José Pastor, de seu nome José António Pastor Duarte Silva, nascido em Nampula, a 29 de Julho de 1954, foi poeta, contista, encenador, activista cultural, professor. Um homem dilacerado pela paixão pela vida e pela devoção aos amigos. Poeta solitário e, paradoxalmente, solidário. Encontrou na morte, aos 39 anos, uma espécie de redenção. Quase trinta anos depois do seu gesto extremo, o livro “Com a Saliva Mais ao Sul” subtraiu-o do silêncio.
A geografia da sua breve vida resume-se a Nampula, Maputo, Xai-Xai e Cuba. Assinou também como Si Silva e Broeiro Duarte São Pedro. É quase tudo do muito pouco que se sabe desta personagem quase elusiva que passou, como um cometa entre nós e cuja poesia permaneceu desconhecida ao longo de décadas. Somos pródigos no esquecimento e na desmemória, no descaso e na displicência. Assim tratamos os nossos poetas.
É em meados dos anos 80 que faz publicar poemas e contos em páginas literárias, sobretudo na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta e mítica revista “Tempo”. Posteriormente, os seus textos irão corporizar algumas antologias de poesia e de conto dedicadas à celebração da literatura moçambicana.
Numa entrevista, recolhida no livro “Fazedores da Alma”, de Marcelo Panguana e Jorge de Oliveira, dado à estampa em 1999, José Pastor, que proferiu as palavras que servem de título e mote ao volume, narra um episódio que está na origem da destruição da sua produção literária e que seria aquilo que antecederia o seu suicídio. À pergunta sobre este seu gesto extremado, o poeta responde e eu cito: “Isso aconteceu-me quando um dia decidi: vou suicidar-me. Então preparei tudo, com um ritual dramaticamente bem preconcebido. Foram destruídos poemas, contos, cartas e fotografias. Morreu uma parte do passado. Nasceu uma fogueira. A memória ganhou com tudo isso. Organizado o plano, decidi dormir pela última vez. Acontece que me levantei de manhã muito bem-disposto e ri-me da ideia do dia anterior.”
Esta entrevista não está datada, pelo que só posso intuir que ocorreu muito antes de 26 de Agosto de 1993 e era o prenúncio de que o poeta ir pôr termo à sua vida. Parecia ter uma vida contagiante, empolgada, arrebatada, culta e inteligente. Na verdade, vivia atormentado. Os seus tumultos estavam, afinal, como sintagmas nos seus escritos.
O tema do suicídio, que aparece nesta entrevista, não era inédito. Os seus amigos sabiam-no, pelo menos os mais próximos, com alguns dos quais ele partilhava as suas angústias, marcadas a cada página de “Com a Saliva Mais ao Sul” que exprime os seus tormentos e anuncia aquele epílogo trágico da sua vida.
Perguntado, na mesma entrevista, se a ideia de morte não o assustava, o poeta contrapõe: “Amo demasiado a vida, vivo-a com tanta liberdade e com tanto gozo, que temer a morte, algo absolutamente normal para um belo fim de percurso, seria, no mínimo, ridículo, e indigno para uma pessoa que amou a vida até à exaustão.”
Era um homem inquieto, as palavras brotavam-lhe das mãos, ocultavam o sol que ele cantava, com a espessa neblina que lhe ia no interior do seu ser, na sua alma, para usar um vocábulo que lhe era caro. Escrevia sobretudo poemas de amor. De um amor apolíneo quase sempre, mas num tormento dissimulado. Um amor dilacerado e dilacerante.
Era solar e lunar, impetuoso ou recolhido, expressivo e resguardado, assombrado e assombroso. Gostava dos seus amigos. Queria-os na sua solidão habitada. Sobretudo na Matola, à sombra das suas árvores. Amava os livros, falava abundantemente de escritores, comerciava leituras. Cuba era a sua segunda pátria. Era fervorosamente cubano. Fidel e a revolução tinham nele um implacável defensor.
Publicou muito pouco e o pouco que deu a conhecer eram textos brilhantes. O poema que escreveu sobre o massacre em Maluana é de uma beleza virulenta, é pungente e um dos marcos da nossa lírica. “A pessoa de Josefane ficou no massacre de Maluane, mas seu corpo veio a Maputo para pôr velas.” Este brutal, violento e belo poema não está no livro. Como não estão uma data de poemas que reclamam um resgate.
O livro “Com a Saliva Mais ao Sul” está dividido em duas partes. A primeira, intitulada “Respirar do Fogo”, ocupa quase dois terços da obra, recolhe poemas de amor, de um amor arrebatado, incessantemente carnal, experiência de liberdade e gozo, vocábulos que ele usa na entrevista acima citada e no registo dessa fruição quase sempre desesperada, nessa solidão imperecível, nessa busca do ser amado, nesse encontro e nessa perda, nesse júbilo e nesse esmorecimento, nessa alegria e nessa consternação, nessa euforia e nesse desalento, muitas vezes, quase sempre, em belos versos, pungentes versos, melancólicos versos.
“Quando no chão da nossa
intimidade sulcamos a terra.”
Começa assim o livro que fala desse “Outono que desconhecemos” e “vive de amores possíveis”, mas “em a sua própria mitologia / a sua lógica da carne, do sangue, / do sexo e da lágrima”.
Poesia, magia, solidão, tormento: “Hoje faço-me o favor / de fazer um poema atormentado”, diz o poeta.
Arrebatamento, nostalgia: “Nunca mais foste tu.” Tristeza, sempre a tristeza: “Hoje o dia está tão triste, / tão triste como têm sido / os últimos dias”. Ou: “Há dias em que a tristeza me invade sem pedir licença.” Nessa poesia, diria o autor, “nocturna e esbatida”, onde se acrescenta: “sou triste porque lavro a minha dor”. Poeta solitário sempre: “Estou só e em casa.” Ou por outra: “Desperto sempre de madrugada / e a tristeza volta com / seu veneno.”
Apesar do título nos remeter para o “fogo”, esta é uma poesia lunar e não solar. É uma poesia onde se canta o abandono e a solidão, o inverno, o nevoeiro e o dilúvio, a morte, sempre a morte a rondar os versos e o poeta: “Quero morrer deitado / porque sempre vivi de pé.”
Aqui está o testamento e o testemunho do “náufrago delirando na jangada” e sempre o canto do “amor possível”: “No teu corpo negro / lavrei o suor, / as minhas mãos rociaram /um perfume / natural e afrodisíaco / e bebi da intemporalidade do teu sangue /africano por excelência.”
Esse amor, cripticamente másculo, virilmente arrebatado, visceral e cantado em versos como estes: “E de repente, os músculos ficaram / tensos, as veias em relevo, os olhos / em teias de / lagrimas, e teu áspero /cabelo passou pelos meus ombros.”
Ou estes versos: “de guerreiro à conquista / do meu corpo”, “Teu corpo tem a força / telúrica da Terra”, “Até quando o teu regresso / ao meu corpo selvagem”, “Roçar do teu corpo possante”, “Beijos, gemidos, e todo o suor, / órgãos genitais entrechocando-se.”
A perda está sempre presente, a ausência do ser amado, a saudade e a nostalgia, a melancolia. Mas também o desprendimento desse “amor possível” (di-lo obsessivamente) no qual o poeta exalta o facto de “nunca teres deixado / que o tédio fosse a principal neblina / nas nossas vidas”.
É dessa “respiração do fogo” do “Universo numa explosão/ de átomos dissimulados”, desses “corpos viris” e dessa “morte que agora me chama”: “Vou embora, amor. Só tenho / pena de ti. As asas da morte / não são tão medonhas como se dizem.”
Há sinais muitos claros dessa morte anunciada. “Em breve serei a simples / cinza de um sonho (…) Largo a vida, tudo o que fiz, / o fardo da dor e da solidão.”
Muitos destes versos são a cartografia dessa busca do silêncio e da morte, desse desespero e do seu inevitável epílogo: “Falta pouco para a grande decisão, / para que haja uma explosão de noites / dentro de mim, para que sangrem as flores / que me fazem respirar, para que a seivaque me alimenta seja a da árvore abatida.”
Estes versos são de uma violenta beleza. São pungentes e belos, como é aliás a grande arte. E mesmo no fim desta primeira parte, ou primeiro livro, anoto ainda estes versos: “Não me esqueço que sou apenas / uma tintilação transparente / da grandiosidade da criação, / entre os benefícios e os custos / não reclamo glórias e alvíssaras.”
A segunda parte – “Com a Saliva Mais ao Sul” - é um longo e fragmentado poema e não se exonera do seu registo lírico, mas aqui está o poeta mais onírico. Provavelmente texto mais ontológico, mais ensimesmado, mais absorto em si, mais reflexivo, mais indagador e mais perturbado e perturbante, mais sombrio e desesperado. Mas sempre o amor. O amor desesperado. Sempre a morte. A morte inexpugnável. “Se é um erro exteriorizar-se / a dor profunda que se sente, / é um ferro que nos fere / quando assumimos o brutal silêncio.”
Para além do combate ao silêncio, a obsessão da morte ronda o poema: “Se sofro é por uma cama,
um sono descansado, / até que uma campa merecida / se rodeie de ciprestes.” Poema ominoso, poesia ominosa. Atingida pela “rugosidade das pedras” ou pela “fragilidade da vida”, fissurada por essa “fantástica melancolia”: “Porque sou um rio / decidido a lançar-se ao oceano / na procura de formas de suicídio / mais marítimas”.
Escreve este poeta sombrio, taciturno, mergulhado na obscuridade, que procura a “simbiose de Marte e morte” e que reconhece: “Da minha actividade vulcânica / nasce um mar sombrio / sequioso de sequoias.”
Nessa “procura do Norte no breu”, recorrente este discurso do suicídio: “De gládio na mão, / não / esquecerei um gladíolo de bolso / para o redobro da força /no possível suicídio.” E logo a seguir o poeta diz: “Conheço a dor da inquietação irremediável.” Os versos embora taciturnos são pungentes: “E quero um enérgico palpitar nas mãos e nos pulsos, / lançar naus ao sangue tropical no Inverno /e ainda: o fragor dos dedos acenando / o terno adeus final, /o mais compreendido entre os humanos.”
Poesia “a coberto da névoa densa”, como escreve o poeta. Poemas de amor e de desespero, como disse e repito. Nos quais cabem ainda estes versos que parecem um apelo: “e nos teus fortes braços sinto-me seguro.” No entanto, acrescentará a seguir: “Amor, na Terra somos amantes a abater!”
Parece a expressão de uma renúncia, de uma resignação, de uma cedência. Por isso mesmo diz adiante: “Não nos desviemos definitivamente/ das rotas do sábio silêncio.” Este poema, este longo e sensual poema, é também por isso um poema desse amor visceral, impossível direi eu, inscrito num mapa de melancolias: “Teu corpo dócil à nudez / no estio calmoso do trabalho da erecção.”
Versos atravessados por esse amor viril, másculo, vigoroso: “Dá-me do teu beijo fatigado, /e dos destroços da espuma /provocados pela ancoragem.”
Poesia que não recusa o desalento, a angústia, a descrença, o desânimo. Longo poema atormentado, que fala de uma prostração, que não esconde a derrota, que ancora na desesperança, no esmorecimento e na tristeza. Essa mágoa e esse padecimento estão assombrosamente inscritos nos últimos versos:
“ Quero atravessar o deserto,
o desastre.”
Proclama o poeta no seu desconsolo final. À beira do seu infortúnio, perante uma dor irremissível. “ Negrejo, e esta é a remendagem da alma. / Vejo-me espelhado num múrmuro / abismo ignorado.”
Assim termina o livro, tão belo quanto dilacerado, tão profundamente consternado, tão atravessado pelo desconsolo, pela dor, pela angústia, tão condoído e, provavelmente, sem indulgência, tal foi o destino do poeta que seguiu os sinais aqui cartografados e se matou, talvez buscando na morte essa redenção, essa expiação, essa absolvição.
Este é um livro tremendo de um poeta espantoso, de uma alma formidável, de um homem surpreendentemente excepcional, com uma ânsia de viver esplêndida, ainda que isso pareça uma contradição na sua breve e portentosa vida.
Este belo e dolorido título “Com a Saliva Mais ao Sul”, devolve-nos um admirável poeta, assombrado e assombroso, no seu desencanto e no seu desespero, no seu júbilo pelo amor visceral que viveu, na sua atracção pelo abismo e pela morte, nesta cartografia de um suicídio anunciado em sinais premonitórios, neste rosto elusivo e arisco por vezes, desenhado nestes versos com a subtileza e a elegância que fazem dele uma voz exemplar na literatura moçambicana e que aqui se cumpre celebrar, nos 70 anos do seu nascimento, depois de décadas em que esteve proscrito no silêncio e no esquecimento.
Engoliram luas as crianças de Changara.
Os olhos delas são pássaros tristes sem voo
que no desespero da fome acumulada
comem estrelas como se fossem grãos de milho.
Quando as sementes secaram nos campos
e o sangue secou nas veias dos rios
e a seiva secou nas veias das plantas
e o sol secou os celeiros da aldeia,
serpentes famintas silvam em volta
do peito cindido. Uma toupeira chora
ao frémito dos embondeiros. Grave,
arde sobre a erva amarga a dor:
Das luas engolidas pelas crianças
quantas tardará a ecoar nos jornais?
(“Changara”, Julius Kazembe)
Julius Kazembe é, indubitavelmente, um dos mais importantes poetas do pós-independência, da geração que esplende nos anos 80, menestrel de grande quilate, com dicção e timbre próprios. A sua produção, no entanto, é escassíssima, avara e está dispersa por jornais, coligida em duas ou três antologias. É, também, por abulia própria ou incúria nossa, um dos menos conhecidos e celebrados, entre as presunçosas glórias domésticas e o fogo fátuo em que estas (ufanas vozes) se consomem exaustivamente.
As suas efemérides literárias resumem-se a publicações de um punhado de poemas na página literária do “Diário de Moçambique”, “Diálogo”, sob o magistério de Heliodoro Baptista, ou na “Gazeta de Artes e Letras” da vetusta revista “Tempo”, sob a batuta de Luís Carlos Patraquim. Tanto um como outro são nomes decisivos na sua biografia literária.
Na sequência de uma quezília familiar, sai de casa muito cedo e é acolhido pelo poeta Heliodoro Baptista, que não só o acoita, como o industria literariamente. Baptista escolhe uma centena de títulos de obras-primas universais, sobretudo no domínio da ficção narrativa (romance) e impõe-lhe o repto da leitura. Acresce que será aluno de Lídia Jorge, que se revelará, nos anos 80, como uma prodigiosa escritora, autora de romances, contos e poesia, hoje consagradíssima. O mote estava dado.
Por indicação de Heliodoro, acompanha o contista Carneiro Gonçalves e é companheiro na viagem que resultou num trágico epílogo a 20 de Janeiro de 1974. O autor de “Contos e Lendas” deveria seguir, depois da capital moçambicana, para Lisboa e ali integrar a redação do “Expresso”. Ao jovem poeta, à beira dos 20 anos, o desconsolo de uma frustrada tentativa de se juntar à Frente de Libertação.
No título emblemático que foi “A Tribuna”, então dirigido pelo poeta Rui Knopfli, irá integrar a sua redacção, na companhia de Mia Couto, Luís Carlos Patraquim e Ricardo Santos. Aliás, Couto, Patraquim e Kazembe irão praticar os primeiros tentames da crónica literária, sobre o quotidiano, experiência que se verá consagrada, nos anos ulteriores, por outras caligrafias que vão estabelecer o género entre nós. Posteriormente, integrará o grupo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Estamos já imersos na revolução e cada um deles experimenta o entusiasmo, os arroubos, as demandas, as questiúnculas, as contradições, a mofina daqueles tempos.
A Beira, a sua Beira natal, ficara para trás. Terá, depois do jornalismo, uma passagem pelo Ministério do Comércio Interno, viverá de traduções nos ominosos anos 80 e trabalhará, como funcionário local, para o FNUAP. Uma importante passagem pelo Zimbabwe, outra pelos Estados Unidos, onde se vai doutorar em Sociologia e, depois, o estabelecimento em Pretória, onde leccionará na Universidade, também subscrevem as etapas da sua vida.
A sua pátria literária, no entanto, será sempre a Beira. Bebera do mesmo fino de Heliodoro Baptista, que tendo nascido em Gonhane, é um poeta beirense. Ou dos nomes mais insignes da nossa poesia, ali nascidos, como Mia Couto, Filimone Meigos, Carlos Cardoso, Miguel César, Simeão Cachamba, Bahassan Adamogy, Adelino Timóteo, ou António Pinto de Abreu (este, tendo visto a luz em Chimoio é, indubitavelmente, das mesmas águas do Chiveve). Aqui está a sua linhagem. Simeão Cachamba, pouco antes de morrer, no prefácio e na chancela do livro “Mussodjy”, de Bahassan Adamogy, acena à Geração Diálogo, em homenagem a estes nomes – acrescente-se o nome de Elton Rebello, nascido em Vilanculos, mas criado literariamente nas mesmas águas – que redigem páginas importantes nos armoriais da nossa literatura. Ora, todos eles, à excepção de Kazembe, tiveram a sua obra redimida em livro.
Quando, Fátima Mendonça e eu, organizámos a “Antologia da Nova Poesia Moçambicana”, demarcando-a a partir de 1975 e escrutinando a partir daí a produção que ocorrera neste espaço geográfico, político e cultural chamado Moçambique, num tempo em que era ainda escassa a publicação em livro de muitos dos autores antologiados, socorremo-nos do que estava na imprensa literária e de originais que muitos dos poetas acederam confiar-nos.
De Julius Kazembe escolhemos sete poemas todos eles publicados na então “Gazeta de Artes e Letras”, entre Setembro de 1984 e Outubro de 1988, designadamente: "O Girassol”, que começa com um verso belíssimo: “O brilho inteiro das galáxias”, que poderia ser o axioma do seu labor poético; “Changara”, outro poema espantoso, aliás encima este texto: “Engoliram a lua as crianças de Changara”; “A Teia”, que não desmentia o estro do poeta: “Dormimos versos cercados de cal”; “O Espelho dos Magos”, dedicado a Heliodoro Baptista; “A Musa Prostituída” (dedicado a Luís Carlos Patraquim); “Eros” e “Adiemos os brindes para mais tarde”. Não deveria haver muito mais no seu bornal. Muitos destes poemas tinham sido publicados na “Diálogo” também.
Segue-se-lhe, então, um longo silêncio. Para além do caso de Brian Tio Ninguas, pseudónimo do jornalista Baltazar Maninguane, que morreu, aos 25 anos, em 1987, poeta que permanece inédito em livro, Julius Kazembe volta a ser o único poeta que não terá a sua poesia chancelada em livro. Refiro-me, claro está, aos que se revelaram no pós-independência e que constavam da nossa antologia. Todos os outros, em vida ou postumamente, tiveram as suas obras impressas em livro.
Por apatia do poeta ou omissão nossa, a verdade é que o seu nome se tornou invisível nos certames onde se apregoam, afanosamente, pressurosos nomes e se consagram glórias precipitadas. No entanto, estamos diante de um dos mais importantes poetas revelados no pós-independência, apesar da sua avara produção. Kazembe, não tenho dúvidas, pertence à estirpe dos eleitos. É daqueles poetas raros, cujo estro é capaz de imagens e metáforas surpreendentemente belas e poderosas. O poema “Changara”, que cito acima na íntegra, é caso flagrante. Mas toda a sua escassa poesia é assim: depurada, decantada, burilada. Há ali um “labor limae” (trabalho árduo, paciência, disciplina), há ali escrutínio e oficina, há ali uma cadência e uma musicalidade. Quando o ouvimos dizer, o que Kazembe faz primorosamente, percebemos o seu trabalho elaborado com a palavra e a sua intuição melódica. Ele é um artífice da palavra. Um perfeccionista.
A poesia, a verdadeira poesia, é isso: alegoria, imagem, tropo. Metáfora. Um grande poeta é aquele que é capaz dessas imagens poderosas e surpreendentes: “brilho inteiro das galáxias”, cito-o de novo, ou, no mesmo poema, capaz destes versos: “um barco é uma faca que rasga / essas dunas cheias de sortilégios”. Ou quando diz ainda: “a espantosa liquidez / das suas coxas / somos peregrinos / submissos” no poema “A Musa Prostituída”. Ou, no mesmo poema, quando escreve este verso: “com o seu mijo ictérico”. Isto é de um eleito.
Poeta capaz destes versos sumptuosos: “quisera ter as mãos que tem a água / para quando vertido sobre ti / te permear até ao último favo / contigo trançar um cesto de vime”. Isto é de um grande poeta. O mesmo que lhe adivinha “o tropel antigo dos fuzis”. Aliás, os fuzis que espantam “os fulvos pássaros da nossa infância” (outro verso lapidar) atravessam, subliminarmente, toda poesia de Julius Kazembe. Lembram aquela “Alegoria” de Heliodoro Baptista: “Em Inhaminga, meu amor, / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Isto é brutal, isto belíssimo, isto é assombroso.
Julius Kazembe condói-se não só com as crianças de Changara. É capaz de nos alertar do medo que trespassa o “território de algozes / sitiado por veraneantes / tubarões sem pergaminhos / a tecerem contas de piolhos / de cócoras sob os autoclismos”. Poeta socialmente atento: “Venho de um continente / de transmigrados de calamidade / em calamidade / com meninos que morrem / desapercebidamente / no dorso das suas mães / a caminho dos centros / de emergência da cruz vermelha”. (“O Espelho dos Magos”).
Num belo e pungente hino à Beira, poema justamente assim intitulado, que, depois de muitos anos de silêncio, houve por bem publicar, aqui há meses, Julius Kazembe volta a ser acutilante: “E a chuva de cada Idai / só reflutua valas e / fantasmas de outrora”. Nestes versos fissurados ou injuriados, o poeta interpela-se e interpela-nos com uma virulência lexical: “Vagalumes vagabundos / assombram a noite / no matagal da Manga, donos / escarnados ao relento / sem lápides nem epitáfios. / Ainda os há por remir?”. O poema termina com estes versos: “O farol do Macúti plissa / o mar e os ventos da noite, / talvez lampeje em surdina / sinais dos náufragos da terra / onde jazem as nossas placentas”. Isto é de uma beleza aterradora e de uma violência imagética e poética. É, no fundo, o glossário dos nossos naufrágios ou o dicionário das nossas ruínas, das nossas quedas e dos nossos soçobros.
O poeta Julius Kazembe persegue, na sua escassa e belíssima poesia, estes “sinais dos náufragos da terra”. Tenho notícia da sua escrita recente e verifico para além do seu alto quilate, do seu gabarito, do seu jaez e da sua perfeição, da sua voz grave, profunda, inquieta e inquietante, que percute ainda encrespada ou “desdobrando-se em arco-íris / para a morte sobrevivida / entre os gomos do canto”. Mesmo quando, “sem darmos por ela, o fermento / destas lágrimas de terebentina / entrança já tatuagens de alento / para uma teia mais pura e cristalina” (“A teia”, esse lancinante aceno ao irmão Oswaldo). O poeta continua obstinadamente avaro, escasso, valioso.
Julius Kazembe é, a seu modo e no seu tempo, um grande poeta, de epifanias e de cintilações, de lampejos e de sopros, encarnação rara de um estro igualmente raro, dono de uma profunda e única voz, por vezes sussurrada ou até ciciada, com uma dicção própria e equipada de poderosas imagens, com um timbre seu, onde a busca das palavras se acasala à música, ao som e à melodia, numa admirável melopeia, o que faz dele um dos maiores poetas moçambicanos da minha geração (à falta de melhor termo) e um dos menos conhecidos, celebrados ou festejados. Hoje, Júlio Fernando de Sousa Júnior, de seu nome civil, nascido na Beira, Sofala, a 26 de Julho de 1954, faz 70 anos e eu aqui, na minha persistente altercação contra o descaso e a desmemória, contra a amnésia e o esquecimento, faço-lhe esta saudação de amigo, admirador e seu mais novo.
O Ministro dos Transportes e Comunicações, Mateus Magala, desempenhou, entre 2015 e 2018, as funções de Presidente do Conselho de Administração da empresa Electricidade de Moçambique (EDM).
A missão de Magala na EDM era hercúlea, pesadissima: ele devia estancar uma prolongada hemorragia financeira de que padecia a empresa pública, pois tinha as suas veias rebentadas por incríveis teias de corrupção e de gestão empresarial ruinosa.
A existencia de “empresas” de consultoria dentro da empresa, que “ganhavam” concursos internos, era uma calamidade pública antiga e bem investigada e denunciada pelo Centro de Integridade Pública (CIP). E as contas da empresa, junto da Hidroelectrica de Cahora Bassa (HCB) e de outros fornecedores de serviços eram insustentáveis. E Magala devia arrumar a casa!
Chegou com ideias. Fez contactos e alianças estratégicas. Formulou seus planos de acção e os pôs em marcha. Mas rapidamente sentiu-se cercado por todos os lados: um cepticismo geral elevava-se à sua volta. “Você não vai conseguir nada aqui! Isto está de tal modo viciado... que não há por onde pegar!”, diziam-lhe muitas vozes. Incluindo vozes de quem ele esperava encorajamento.
Em parelelo, surgiu alguma imprensa tambem discrente. Noticias foram aparecendo aqui e ali, incluindo com tom calunioso, alegando decisoes “desumanas” do novo gestor, que estaria a “humilhar” “velhos quadros experimentados” da empresa, que a mantiveram em pé, desafiando actos violentos de sabotagem da Renamo, durante a guerra dos 16 anos. “Onde ele estava durante esses anos todos em que sofremos?”- diziam, questinando a sua legitimidade para introduzir reformas estruturais na empresa.
Nessa mesma senda, um dia um jornal divulga uma noticia em que afirma que Magala ter-se-á atribuido a si próprio um salário na ordem de um milhão de meticais! A noticia é baseada em fontes oficiais, porém com números mal interpretados pelo jornalista (o que é aliás muito frequente na nossa media).
Para dissipar este e outros equivocos, Magala convida a imprensa para um “briefing”, durante o qual ele não só esclarece a folha salarial dos gestores seniores da empresa, onde ele está incluso, como tambem partilha informação em primeira mão, sobre os primeiros resultados das reformas na EDM. Esperou, o gestor, que no dia seguinte a imprensa se referisse a informação partilhada na véspera: em vão!
Passaram-se dias e praticamente nenhum orgão de informação divulgou as informações de progresso nas reformas profundas em curso na EDM, nem mesmo aquele jornal corrigiu a informação errada sobre o salario “milionario” de Mateus Magala: ele começou a questionar-se profundamente sobre o sentido destes eventos. Custava-lhe entender a sociedade moçambicana, que se recusava a segui-lo nos progressos que ia alcancando na reforma da EDM – incluindo a própria imprensa.
Aí um dia ele convida-me para um café no seu escritorio, em que me pergunta: “Afinal por que as pessooas, incluindo a imprensa, são tão ..negativas, pessimistas e até cínicas?”. Eu respondi imediatamente assim:
“As pessoas já não acreditam em nada! Porque já receberam demasiada mentira oficial e por tempo demasiado longo. As pessoas sentem-se defraudadas, enganadas! A sociedade não acredita nas instituições públicas. Ninguém vai acreditar que o Dr. Magala está mudar a EDM...ninguém! Tudo o que disser que tenha feito vai ser considerado como mera propaganda do regime...”.
Aí ele perguntou: “então o que achas que deve ser feito, para a sociedade voltar a acreditar nas instituições públicas?” Aí eu respirei fundo, e disse-lhe:
“Será necessario refundar este Estado! Recomeçar...E isso implica visão, determinação e muita coragem. Porque o Estado foi , desde há demasiado tempo, tomado por uma praga de matequenha, aquela pulga que penetra por debaixo da unha do pé e cresce e se reproduz lá dentro. A sua extracção implica uma pequena cirurgia...que faz sangrar!”
Eu diria exactamente o mesmo ao candidato da FRELIMO, Daniel Chapo: a larga maioria dos moçambicanos está profundamente decepcionada com a FRELIMO: já o disseram, e de forma eloquente, nas urnas! E os motivos para isso são, há várias décadas, bem conhecidos: políticas de desenvolvimento falhadas.
Essa larga maioria já não “ouve” a FRELIMO! Mesmo os que vão aos seus comícios. Essa larga maioria apenas vai acreditar no seu discurso numa única condição: na de assumir, de forma inequivoca, um compromisso histórico: o de, ganhando as eleições, reformar profundamente o Estado; para devolver-lhe a dignidade perdida. O que passa por dele extrair a matequenha que o tomou de assalto, sobretudo ao longo destes ultimos 20 anos! Mas consciente de que isso vai-lhe criar muitos inimigos e detractores, saindo de todos os lados: não se tira matequenha sem rasgar a pele!
“O diálogo está partido no sentido de que existem muitos interesses, até interesses de pessoas a se sobreporem sobre as associações e as câmaras. Inspira-me à reflexão sobre o diálogo público-privado, no sector empresarial, o facto de estarmos, simultaneamente, no fim do mandato do governo. Teremos eleições a 09 de Outubro de 2024, ao mesmo tempo que a actual liderança da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique também está em fim de mandato. Assim sendo, é importante que as duas lideranças que dialogam neste âmbito tenham mentes abertas para que o DPP tenha mais sucesso.
O Presidente da República, que é o Chefe do Governo e nomeia o governo, deve evitar nomear pessoas que irão criar intriga no lugar de encontrar soluções para o desenvolvimento económico nacional. A própria liderança da CTA deve ter em consideração que os associados devem respeitar as suas obrigações e exigirem os seus direitos”.
AB
“Com origem na palavra latina dialŏgus que, por sua vez, provém de um conceito grego, um diálogo é uma conversa entre duas ou mais pessoas, que manifestam as suas ideias ou afectos de forma alternativa. Neste sentido, um diálogo é também uma discussão ou uma troca de impressões com vista a chegar a um entendimento. Ainda que o diálogo se inicie por meio de diferentes pontos de vista, sendo isso crucial para que o mesmo exista, um bom diálogo é desenvolvido com base num ambiente de reciprocidade e conscientização. Os primeiros diálogos que se têm informações são do ano de 1433 no Oriente Médio e Ásia, com disputas na civilização suméria que foram preservadas em cópias”.
In Conceito do Diálogo
Hoje, pretendo reflectir sobre o Diálogo em Moçambique, usando a minha experiência do diálogo no sector empresarial e, como diz o título desta reflexão, o “Diálogo Moçambicano está partido”. Efectivamente, o nosso diálogo na busca de soluções próprias do sector está demasiado partido e são as seguintes partes resultantes dessa cisão:
1) Equipa dos Governantes;
2) Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique;
3) O diálogo propriamente dito (formal) entre a CTA e o Governo de Moçambique.
1 – Equipe dos Governantes: o que irei abordar aqui representa o meu pensamento, a minha opinião pessoal. Não vincula qualquer organização ou grupo de organizações, pelo que deve ser considerado como pensamento pessoal.
Muitos membros da equipa governamental, que são chamados ao diálogo, usam o seu espaço ou posição para instigar a divisão entre a parte com quem dialogam. Muitas vezes, quando o sector privado apresenta uma preocupação, que pode ser da maioria, no lugar de se debater o assunto colocado, procuram ver como dividir o grupo, para tirar proveito, através do enfraquecimento desse mesmo grupo. Só que esta fórmula tem efeito temporário, porque, no lugar de encontrar soluções, resulta em medidas paliativas e, a breve trecho, volta-se à estaca zero.
Mais, esse grupo da equipa de governantes procura, entre os Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique, aqueles membros que são suscetíveis de serem facilmente corrompidos para a agenda de perturbação do próprio diálogo. Esses associados passam a ter privilégio de serem ouvidos em primeiro lugar e deixa-se de fora aqueles a quem se deve procurar para o diálogo. Por outras palavras, a equipa de governo, muitas vezes, no processo de diálogo, não procura soluções que se pretende, mas baralhar para tirar proveito das diferentes sensibilidades da sua contraparte.
2 – Associados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique: infelizmente, alguns membros da Confederação das Associações Económicas de Moçambique (suas lideranças), por vezes, parece não conhecerem o seu lugar em relação à própria Confederação de que são membros com todos os direitos e legitimidade. Muitas vezes, nota-se a tentativa de “competição” da organização Mãe - “CTA” e seus Associados. Disto resulta que, muitas vezes, a equipa do governo faz uso disso para tirar melhor proveito da situação. Para agravar, não existem instrumentos de gestão que possam permitir a tomada da decisão dos dirigentes da Associação Mãe, no caso a CTA.
Alguns Associados da CTA são usados, pelos parceiros do governo, para semearem discórdia interna entre os privados, quer do ponto de vista individual quer do ponto de vista colectivo. O exemplo dessas guerrinhas é que se tem visto, muitas vezes, Associações ou Câmaras de Comércio a assinarem Memorandos de Entendimento com diversas instituições públicas sobre matérias que, muitas vezes, não fazem parte do seu escopo de actividade. Pior do que isso, se formos a analisar, passado um ou dois anos, podemos concluir que esse memorando não passou de show, os membros dessas Associações nem conhecem e não teve “pernas” para andar.
Sem se aperceberem ou sem medirem o impacto desses comportamentos, no fim do dia é o próprio sector privado que sai prejudicado, é importante que esses líderes Associativos devem compreender que as equipas do Governo irão sempre mudar, mas os problemas do sector privado irão prevalecer, muitas vezes, com enormes prejuízos para o nosso sector privado. Por isso mesmo, na minha opinião, os líderes Associativos devem tomar consciência disso, caso contrário, esses dirigentes deveriam ser expulsos nos grupos associativos por se mostrarem tóxicos para os interesses do sector.
3 – Diálogo propriamente dito (formal) entre a CTA e o Governo: Desde já, é preciso reconhecer que o Diálogo Público Privado, formalmente, liderado pela CTA e o Governo, constitui um veículo importantíssimo. Do ponto de vista formal, é quase perfeito, por isso, não há como atacá-lo, porém, peca pelo seguinte o seguinte:
a) O Diálogo Público Privado em Moçambique não está formalizado, apesar de estar devidamente estruturado e a decorrer com regularidade, o que se pode considerar louvável. A questão seria o que leva o Governo de Moçambique a não formalizar este diálogo! O sector privado está refém da vontade das contrapartes. Neste diálogo, os pelouros da CTA não são devidamente tratados pela sua contraparte, as coisas mudam de figura, sempre que se aproxima o CEMAN, o encontro com o Primeiro-ministro e nas proximidades do CASP com o Chefe do Estado.
b) Na relação entre o sector privado e o governo, no processo de auscultação, não existem prazos de reação para a emissão de parecer sobre uma determinada Lei, que vai ao Conselho de Ministros ou à Assembleia da República. Acontece que, muitas vezes, um certo Ministério manda a proposta de Lei à CTA e exige uma opinião em 72 horas. Nota-se disto que a instituição, simplesmente, pretende formalizar que foi ouvido o sector privado.
c) A Comissão Consultiva de Trabalho é um espaço de diálogo constituído à base de um Decreto. No entanto, de ano para ano ou de Governo para Governo, esta instituição tem vindo a perder relevância. O Decreto determina quem são os seus membros, define claramente a forma de funcionamento entre outros, mas muitos governantes não participam, infelizmente.
Face ao exposto, na minha opinião, é urgente a mudança de mentalidade com relação ao diálogo, de forma a trazer mudanças efectivas naquilo que se pretende que mude, porque o diálogo visa a mudança de algo ou a introdução de novas formas de fazer as coisas. As Associações, que se filiam à CTA, devem ter noção dos direitos e obrigações que tem em relação à própria Confederação e nunca ser o veículo para criar divisão no seio da Associação Mãe.
Há um aspecto não revelado no grupo das três partes do diálogo, que são os antigos dirigentes estatais que se tornam privados. Esses homens ou mulheres entram no associativismo, mas muitas vezes não no sentido de constituírem uma mais-valia para os privados, mas para tirarem proveito da sua posição anterior e influenciar para o sucesso das suas pretensões. Esses senhores e senhoras também são tóxicos no diálogo público privado.
É verdade que o nosso sector privado é incipiente, muitas vezes, os membros do sector público, por várias razões, como reforma, desvinculação ou outro, passam para engrossar o sector privado, o que em si é bom, mas quando essas pessoas não servem para ajudar na advocacia a favor do sector, não vale a pena.
Adelino Buque
Há um provérbio transversal a muitas culturas que reza que não há um mal que dure para todo o sempre e, mutatis mutandi, não há um bem que perdure igualmente toda a eternidade. Ou seja, nenhum ser humano vive em sofrimento ou em felicidade eternamente. Se está em sofrimento, saiba que um dia verá o sol da felicidade; e se está em manto de felicidade, conte que um dia tal vai acabar. Dure o tempo que durar uma ou a outra coisa. Um provérbio que nos ajuda bastante a sermos moderados para com as nossas actuações, práticas e vivências! E a não acreditarmos que nada… já agora, o poder (que nalgum momento nos foi outorgado por alguém) é eterno!
O nosso partido, o partido dos moçambicanos, o governamental, viveu, sobretudo nos momentos que antecederam a reunião extraordinária que elegeu Daniel Chapo seu candidato às eleições presidenciais de 9 de Outubro próximo, um êxtase sem paralelo nos últimos quinze, dez anos, melhor: sem memória!. Um momento cuja “gota que fez transbordar o oceano” foi despojada pelo veterano Óscar Monteiro, quando, justamente na abertura da sessǎo extraordinária da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACLLIN), quebrou o gelo, atacando impetuoso e impiedosamente o sumptuoso “elefante” que inundava o horizonte de todos os militantes, mas que, paradoxa e incompreensivelmente, estava completamente invisível aos olhos de todos eles: o silêncio que emperrava na sexagenária formação política há cerca de dez anos, mas sobretudo nos últimos cinco. Ninguém via e discernia a desfiguração e deliberada desconfiguração dos fundacionais valores, princípios e práticas sacrossantos que nortearam a determinada decisão de abraçar a luta armada de libertação nacional.
É que, sabe-se agora, depois da capitulação do então êsss gêee, a gestão do party não era aquela que todos conheceram, praticavam e viveram ao longo dos imensos tempos idos. Uma gestão que, de alguma forma, permitia a articulação do que habitasse as almas ou memórias dos membros; que livremente aceitava que fossem eleitos e elegessem; que abordassem de forma franca e honesta as questões do país, incluindo as internas. Que as suas vontades fossem elaboradas e se materializassem como genuinamente eram, salvaguardando-se, naturalmente, os limites das liberdades de outrem.
Era já outra. De domesticação e confiscação de liberdades, fossem de pensamento, articulação, ou de acção. Uma fase de orientações superiores, de disciplina militar rigorosa, em que não mais existia vontade individual sobre si próprio, mas vontade da dos outros sobre o indivíduo. Uma fase que convocou o temor e, consigo, o silêncio sepulcral e ruidoso sobre todos os assuntos da vida. A amputação espiritual. Haverá espírito no reino do medo e da coarctação de vozes, ideias, sonhos e aspirações? E as perseguições e sancionamentos dos que mijassem fora do penico?
A despeito da carta estatutária da organização existir, saudável e imponente; e, de congresso em congresso, ser revista, actualizada e… modernizada. Mas a sua aplicação sincera dependia já dos casos e dos interesses, apetites e vontades de alguns dos incumbentes do dia. Assim como dependiam/dependem as actuaçǒes de todos os outros órgãos da agremiação.
Daí que o silêncio tivesse tomado conta da casa. Ninguém podia querer, ou querer-se; tinha que ser querido primeiro! O que só se quebrou a partir daqueles três dias de Maio passado. E se prolongaria por cerca de um mês, ie., ao longo dos curtos processos eleitorais internos de candidatos a cabeças de listas, de deputados e de membros das assembleias provinciais. Foi tanto barulho que pareceu que o silêncio tinha ido embora de vez! Os camaradas falaram; alguns poucos processos foram revistos, um secretariado provincial voou... Até apareceram as Artemizas da vida, que não pararam por aí; até hoje, fazem ouvir vigorosamente e nalguns momentos com certo excesso, as suas vozes! Parecia que, uma vez ateado, tinha pegado fogo o silêncio e que, doravante, elas seriam elas…
Pura ilusão de óptica: terminadas as internas… tudo voltando ao seu normal, como quando a chuva intensa pára e o sol reabre. E, na última extraordinária, voltou a emperrar. No lugar de se pôr a verdadeira questão que perpassa(va) as cabeças dos camaradas, houve uma belíssima peça daquela das melhores do Gungu: debater-se se proclamava ou não Chapo secretário-geral efectivo e não interino, como era. O que passou silencioso foi o necessário e imperioso afastamento dos restantes membros do secretariado. Chapo não merece ter ajudantes escolhidos/sugeridos por si? Esse é que era/é o assunto que aflige a organização. E nǎo houve voz para o articular! E, no escondidinho do silêncio, continuam a perguntar-se como é que não se afasta todo o elenco anterior.
O silêncio voltou!
ME Mabunda
“O povo moçambicano, provavelmente, não soube escolher o seu empregado, contudo, desafio a TVM a não ter o papel ridículo, através de reportagens ridículas, para dar a entender que a greve decretada, com efeito a partir de 29 de Julho, com duração de 21 dias, não tem adesão. Que não venha dizer que todos os serviços estão a funcionar. Entendam, a questão não é a presença do pessoal médico, a questão é a existência dos meios para que o pessoal médico possa trabalhar e curar os doentes. Aos médicos que, por alguma razão, não irão aderir à greve, no mínimo, não sejam ridículos, procurando diabolizar os vossos colegas que estarão em greve porque a causa é nobre. Quanto à sociedade, que acarinhe a posição dos médicos, a sua greve é para melhor servir-nos. Haja consciência.”
AB
“A situação do Serviço Nacional de Saúde está um caos. Não gostaríamos de ter chegado a esta situação, mas, infelizmente, quando não há diálogo com o Governo, este é o meio que encontramos. Apelo aos médicos a prestarem serviços mínimos aos Bancos de Socorros e outros departamentos”.
In Carta de Moçambique, (Napoleão Viola) Edição nº 1.047 de 23 de Julho de 2024.
Nós, moçambicanos, estamos cientes que as unidades sanitárias do País estão um caos total. Sabemos que alguns profissionais de saúde exigem dos pacientes favores para trata-los, desde o servente a outros níveis de profissionais. A saúde é um dos sectores em que se manifesta a corrupção e espero que aqueles que não participam desse tipo de situações se distanciem e denunciem. Só desta forma é que a sociedade poderá voltar a confiar nos serviços de saúde.
Nesta greve anunciada dos médicos, a sociedade deve estar em defesa destes. Os médicos dão ênfase às más condições de trabalho, não estão a revindicar salários, regalias resultantes da função que desempenham. Eles querem que o Governo da República de Moçambique lhes proporcione condições de trabalho condignas, para o atendimento ao público. Os médicos falam de falta de material básico para atender às pessoas.
Faz pouco tempo que uma estação Televisiva Nacional reportou a falta de GESSO para o tratamento de pessoas com problemas de ortopedia. Nessa reportagem, mostram o pessoal de saúde a adoptar uma cartolina para substituir o GESSO. Ao mesmo tempo, mostram na Televisão uma criança com a deformação do braço, resultante da falta do GESSO. Por isso, não está aqui em causa o bem-estar dos médicos, mas, sim, a criação de condições para que possam dar o melhor de si, em prol da saúde da população.
Há uma coisa que acontece na nossa sociedade. Alguns médicos irão aparecer a dizer que não houve adesão à greve, que todos os serviços funcionam com normalidade. Infelizmente, são esses concidadãos que adiam a resolução de alguns problemas. A saúde é uma área fulcral para qualquer sociedade, o pessoal de saúde deve estar consciente que, ao fazer essas aparições, acompanhados pela Televisão Pública, infelizmente, estão a prestar um mau serviço público, não estão a defender a própria classe e tão pouco as pessoas cujas enfermidades juraram tratar.
A greve terá início a 29 de Julho e irá durar 21 dias. Não faz muito sentido que, durante este lapso de tempo, não haja aproximação do Governo a estes profissionais. Aliás, na comunicação do Porta-Voz da Associação dos Médicos de Moçambique, ficou claro que desde Fevereiro que não há diálogo entre as partes. Isto, em parte, pode revelar a falta de interesse do Governo na solução dos problemas apresentados.
A Associação dos Médicos vai mais longe ainda revelando que, apenas 25% das promessas do governo, tiveram seguimento. Destes, somente seis tiveram conclusão, vide “Carta de Moçambique” de 23 de Julho de 2024. Ora, se assim é, o Governo de Moçambique, que dialoga com os médicos, espera qualquer credibilidade? Mas, mais do que esperar a credibilidade, eles não reconhecem o CAOS que é a situação das Unidades de Sanitárias existentes no País? Onde é que eles vivem?
São 21 dias em que as Unidades Sanitárias não terão a totalidade dos seus serviços a funcionarem, ainda que com as dificuldades reportadas, mas também tempo suficiente para que haja aproximação entre as partes de modo a encontrarem a solução definitiva para essas diferenças. Não basta “comprar” um ou dois médicos para dizerem que está tudo bem, não senhor. Não basta que a Televisão de Moçambique espalhe repórteres para contrariar os médicos grevistas, a questão não são os médicos, são as condições hospitalares que continuarão sem solução e a penalização vai para os utentes dos serviços de saúde nacional. O que vale dizer que vai para o Povo, que os governantes dizem servi-lo e o Presidente da República disse ser o “seu Patrão”: mas que forma estranha de servir o seu Patrão Presidente!
Adelino Buque