Frágil e tímida, Vaida Raposo, 15 anos, aproveitou as restrições impostas pela covid-19 para quebrar uma tradição familiar e se desfazer de um casamento prematuro arranjado pelos tios em Mondoguara, uma aldeia pobre do interior de Manica, centro de Moçambique.
O homem com quem viveu por quatro meses ficou retido no Zimbabué em dezembro devido ao encerramento da fronteira, tendo a rapariga decidido procurar o auxílio do Comité Comunitário de Proteção da Criança para denunciar a “tortura de amor”.
“Ele agora foi para o Zimbabué e por causa do coronavírus ainda não voltou”, disse à Lusa Vaida Raposo, que agora tem “medo de ele voltar” e que a leve. Por isso quer uma intervenção das autoridades para ser transferida para outra zona e se dedicar aos estudos.
A mãe da rapariga, uma garimpeira de 34 anos, foi dada em casamento a um homem duas vezes mais velho, e agora tenta impedir a repetição do episódio com a primogénita, para que ela não tenha de “conviver com a infelicidade pelo resto da vida”.
“Não posso permitir que a vida que vivi seja vivida pela minha filha. Ela deve estudar e ter outra visão de lar”, disse à Lusa Cherit Matandira, que a par de outras ativistas, luta agora pelos direitos da filha e de outras meninas em risco de uniões na aldeia.
A rapariga entrou para as estatísticas de dezenas de miúdas resgatadas, em 2020, de uniões prematuras em quatro distritos de Manica pela Save The Children, uma organização humanitária virada para a defesa da criança.
No total, 92 crianças foram identificadas pelos 114 Comités Comunitários de Proteção à Criança, criados pela Save The Children, como estando em situação de risco de uniões prematuras em 2020 nos distritos de Manica, Machaze, Macossa e Tambara, tendo 47 sido resgatadas.
Outras 13 raparigas foram resgatadas pela organização através da Linha Fala Criança, apoiada pelo projecto Norad.
Apesar do sucesso no caso de Vaida Raposo, a diretora do programa de Manica da Save The Children, Ana Dulce Guizado, receia que “neste momento a covid-19 esteja a regredir todo o processo de sensibilização” já feito pela organização, por as crianças estarem confinadas nas residências e sujeitas a todo o tipo de violência.
“A próxima prioridade é reforçar as campanhas até que as uniões prematuras sejam definitivamente banidas”, acrescentou.
Mais a norte de Mondoguara, danças celebram o regresso a casa de Rutendo Djambo, uma rapariga de 16 anos que viveu por vários dias num lar polígamo em Nhandiro, uma aldeia de Mavonde, no interior de Manica.
O resgate da rapariga, agora grávida de um idoso, é celebrada pelo pai, um camponês de 53 anos que resistiu ao lobolo, um dote em espécie ou animais dado à família da noiva.
É a desculpa económica que leva muitos pais a entregarem as suas filhas menores para casamentos por elas indesejados.
“A esposa mais velha do homem veio cá buscar-me para ser mais uma mulher do seu marido”, contou à Lusa a aluna primária, que sonha em ser professora para ensinar outras crianças a não aceitarem os casamentos arranjados.
Geralmente, mulheres mais velhas num lar polígamo procuram trazer meninas mais novas para os seus esposos, como forma de salvar a honra da casa e evitar que sejam abandonadas, uma prática reiterada que tem perpetuado as uniões prematuras.
À semelhança de Rutendo Djambo, Cláudia Naisson, 14 anos, descobriu que estava grávida de três meses após ser resgatada de uma união prematura com um homem mais velho em Messica, uma aldeia mais a sul do distrito de Manica.
Ela engravidou aos 13 anos e aos 14 teve o parto da filha, que agora tem 07 meses. Agora salta à corda na sombra de uma mangueira frondosa, onde as crianças da aldeia se juntam para brincar.
“Gosto de brincar com as crianças, porque também ainda sou uma criança”, precisou Cláudia Naisson, que enquanto salta a corda fixa os olhas na filha, que repousa nos braços de uma outra criança.
A brincadeira descontraída contrasta com a tarefa de ser mãe na infância.
Cláudia quer agora influenciar com a sua experiência as crianças da sua aldeia para não seguirem o “espinhoso” caminho de assumir um lar ainda na inocência.
Um líder local, Cláudio Serrote, disse à Lusa que as aldeias continuam “infestadas” com casos de uniões, uma situação que está a perpetuar a pobreza, porque muitas das raparigas acabam como garimpeiras, para acompanhar os maridos na extração ilegal de ouro em minas artesanais.
A comunidade “agora está a ver que aquelas meninas que estão a ter esta ideia de casar cedo já estão a sofrer" e "muitas já estão a ir no ouro [garimpo] junto com o próprio marido”, relatou, observando que “casa-se para melhorar a situação [económica], mas no lugar de melhorar a situação está a piorar”.
O Ministério Público em Manica, o distrito com maior incidência de casos, observa que práticas tradicionais de uniões prematuras estão enraizadas nas comunidades e “andam em contramão” com a lei, agravando a pobreza entre as vítimas.
Os magistrados dizem estar a ser proativos para eliminar o problema. Só este mês, três casos de casamentos prematuros deram entrada na Procuradoria Distrital de Manica, estando ainda na fase de triagem.
Em 2020, 20 casos chegaram àquela instituição envolvendo menores de 13 a 16 anos, tendo sete sido levados a tribunal e todos condenados.
“Um dos casos foi de uma menor que se envolveu com um idoso. Ela já estava grávida e para nós foi um pouco complicado prender alguém que é o único sustento de uma menor grávida", referiu Nilson Dos Reis, procurador-chefe distrital de Manica.
"A justiça às vezes fica com um pé atrás, porque podemos estar a repor a legalidade, mas alguém está a sofrer por causa do nosso trabalho. Neste caso ficámos constrangidos, mas tivemos de fazer o nosso trabalho” disse.
Moçambique tem uma lei contra os casamentos prematuros aprovada em 2019, mas a diretora da Save The Children em Manica lamenta o facto de em 2020 ter havido pouco contacto com crianças para a divulgação da norma devido às restrições da pandemia de covid-19.(Lusa)