse uma outra pessoa”.

 

“Morreu já há 20 anos, mas continua presente. Há sempre uma coisa que me lembra a ele. Foi um bom colega. Foi um bom director e foi justo connosco. Ajudou-nos a crescer profissionalmente. Foi um professor de Jornalismo, acima de tudo, e de outras coisas da vida. Porque ele falava um pouco de tudo. Era extremamente culto. Cardoso até quando fazia necessidades maiores lia”. (Ilódio Bata)

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