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quarta-feira, 27 novembro 2019 07:39

A guerra e os seus efeitos: Conheça estórias de mulheres cuja vida não mais foi a mesma depois do conflito dos 16 anos

Maria António, residente em Sabe, Morrumbala (a esquerda) Teresa Tomocene, residente em Baue,Mutarara (no centro) Francisca Francisco, residente na Vila Nova, Mutarara e Gilda Miguel, residente em Sabe,Morrumbala

A guerra continua sendo um dos “fenómenos artificiais” cujas consequências são nefastas para a vida das nações, no geral, e das populações, em particular. Destruição e perda de vidas humanas são alguns dos resultados mais visíveis das confrontações armadas entre diferentes grupos, sejam eles do mesmo país ou de países diferentes.

 

Entretanto, para além da destruição do património público e/ou privado, temos também a “destruição” de pessoas, com a existência de mutilados, resultantes das guerras, assim como de pessoas traumatizadas pelos efeitos da guerra, cuja recuperação, em alguns casos, é nula. Segundo a revista brasileira “Super Interessante”, por exemplo, 80 mil soldados americanos, que participaram da Guerra do Golfo, em 1991, sentem, até hoje, os efeitos das batalhas: náuseas, dificuldade respiratória e perda de memória.

 

O intróito deve-se às estórias colhidas pela “Carta”, entre os dias 28 de Outubro e 03 de Novembro último, junto da população dos distritos de Mutarara, na província de Tete, e Morrumbala, na Zambézia, que sofreram as consequências da guerra civil que opôs o Governo autoritário da Frelimo e o movimento rebelde da Renamo, durante 16 anos. Até hoje, os efeitos se fazem sentir.

 

De acordo com as fontes que aceitaram dar a cara à nossa reportagem, a guerra dos 16 anos deixou marcas “inapagáveis” nas suas vidas, devido ao terror por que passaram. “Nada nos sai da memória. Tivemos de abandonar tudo para não perder a vida”, afirmaram.

 

De acordo com o pesquisador David Brites (2017), até 1990, a guerra civil moçambicana tinha produzido 900 mil mortos, resultantes dos confrontos militares, das atrocidades, das minas terrestres e também da fome, uma das grandes características dos períodos de guerra. Houve também cinco milhões deslocados e 1,7 milhão de refugiados.

 

Para poder inteirar-se do dia-a-dia de quem viveu, na pele, a guerra dos 16 anos e os recentes conflitos militares, opondo novamente o Governo e a Renamo, “Carta” procurou as testemunhas oculares para contarem a sua versão sobre a guerra. Durante os sete dias, a nossa reportagem conversou com mulheres, consideradas maiores vítimas dos conflitos armados.

 

Placa indicativa do Bairro Baue, no Distrito de Mutarara

 

Para tal, escalamos o bairro de Baué 6, na vila de Nyamayabué, no distrito de Mutarara, na província de Tete, onde conversamos com Teresa Tomocene, de 66 anos, natural daquele distrito. A fonte conta que, devido à guerra dos 16 anos, teve de abandonar, por 10 anos, o seu local de nascimento, juntamente com o seu marido (Ernesto Andessene), filho (na altura com dois anos de idade) e vizinhos e instalar-se na região de Towé, na vizinha República do Malawi.

 

“Tivemos de deixar tudo, porque os homens armados, que chegavam à nossa região, saqueavam os nossos produtos, queimavam nossas casas e matavam nossos entes-queridos, sobretudo mulheres”, afirma a fonte com lágrimas nos olhos, acrescentando que viria a perder seu filho, no centro de refugiados, devido à falta de cuidados médicos.

 

Segundo Teresa Tomocene, no regresso, após a assinatura do Acordo Geral de Paz, celebrado a 04 de Outubro de 1992, não tinham casa, porém, preferiram regressar às origens a fixar-se no Centro de Reassentamento de “Embondeiro”, onde as restantes famílias recomeçaram a vida.

 

Prosseguindo, a fonte afirmou que grande parte da população daquele bairro regressou nos princípios de 2003. A fonte sublinha não querer ver mais o país em guerra, pois, esta tirou-lhe o seu “menino”.

 

Por seu turno, Joana Januário, de 56 anos de idade, também residente em Baué, afirma que alguns residentes daquele ponto do país preferiram permanecer no vizinho Malawi e outras instalaram-se noutros distritos da província, com o receio do recrudescimento do conflito, para além das “más memórias” que o local ainda guarda.

 

Hoje o bairro debate-se com problemas de transporte, água potável, o que retira a paz àqueles compatriotas.

 

O medo da guerra também toma conta de Morrumbala

 

Infraestrutura destruida durante a guerra civil em Morrumbala e hoje tornou-se ruina

 

Registadas as estórias de Baué, a nossa equipa de reportagem partiu para o distrito de Morrumbala, na província da Zambézia, tendo-se instalado concretamente na Localidade de Sabe, onde os sinais dos diferentes conflitos ainda são visíveis.

 

Neste ponto da província da Zambézia, que também sofreu com a guerra civil e experimentou alguns momentos de tensão durante o recente conflito militar, receia-se o regresso da guerra com a publicação dos resultados eleitorais, que dão vitória à Frelimo e ao seu candidato Filipe Nyusi, incluindo naquele local, historicamente, favorável à Renamo e seu candidato.

 

O medo, afirmam as fontes, deve-se ao facto de existir, naquele distrito, uma base militar da Renamo, localizada a 18 Km da vila-sede daquele distrito, o que pode precipitar um novo conflito, tendo em conta os gritos de fraude que têm sido repetidos pelos partidos da oposição.

 

Maria António tem 20 anos de idade e é mãe de dois filhos, tendo nascido e crescido em Sabe. A fonte afirmou que a região está em “alerta máximo”, devido à onda de ataques que ocorrem nas províncias de Manica e Sofala. Conta ainda que, em 2015, ela e a família tiveram de abandonar a região, devido aos ataques militares, que tinham eclodido, e que só regressaram no ano seguinte, 2016. Por isso, afirma que o medo de uma possível guerra ainda é maior naquele ponto do país.

 

Enquanto isso, Gilda Miguel, também residente de Sabe e mãe de três filhos, acredita que nenhum conflito militar irá eclodir naquela região, embora tenha na memória as imagens de 2015. A fonte chora apenas a falta de água potável, que lhe faz percorrer mais de 3 Km para obtê-la.

 

Psicólogo defende que a guerra cria “stress pós-traumático”

 

Elio Mudender,psicologo e docente universitario( a esquerda) Isabel Casimiro, docente e membro do Centro de estudos africanos da UEM

 

Contactado pela “Carta” para comentar em torno das estórias partilhadas pelas vítimas dos conflitos militares, o psicólogo Elio Mudender defendeu que grande parte das pessoas que vivem aquele tipo de situações sofre “stress pós-traumático” porque “os episódios de guerra, violência ou qualquer situação de conflitos, sempre se revivem em sonhos e pensamentos”.

 

Mudender afirma que toda a guerra deixa sequelas psicológicas, para além das físicas e da destruição do tecido social e de infra-estruturas. “A guerra deixa mazelas na parte psicológica, que são, portanto, aqueles traumas, dor, sentimento de insegurança, de angústia, de tristeza, por causa das perdas e do sofrimento que se vive”, explicou.

 

“A guerra nunca acaba. Até pode se verificar o calar das armas, mas continua a ecoar na mente das pessoas, no coração das pessoas. É por isso que as pessoas que passaram por uma situação de guerra não esquecem porque, na verdade, a nossa memória guarda aqueles episódios muito marcantes e fortes”, acrescentou.

 

Face à situação, Elio Mudender propõe que as vítimas tenham um acompanhamento psicológico, que é um tratamento que consiste em ajudá-las a esquecer os efeitos e as mazelas causadas pela guerra. Um dos tratamentos propostos é a auto-regulação, em que o indivíduo regula a sua mente, seus pensamentos e suas acções, de modo a não ser vítima das mazelas causadas pela guerra.

 

Por seu turno, a socióloga Isabel Casimiro disse à “Carta” que a nossa sociedade vive, desde os tempos passados, conflitos permanentes e que nunca foram resolvidos. A docente lembrou que, mesmo antes da guerra colonial, existiam conflitos entre as comunidades, que motivou várias deslocações, em que as pessoas tiveram de deixar tudo, como aspectos culturais, sociais e económicos.

 

Explica que, após a Luta de Libertação Nacional e a guerra dos 16 anos, houve esforços para aproximar as famílias, através de conversas e pedidos de perdão entre estas e a sociedade, de modo que se pudessem reconhecer e viver juntas, actividade desenvolvida pelo governo e pela comunidade internacional.

 

Porém, “a situação não ficou resolvida. Aquele Acordo de Paz não resolveu tudo, o que significa que o que nos parecia que tinha sido uma integração, não foi porque nem sempre houve uma integração”, destaca. (Omardine Omar)

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