A prisão preventiva – um tema que não consta das minhas preocupações académicas e profissionais – é um dos mais importantes institutos do direito processual. Mas, enquanto cidadão, estou atento como ela é usada, pois é uma das mais comuns formas de violação dos direitos humano.
A dignidade da pessoa humana, elemento central de toda a produção legislativa sobretudo em matéria penal, impõe maiores cuidados no seu uso legislativo e jurisprudencial.
Apesar dessa preocupação, não tenho elementos para discutir o projecto de alteração do regime jurídico da prisão preventiva que tendo sido introduzido pela revisão do CPP de 2019 se encontra em revisão ainda antes de entrar em vigor. Compreendo a indignação de que vê nessa alteração um atentado ao Estado de Direito.
Gostaria de aproveitar esta oportunidade para insistir numa outra questão relevante e que parece estar a passar ao lado da discussão. A forma como está a ser feita essa alteração legislativa.
É sempre desejável o legislador actualizar as leis, sobretudo porque parte-se do pressuposto que se pretende melhorar o que não está bem e ajustar em função de uma análise da inadequação do regime vigente.
O CPP que vigorou por mais de um século, foi, depois de um prolongado debate – nem sempre adequadamente feito – objecto de uma profunda alteração em finais de 2019.
Mais do que actualizar o texto então vigente, foi alterado o modelo do nosso processo penal. Já em 2014, logo depois da entrada em vigor do Código Penal se reclamava pela actualização do CPP.
Fez bem o legislador em não se precipitar, esperando por consolidar o pensamento, discutir as propostas e tomar as decisões que entendeu adequadas.
Todos – mas sobretudo aqueles que lidam com essas matérias – ficamos alegrados com o novo CPP ainda que logo que foi publicado tenham emergido algumas críticas, sobretudo no que se refere ao regime dos recursos das decisões dos tribunais de distrito.
Foi fácil perceber que essa alteração tinha surgido por lapso que era necessário corrigir. Sobre o regime da prisão preventiva, ficou logo perceptível que o poder judicial seria pressionado: as decisões teriam de ser tomadas em tempo útil – cujos prazos o legislador procurou determinar -, findo o qual os presos preventivamente seriam soltos se tais prazos se esgotassem.
Não só é compreensível, como é de aplaudir que haja uma preocupação numa justiça rápida. Não sei se houve uma ponderação sobre a exequibilidade desses prazos, mas, como sempre ocorre, só se pode pensar que o legislador consagrou as soluções mais acertadas em face dos anseios não só da comunidade jurídica, como também da sociedade.
É uma obrigação do Estado criar condições para que as pessoas sejam julgadas em tempo útil, bem assim que fiquem o mínimo de tempo possível na prisão, pois ela é uma excepção.
Por isso, fiquei surpreendido com o projecto de revisão do CPP que visa retirar do novo regime esses prazos de duração da prisão preventiva nos casos de recurso. Como não percebo muito bem as razões da mudança de regime – naquela altura e agora – preocupa-me uma outra situação, que parece ser prática na maneira como são feitas as leis.
É inquestionável que o Parlamento tem toda a legitimidade para alterar as leis vigentes, aprovando as que entender adequadas, desde que dentro dos limites da Constituição.
Manuel Castiano, colega e experimentado penalista, num texto que pedi ele escrevesse sobre o tema, diz que, em certa medida esse novo regime da prisão preventiva é aparentemente inconstitucional.
Não sei. Mas sei que a legitimidade democrática do legislador não lhe autoriza a alterar as leis de forma escondida.
Explico-me. O debate para aprovar o CPP foi aberto e transparente. Levou tempo.
Podemos não gostar das soluções que foram adoptadas, mas nunca podemos dizer que não acompanhámos o processo legislativo.
O CPP – que alguns designam por direito constitucional aplicado – é das mais importantes – senão a mais importante – leis infraconstitucionais.
Toca nas liberdades fundamentais dos cidadãos e na protecção da dignidade da pessoa humana. Toca na forma de limitar as liberdades com a medida mais gravosa que até agora existe: a prisão preventiva.
Hermenegildo Chambal (2017), um dos mais talentosos juízes da nova vaga de magistrados judiciais, escreveu um excelente livro sobre o cruzamento entre a prisão preventiva, a dignidade da pessoa humana e a presunção de inocência que recomendo a quem quer perceber onde está a essência do problema.
Ele escreveu: no que diz respeito à mora processual causada pelo mau funcionamento do aparelho judicial, surpreende uma certa aversão na concretização das medidas legais, nomeadamente da libertação do arguido mediante caução e do reexame dos pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva.
Diz, ainda que é notório que a violação dos prazos de prisão preventiva ocorre, sobretudo, na fase judicial. Se uma das preocupações que existem em Moçambique é a da morosidade processual, aprovar normas que aceleram os processos e evitam o abuso da prisão preventiva, não só é importante como é fundamental para todos nós, incluindo para quem investiga ou julga.
Se o processo de socialização do regime final que corporiza o CPP de 2019 foi amplo, participado e transparente, a alteração desse regime é o oposto.
Desde que em finais de 2019 foi aprovado o CPP, esperavam-se por debates, reflexões e comentários sobre o novo regime.
Critiquei, de forma aberta e incisiva, a minha Faculdade – a Faculdade de Direito da UEM – por se ter colocado à margem do processo de disseminação dos novos instrumentos legais.
Esperava que a FDUEM organizasse palestras, seminários, colóquios, mas debalde
Parece que a COVID era o pretexto para todos ficarmos impávidos e serenos, como se tudo isto nada tivesse a ver connosco. Mas tinha e tem.
Foi, por isso, com um alívio preocupado, que acompanhei a prorrogação da vacatio legis do CPP.
Aliviado, mas preocupado e não satisfeito, até porque pareceu-me uma solução atrapalhada, ainda que desse aos práticos do direito mais tempo para compreenderem melhor o novo regime.
Mas não aconteceu nada de relevante relativa à disseminação dos novos instrumentos legais, salvo uma preocupação tardia das magistraturas.
Essa insatisfação resulta do facto de que com a entrada em vigor do CPP poderia haver solturas de presos preventivos em face da existência de prazos limites.
Se o legislador assim decidiu, foi por ter concluído que era a melhor solução para o país. Menos de um ano depois, sem debate público, sem reflexão transparente, há uma regressão no regime fixado.
Se há um tema que muito ocupa as minhas reflexões, é a ausência de debate público na produção legislativa. Quando isso ocorre no que de mais importante temos – a liberdade, a nossa liberdade – estar preocupado é muito pouco.
Falta, aqui, honestidade do legislador; há muita imoderação legislativa.
Em Junho de 2018 escrevi um texto para o Jornal O Pais onde concluía: Há um trabalho feito para determinar quais são os nós de estrangulamento? Porquê alterar? Para quê alterar? São perguntas que não tem resposta e que deveriam preceder a alteração da lei, até para contextualizar melhor a alteração, sob pena de desvirtuar o processo legislativo. (…)
É a imoderação legislação no seu melhor. Até certo ponto, há, aqui, uma certa desonestidade do legislador. Uma das melhores formas de democratizar as leis, é debate-las, com tempo e de forma transparente.