Sempre ouvi que existe uma diferença de objetivo entre o povo e os seus dirigentes, como se fossem até de espécies diferentes. Certamente, estamos fartos de ouvir que um determinado político é corrupto ou que o povo é burro e não sabe votar. Mas podemos, de fato, acreditar nessa diferença? E se, na verdade, forem mais semelhantes do que parece à primeira vista?
Quando olhamos para os países que admiramos quanto à sua governança, percebemos que o povo carrega muitos dos valores que também admiramos. Os governantes vêm do povo e apenas se encontram numa posição favorável para exercer os valores que já existem — ou que não estão disseminados culturalmente. A diferença é que, enquanto fazem parte do povo, ser mau é apenas um atributo que os mais próximos reconhecem. Quando essa mesma pessoa sobe ao poder, o povo se espanta; no entanto, aqueles que lhe são próximos não se surpreendem. Era elementar.
Precisamos entender o que o povo quer. Pois, em boa parte dos Estados, a vontade do povo é difusa, oscilando entre sonhos e fantasias. Talvez Thomas Sowell possa ser citado aqui: “Quando se quer o impossível, só o mentiroso pode oferecer.” Se, por um lado, alguém dirá: “Temos vários grupos de interesse, e é natural que estejam em conflito.” Por outro, há uma base comum: todos querem um país justo, seguro e próspero… As discordâncias estão na estratégia para ali chegar. Em tese, queremos mais ou menos a mesma coisa. Claro, podemos ter algumas exceções — aqueles dispostos a queimar tudo pelo simples prazer de ver o caos. E sim, essas pessoas existem. Muitos as chamam de chefe… ou de ex-amor.
Apesar da aparente discordância, aqueles que falam sobre a vontade do povo só a consideram válida quando coincide com a sua própria opinião. Assim, facilmente ouviremos desses seres intelectuais e neutros que, quando seus interesses não são atendidos, o povo é burro, não sabe votar ou sofreu lavagem cerebral. Mas a lavagem cerebral ocorre quando alguém tem convicções que vão de encontro ao que acreditamos. Nesse momento, o incômodo da liberdade de imprensa ou de expressão pesa sobre nós, e queremos aniquilar essas discordâncias. Chamamos isso de justiça poética ou de uma causa maior. Temos fórmulas sofisticadas para justificar o nosso extremismo.
E o povo? Podemos acreditar que se trata de uma massa pensante, repleta de individualidades que buscam o que é melhor para si, guiadas pela razão. Ou podemos acreditar que é uma massa acéfala, que precisa ser guiada. Levando essas hipóteses ao extremo, podemos dizer ao povo sofredor: “Por qual motivo a bota da opressão está no vosso pescoço? Não sois vós cúmplices do vosso algoz?” Em parte, sim, ao aceitar determinadas condições. Mas não podemos culpá-lo por não ter o poder de desviar de balas, evitar a fome ou ressuscitar seus entes queridos! Se queremos afirmar que o povo se guia pela razão, pergunto: qual razão pode ser desenvolvida em situações de miséria e sobrevivência? Assim, chegamos à conclusão de que alguns são mais povo do que outros. O filho de um presidente é povo, mas um povo diferente — uma espécie de povo premium. Ele terá acesso e influência que são vedados ao povo econômic.
E os dirigentes? Podemos pensar que são seres independentes, que existem para servir o país… ou para se servir dele. Isso também é relativo. O dirigente depende do Deep State ou dos patrocinadores — aqueles que controlam quem governa, mas que nunca são eleitos. Quando assistimos ao nosso presidente aceitar uma proposta que lesa visivelmente o país, talvez ele esteja apenas fazendo a vontade daqueles que o colocaram ali.
E então? A formação da elite africana, por exemplo, tem um propósito claro: manter o país exatamente como está — pobre e submisso. Enquanto suas famílias se distraem com consumo e um nível de vida mais elevado, o país morre. Mas eles se sentem africanos premium.
Alguém dirá: “Mas ele deveria resistir e manter sua moralidade!” Ele pode até tentar, mas logo será substituído por alguém mais iludido e facilmente manipulável. Isto é a Realpolitik.
Uns concluirão: “Isso só acontece na África porque somos pobres!” Será? O primeiro-ministro japonês acabou com uma bala na testa. Vários presidentes norte-americanos tiveram destinos semelhantes. A França guilhotinou seu rei. A Inglaterra fez o mesmo. Assim segue o baile. Seria a tal famosa elite global? Precisamos pensar nisso.
Por fim, o que o povo quer? O que ele pode querer, dadas as condições materiais da sua própria existência? O que pode desejar quando existe uma máquina milionária de propaganda instalando ideias convenientes para os que estão no poder? O que o povo precisa querer para entender que o sucesso individual não confirma o sucesso do sistema?
O que é o povo, afinal, quando quer o que quer? Ou já chegamos lá?
*Ivanick Lopandza é um jovem intelectual, poeta e activista social santomense, com ADN paternal congolês, membro fundador do colectivo Ilha dos Poetas Vivos em São Tomé no ano de 2022, com seus companheiros santomenses Marty Pereira, Remy Diogo e moçambicano MiltoNeladas (Milton Machel). Autor de livros de poesia, Ivanick é também bloguista, curando seu blogue Lopandzart.