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quarta-feira, 29 novembro 2023 10:01

Mia Couto: “Falta-nos coragem de revolvermos o nosso próprio chão”

O escritor de “Raiz de Orvalho”, título da sua obra inaugural, de natureza poética, apresentou ontem em Maputo sua mais recente proposta literária. 

 

Mia Couto é como que um camaleão. Ele se transmuda na arte de escrever, embrenhando-se de alma profunda nos gêneros em que aposta, de quando em quando, fazendo deles um apeadeiro de onde se atira para propostas distintas, ora prosa, ora romance, de novo poesia.

 

Quando em 1983 lançou “Raiz de Orvalho”, no período mais áureo da poesia moçambicana (no ano seguinte, a Geração Charrua daria a estampa seu primeiro bornal de poemas e prosa e contos), pensava-se que Mia era apenas poeta e prontos.

 

“Raiz de Orvalho" fez quarenta anos neste ano e, ao longo deste tempo, Mia sedimentou no mundo o perfil de um escrevinhador multi-género. Sua obra, poucos mais de 30 livros, se espalha entre a poesia, o conto, o romance e a literatura infantil, onde as marcas identitárias do seu estilo estão incólumes: o realismo mágico ou fantástico, o resgate da tradição, a busca da identidade nacional, a oralidade e a valorização da memória cultural, etc.

 

Ontem, Mia Couto lançou em Maputo um “Compêndio para Desenterrar Nuvens”. Na véspera, ele conversou brevemente com o editor de "Carta de Moçambique", Marcelo Mosse, explicando, entre outras, o sentido de desenterrar nuvens. Leia:

 

Este "Compêndio para Desenterrar Nuvens” é uma cartilha para nós agirmos a que níveis?

 

Mia Couto: A ideia é que o que a gente procura tanto na literatura como na nossa vida quotidiana já está aqui, está oculto debaixo do chão, vamos dizer assim! Então, é um convite para revolvermos aquilo que a gente chama "realidade", que parece ser muito real, mas, afinal, é uma construção social, e termos coragem de revolver o nosso próprio chão, onde estão nossas grandes certezas e que as mesmas depois originam conflitos, situações de tensão porque cada um tem a sua própria certeza, cada um está convicto que está certo e, afinal, se a gente revolver esse chão lá para baixo, debaixo das nuvens, pode estar uma nova luz. Só que a gente tem medo de escavar!

 

Digamos que é um contraponto à ideia de enxergar longe?

 

M.C: É exactamente sobre isso! Esse longe está aqui, o longe está perto e temos medo de mexer no nosso próprio chão, sobretudo quando dizem que aquele é o único chão possível...as certezas de ordem política, filosófica, científica, etc.

 

Imagina tu…eu vi um cientista que ganhou um Prémio Nobel há dois anos, e ele só se questionou ... “eu acho que há outros factores de mudanças climáticas que não estão a ser bem equacionados como por exemplo a cobertura das nuvens… nós ainda não temos grande certeza…”. 

 

Ele disse isso e foi logo atacadíssimo. Ele foi uma heresia! Só levantar uma incerteza sobre aquilo que agora é tido como absolutamente certo, seguro, resulta num ataque pessoal, transforma-se numa coisa completamente polarizada.

 

Não é que eu defenda que não há mudanças climáticas, e que não temos que nos preocupar. Mas quando tu fazes uma projecção a longo prazo, nessa linha ou nesse gráfico que tu estás a fazer do que vai acontecer daqui a cinco anos, se nesta linha em 2023 altera-se um milímetro que seja, lá na ponta em 2040 ou 2050, a mudança dessa linha ou a configuração desse cenário mudam profundamente.

 

Tu és um pró ou um pessimista em relação às mudanças climáticas?

 

M.C: Eu acho que é visível que há alterações climáticas. O que eu sou é contra uma visão que não seja fundada na verdade científica. E a ciência está sempre a se questionar. Tem que ter essa liberdade de se questionar, porque se fica presa num assunto político, sabes tu que, de repente, surge gente que vem com as grandes soluções, milagres…por exemplo, agora, de repente, tu tiras os combustíveis fósseis e tens a energia eléctrica, os carros são movidos por energia eléctrica. Mas será que isto foi bem questionado?

 

Isto tem a ver também com a discussão sobre se devemos ou não avançar com o Gás do Rovuma. Há um radicalismo exacerbado sobre o assunto, que, pior, resulta claramente de uma demanda de fora…

 

Exactamente! O ponto para mim é que vão acontecer soluções combinadas. Podes ir progressivamente restringindo o uso dos combustíveis fósseis. Agora, a ideia de que é preciso parar tudo neste momento e quem tem que pagar essa factura somos nós, povos que poluíram muito pouco em comparação com os ricos, essa ideia mostra que há uma agenda qualquer que eu acho ser de muito pouco interesse para Moçambique.

 

Essa ideia da interdição total, essa intolerância, esse fechar de portas acontece também, por exemplo, em relação às barragens, que são energias ainda mais limpas. Num momento em que os factores energéticos são os grandes factores de desenvolvimento dos países, hoje, para sairmos desta encruzilhada da pobreza, estão a fechar as portas ao nosso próprio país?!!

 

Mas é assim: o que posso dizer é que sou contra soluções mágicas totais, como sou contra a condenação total como se fosse a diabolização ideal: tipo se não tivermos o petróleo ficamos muito bem, se não tivermos o gás ficamos bem. 

 

O que não é verdade porque, por exemplo, mesmo esse hidrogênio que está agora a ser descoberto como a grande salvação para o futuro, "e é o futuro!", como se o futuro fosse uma única coisa, para produzir esse hidrogénio terás que gastar imensa quantidade de energia e de onde vem essa energia? Vem do petróleo; vem do gás!

 

Estás a lançar um livro poucos dias depois de um acórdão polémico do Conselho Constitucional (CC) em relação aos resultados das eleições de Outubro. O que pensas sobre o momento político actual?

 

M.C: Eu acho que a democracia em Moçambique tem que ser medida, avaliada, em vários pilares. Se um pilar for a ausência do medo, estamos razoavelmente bem! Na sociedade em geral não há medo para as pessoas se expressarem, falarem, manifestarem-se.

 

Eu acho que este foi um passo positivo, por exemplo, ver as manifestações, mesmo que elas tivessem sido reprimidas e com uma violência excessiva em algum lugar. 

 

No geral, elas foram um passo positivo se tivermos em conta um país onde há 12 ou 15 anos não tinhas polícias a protegerem esses manifestantes e, provavelmente, elas nunca teriam sido autorizadas. 

 

Então, acho que essas pequenas vitórias não podem ser apagadas em nome de uma contestação política que tem cor partidária, seja ela qual for.

 

Por mais que possa haver contestação sobre o modo como foi conduzido todo este processo eleitoral, o facto de haver tribunais que actuaram no momento próprio, mesmo que essa actuação seja agora contestada tecnicamente, isso já foi positivo. Isso não havia há dez anos.

 

Mesmo o Conselho Constitucional, que muitos podem ter dito que não agiu com todaa  verdade, para mim a sua actuação foi um passo em frente, mesmo que falte, por exemplo, apurar as responsabilidades onde se provou que houve fraude.

 

Há também uma percepção de que o voto não foi soberano. O que Moçambique tem que fazer para devolver o voto ao eleitor?

 

M.C. Eu acho que algumas dessas recomendações estão contidas no acórdão do Conselho Constitucional, que já aponta para fragilidades da própria lei. É preciso questionar como é que se vai criar, com isenção, os STAE’s e as Comissões Nacionais de Eleições? Tem que se começar por aí. Quem faz a gestão quotidiana do processo eleitoral e quem depois vai devolver a verdade e certificar a veracidade desses resultados, tudo isso devem ser instrumentos completamente credíveis. Temos que ir até ao um ponto em que esses órgãos vão conferir credibilidade aos processos, isentos de influência partidária.

 

Este livro é um regresso à poesia, à prosa?

 

M.C: São crónicas que eu tenho publicado como colaboração na Revista Visão. Depois eu faço uma selecção e revejo esses textos transformando as crónicas em contos. Já tinha feito com “O Caçador de Elefantes Invisíveis”, que lancei há um ano e meio em Maputo, e agora são novos contos que têm a ver com a guerra em Moçambique, com a situação social que se vive, a injustiça que é uma pessoa morrer em Cabo Delgado e não ser notícia em lado nenhum, e quando morre um israelita ou um ucraniano é notícia global. (Marcelo Mosse)

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