“Como em outros poetas, também em mim, anuí:
não há a probabilidade de me render”
Heliodoro Baptista (“Nos Joelhos do Silêncio”)
Como epígrafe de um dos seus poemas mais incisivos e emblemáticos – “As outras mãos” –, Heliodoro Baptista citou o romancista uruguaio Juan Carlos Onetti que diz, em “O Estaleiro”: “É estranho que aqui ninguém soubesse de nada”. Com isso, o poeta denunciava a complacência que houve durante muitos anos em relação a práticas repressivas e de silenciamento do regime sobre vozes discordantes ou desalinhadas. Ele, que foi preso, que esteve cinco anos sem emprego, afastado do jornalismo, proscrito da pátria literária, sem ver a sua obra publicada, ostracizado, tendo a solidariedade de poucos, sofrera, no opróbrio daqueles anos, o anátema do isolamento. Jornalista, cedo vira, nos novos governantes, atitudes que criticava nos seus artigos. Era contra a arrogância, a prepotência ou o culto da personalidade.
Poeta erudito, ostensivamente sarcástico, por vezes, elíptico outras, seria, no entanto, cristalino em “As outras mãos”: “As mãos do poder, meu amor, / são mãos humanas. // Fulminantes, ásperas, leves, / gordas, acesas, molhadas de chuva / são sempre humanas”. Pagará um preço elevadíssimo pela sua ousadia, pela sua dissensão. “Por Cima de Toda a Folha” (1987) iria resgatá-lo, de algum modo, do isolamento, da proscrição, da exclusão ou do insulamento. O livro estava dividido em duas partes. Uma, a primeira, com poemas escritos entre 1970 e 1974, a segunda, com textos redigidos entre 1975 e 1984. Pertenciam ao primeiro caderno, poemas como “A Aldeia” sobre o massacre de Wiriamu: “Vede / a amabilidade das manhãs / exprimindo-se tão bem / sobre o espaço das bombas”, ou “Alegoria”, outra denúncia intrépida do genocídio colonial: “Em Inhaminga, meu amor / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Há, subsumida, uma cortante ironia. O segundo caderno tinha versos crípticos, mas de clara denúncia dos despropósitos do regime e das suas redundâncias: “Os deuses e os mitos seduzem-nos / até ao horror encarado de frente / mas somente representam no espaço / o imponderável de todas as coisas”.
Heliodoro Baptista, num tom acerado, impugnava os “obnóxios”: “A memória deve viver destes ímpetos / para produzir, contraponto oscilante, / a esplêndida leveza da nuvem, / do ser-se comunicativo / antes de termos sido persistentes, / nos confrontos; / improváveis como queríamos, / ilógicos sobretudo frente ao sussurro / das balalaicas obnóxias”. Tinha, à conta disso, o pecúlio da prisão e do desemprego. A divergência custara-lhe o isolamento e a penitenciária. Foi um dos primeiros intelectuais a exprimir o desencanto com os tempos novos e a experimentar a dureza da represália. Era um sacrílego para os prosélitos de serviço. No poema “Cela em êxtase”, na sua primeira prisão, de 1977, sem culpa formada, escreve: “Não devemos ter medo nem da pobreza; jamais / da prisão e do exílio”. Como poeta, vivia ainda “no tempo dos gritos”, como assinalara, numa das epígrafes do livro, ao citar Elias Canetti, autor de “Auto-de-Fé”, nascido na Bulgária e Prémio Nobel. Também aludia a José Craveirinha, seu amigo, quando, num outro contexto, mas em circunstâncias similares, denunciava: “os nervos novamente adequados a tudo / os amigos minuciosamente bem escolhidos. / As conversas prudentemente sussurradas. / Uma necessidade imperceptível a desconfiança”.
Não obstante, Heliodoro Baptista era um poeta do amor. Aliás, dedicava o seu livro aos filhos (Pablo e Guy) e “ao amor e ao meu país”. Ele amava intransigentemente este país e foi dos seus melhores poetas. Viveu, no entanto, toda a vida, acossado. Primeiro pelos esbirros do regime, depois perseguido pelos seus fantasmas. Aliás, ele escrevia para se conciliar com os seus fantasmas. Foi acutilante, acerbo, assertivo. Foi digno da sua condição e da sua profissão iniciada em 1971 no vetusto “Notícias da Beira” onde se estreara literariamente na página “Jovem” anos antes. José Craveirinha, Eugénio Lisboa, Sebastião Alba, Eduardo Pitta, Jorge Viegas eram alguns dos nomes que colaboravam na secção literária. Nascera em Quelimane, mas seria a Beira a sua pátria e o seu exílio. Vivia entre livros e era um grande leitor. Um autodidacta. Um melómano. Tinha paixão pelo cinema. Era culto, ecléctico, erudito. O que significa, por outras palavras: avançado, civilizado, ilustrado.
Quando o conheci, em 1987 saíra dessa espessa neblina que o ocultava e omitia. Voltara ao jornalismo e preparava-se para publicar o seu livro de estreia. Aquando da edição da série Autores Moçambicanos pelo INLD o seu original fora postergado, censurado e proscrito. Mesmo José Craveirinha, herói da Pátria, teve os seus tempos aziagos. A sua dimensão e importância e o facto de ter a amizade de Samora Machel devem ter dissuadido os prosélitos. Mas há poetas que amargaram a reeducação. Heliodoro conheceu os “Zambezes de solidão” e soube que “nunca um balázio em cheio / deu tanta alegria / aos profissionais do tédio / e aos acrobatas da intriga.”
No poema “Niassa – 1978”, do seu último livro, “Nos Joelhos do Silêncio” (2005) é lacerante: “Dizem que os campos se enchem de homens e mulheres. / Um a um, à noite, na areia de águas doces, os espíritos / enxotam leões reduzidos a cães sem dono. Lá, a lua em cimitarra. / Acordo na noite. A ave sagrada canta as leis do céu, / nos ensurdece, / estala na noite: provavelmente, começaram os fuzilamentos”. Isto é terrível, ao mesmo tempo belo. Isto é de um grande poeta. Belo e cortante.
Heliodoro Baptista era um poeta da linhagem dos que se revêem numa poesia como forma de conhecimento, numa poesia ecléctica. Releva daí o facto de a discussão que se despoletou sobre a questão da intertextualidade, naqueles anos, não lhe ser de todo alheia. A poesia dialoga com a melhor poesia e com os poetas que ele reputava. Contemporâneo de Jorge Viegas, Sebastião Alba ou Leite de Vasconcelos, leitor e amigo de José Craveirinha, admirador de Rui Nogar – “Mas não te iludas, irmão do Zé e do Nogar, / com a sintaxe dos novos oráculos” -, cultor da poesia de Herberto Helder , que terá uma importância capital na sua vida e no seu destino poético. Leitor de Fernando Pessoa ou Eugénio de Andrade, entre os portugueses, de João Cabral Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade, para citar os brasileiros, ou do Pablo Neruda. Era um leitor obstinado. “Somos indissociáveis / nos clássicos antípodas / da nossa ortodoxia / de amarmos Craveirinha e Kalungano / (com a mesma independência?) / que alguns nos lêem / no sentido figurado / seguindo à risca cada metáfora”. Sarcástico, altivo, soberbo. Ou hiperbólico e, ao mesmo tempo, provocador. Sempre provocador.
A sua vasta erudição compreendia um conhecimento amplo da ficção e do romance. Leu os clássicos, era admirador dos latino-americanos, dos americanos, dos europeus ou asiáticos. Citava deste Hemingway a García Márquez, de Mishima a Onetti, de Carlos de Oliveira a Jorge Amado. Foi um prosador exímio, um contista exemplar. Nos anos 70 emparceirou com Carneiro Gonçalves na experimentação de um dos universos mais inexplorados da nossa ficção – as lendas que ambos magnificamente verteram para o jornal “Notícias da Beira”. Uma dessas raras peças (“Chicaláua Milele”), de Heliodoro Baptista, publicada originalmente a 15 de Agosto de 1971, está coligida na antologia de contos “As Mãos dos Pretos”.
Era uma biblioteca viva e vívida. Incutia esse gosto e essa obstinação aos poetas mais novos. Julius Kazembe, que ele acoutou, muito jovem, foi um deles. Os filhos menores, Pablo e Guy, recitavam, quando os conheci, o poema 20 dos “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” do Neruda. Não era despiciendo, aliás, o nome Pablo, a quem ele dedicou um belo poema “Variações Onomásticas”: “E tu, meu filho, / que carregas esse nome diabólico/ por que dizes já com 2 anos/ a mim de cenho mortuário/ que assim, assim mesmo, / «estás farto desta merda»?”
O poema “Paisagem com poeta em segundo plano” começa e termina com dois versos de Herberto, o seu poeta electivo: “Tantos nomes que não há / para dizer o silêncio.” Creio mesmo que Herberto foi o arquétipo do poeta que ele pretendeu ser. Herberto Hélder: “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” (“Poemacto”). Em “A Colher na Boca”, Helder tinha aquele belíssimo poema “O Amor em Visita” que dizia: “Dai-me uma jovem mulher, com a sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite.” Era desta poesia que Heliodoro vivia, rodeado dos seus fantasmas, lendo, na Beira, este imensíssimo poeta. “Em cada mulher existe uma morte silenciosa” – escreve Herberto Helder. O amor e a morte seriam, de certo modo, os sintagmas da poesia de Heliodoro Baptista.
Homem de palavras, cultivava-as com a perícia de relojoeiro suíço. Os seus poemas, para além de terem soberbas metáforas e imagens poderosas ou até mesmo pavorosas, eram feitos de palavras e de um ofício que lembra a “Ars Poetica” do Rui Knopfli, outro poeta cujo amor e devoção nos aproximava. Num poema de “A Filha de Thandi” (1991), intitulado “À volta das origens”, dedicado a Rui Knopfli e a Eugénio Lisboa, o diálogo intertextual é explicito com um texto do Knopfli: “Sim, de facto, ‘uma só e várias línguas / eram faladas e a isso / por estranho que pareça, também chamávamos pátria’.”
Heliodoro Baptista: “As palavras amadurecem, transcendem-nos. / Como os dias. Este trajecto imemorial.” – isto no seu potente “Poema à Filha de Thandi”, que assim termina: “Mas o poeta tem boca: / As metáforas são o seu próprio ardil / para que outros leiam / o que ele nunca disse.” “As Palavras Amadurecem” seria o título de uma antologia publicada, em 1988, na Beira, pelos dez anos da página “Diálogo”, do “Diário de Moçambique”.
Há imensos poemas do Heliodoro Baptista de que gosto muito. Poemas que nos desassossegam. Poemas subversivos. Aliás, Jorge Viegas, com quem inicia, em Quelimane, um convívio literário (à volta da “Voz da Zambézia”), escreverá no belíssimo poema “Subversão”: “À subversão devemos/ A estatura do que somos.” Heliodoro Baptista, um poeta subversivo, no poema “De nós e dos outros”, que tem uma epígrafe do japonês Yukio Mishima (“A verdadeira pureza é sujarmo-nos e, no entanto, não nos sujarmos realmente”), escreverá: “Querem-nos, a alguns, bem sentados/ na fofa realidade escamoteada / a uma outra realidade desavinda / onde crescem agudas, ásperas vozes.”
“Ouso falar extremamente de mim mesmo”, escreve Heliodoro Baptista em “A Filha de Thandi”. E afirma adiante: “da imobilidade do poema/ explodirá o mais prodigioso grito de amor”. Aqui está a chave da sua poesia. “Falo-vos destas vozes mansas, chamando-nos docemente, / deste país em agonia mas vivo, / com seus luxos, grutas, segredos, xistos, volição, / onde, de resto, se confundem / estas recém-nascidas palavras, / adventícias, nunca. Consumadas, talvez.”
Heliodoro Baptista: “O pecúlio são os filhos, / o horizonte raso dos versos, / a doçura oriental dos teus olhos / e o castanho desenvolto / do teu corpo inextinguível / onde, às vezes surpreso, / restauro comovidamente / o deus que em menino/ quis ser.” Belo poema dedicado à musa soberana Celeste. No livro de estreia, dedicara à Celeste um outro belíssimo poema: “Gravidez”: “Traço a traço / desvendo-lhe as feições / por onde a vida rufla / as grandes asas.” Este livro – “A Filha de Thandi” – está cheio de belas metáforas. Num poema, “Prova dos Nove”: “Assim crescem as arestas da angústia, / as mesas estão cada vez mais vazias.” Isto é extraordinário. Num outro, “Preço dos sonhos”: “É de vidas que se fala aqui / e, sobretudo, de destroços humanos, / do que restou de todos nós.”
O poema “A Uma Ingénua Nórdica” é dos que mais gosto. Queria citá-lo na íntegra mas aqui não caberia. Também gosto do pungente “Ao Futuro”, dedicado ao filho Guy: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre esteve”, começa assim o texto que fecha o livro. Tem versos seminais: “Rigorosamente contemporâneo / da explosão cósmica / que, contam, declinou ao princípio/ do escuro e da luz.” Termina com a seguinte estrofe: “Nunca aceites ser mártir. / Ama o teu presente e o futuro / e, por certas tardes de sábado, / de olhos porventura humedecidos, / limpa docemente a minha tumba.”
Haveria muitos outros exemplos para citar. Quero, no entanto, terminar com o poema “Hablando, com amor, em setembro”, que ele dedicou a Ungulani Ba Ka Khosa, ao Eduardo White e a mim próprio. No meu livro, “A Pátria Dividida”, de 1993, tenho um poema dedicado ao Heliodoro. Em “A Filha de Thandi”, ele dedica-me o poema “O Amor em movimento”. O Heliodoro foi dos poetas mais generosos no afecto, e isso vê-se no modo como proliferam dedicatórias em seus livros. Este poema invoca Pablo Neruda no diálogo que ele estabelece connosco. “Nosotros, irmão Pablo, / também fazemos milagres a sorrir”, di-lo. Ou: “a realidade aqui é um repto / um grito vocabular.”
Releio este belo poema, e tocam-me estes versos fulminantes. Heliodoro era um poeta inspiradíssimo. Apetece-me citá-lo todo, mas falta espaço para o fazer. Leio: “Nosotros, irmão Pablo, / nós também somos os mesmos:/ com astúcias, tumultos, originalidade, / na dor exaltante desta transparência carnal / se sermos coisas, aromas, corações atónitos (ou atómicos) / abraços penitenciários, suicídios de luz.”
Ou por outra: “Os jardins ainda não são jardins, / a fome es muy fuerte e alguns dias, seus poentes, / dão-nos a gramática incontrolável desta candonga / da desordem programada, o rigor selectivo desse negócio / que é a desolação animada pelos anunciados humanismos, / das imperiais conveniências do dólar.” Este poema é lindíssimo: “Entretanto, aqui estamos,/ numa casa, em Setembro,/ com nossas praças, hablando em Setembro, / nesta cidade índica e austral, esculpindo / contigo em Setembro de todos nós, / que produziu depois esta fúria de amarmos a liberdade / e esta coragem, sem exibições de nunca temer o látego, / o banco do tribunal, as armas, / quando nos localizam e apontam a subversão / de amar o valor erótico, beijar o sexo como a uma hóstia, / a ajoelhar defronte do altar de uns seios, sem ocultações, / puros, feridos pela paixão de se ser homem, entidade,/ motor próprio, paisagem sempre nascida em cada cópula, / porque o amor é tudo, sempre será tudo e todos, / belo, paranóico, avassalador, canibal, suspeito,/ veneno, vitamina, lâmina de punhal que dá vida, soro vital.”
Não haveria melhor de definição para a sua poesia, nem haveria melhor inscrição no horizonte intemporal desta escrita na qual se inscreve (passe a redundância) a sua memória e a sua biografia a como, por exemplo, nos belos e doloridos versos, que citei acima. A sua experiência está neles sublimada: “Por que não experimentam prender as estrelas?” – indaga-nos. Querem melhor metáfora? Este pungente texto, como tantos outros que Heliodoro produziu, na sua tumultuosa vida, são a lídima expressão de uma voz singularíssima da nossa lírica, de um poeta que nunca abdicou do amor e da liberdade, de um poeta quizilento, se quisermos, mas que tudo o que escreveu, como queria Rui Knopfli, foram poemas de amor, aliás, apanágio de grandes poetas. Termina assim aquele poema que ele nos dedicou: “Não poder viver senão uma vida/ é como não viver.”
Poeta inconformado, está na primeira linha da lírica moçambicana. Sofreu, por muitos anos, o opróbrio da marginalização. Foi jornalista e contista. Para além dos títulos acima referidos, publicou, em 2005, “Nos Joelhos do Silêncio”, no qual retoma alguns dos seus temas electivos, entre eles a mitologia de Thandi. Ele sempre recusou o silêncio. Mesmo quando precavia os filhos: “Pode ser que tenha de regressar/ aos dias das mil ciladas. //Como a outros, na exactidão deste tempo, / nada é imune.”
A Beira deve-lhe o magistério poético. Quando recentemente foi criado um importante prémio literário na cidade indaguei-me se a ele não caberia tal homenagem. Grande parte da mítica da Beira passa por ele e pelos poetas que ele promoveu ou amparou, como Julius Kazembe (um dos melhores poetas da sua geração que permanece inédito em livro por abulia própria e nossa), ou Júlio Bicá, Bahassan Adamodjy e Simeão Cachamba (todos perecidos), ou ainda Filimone Meigos e Adelino Timóteo. É preciso desfazer essa omissão. É urgente tirá-lo do esquecimento e do ostracismo. Da marginalidade. Sobretudo combater a ideia de que ele teve culpa do destino que teve. Isso é transformar uma vítima em culpado. É injustiçá-lo ainda mais. Condená-lo duplamente. É urgente fazer a reparação que se impõe. O acosso permanece com este nosso oblívio, com esta preterição, com esta negligência. Heliodoro Baptista cumpriu a sua incumbência e não quis apenas ser complacente com injustiças, arbitrariedades, iniquidades: “Falo desta raça de homens cabisbaixos, / impotentes ante esta circunvalada forma / de estar, assistir, ocultar, permitir, / ser-se cúmplice de mortes sem perdão.” Isto é sedição? Isto é insurreição? Isto é rebelião?
Heliodoro foi sempre poeta do amor: “Dizem: tudo pode ser encontrado e redivivo / por dentro do amor”. O seu “grito vocabular”, mais do que um repto, é uma realidade. Amou a intrepidamente liberdade: “a fúria de amarmos a liberdade”. Foi sempre poeta do futuro: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre será”. Poeta irremediavelmente ecuménico: “Os continentes são da mesma raça. / Os homens do mesmo barro”.
Heliodoro Baptista, que morreu a 1 de Maio de 2009, à beira dos 65 anos, nascera a 19 de Maio de 1944, em Gonhane, Quelimane, passam hoje 80 anos. “Venho nu, o coração asceta, vago o rosto”, escrevera ele no poema belo “Cabeça-do-Velho”. A sua vida foi um constante desassossego. Sempre incompreendido. O seu desencanto perdurou até à morte. Não me lembro, no entanto, de o ver com acrimónia. Acreditava na condição humana. Aliás, a sua escrita e a sua obra divisam a condição humana. Era um amigo verdadeiro. A prisão, o isolamento e o acosso de sempre arruinaram o homem, mas nunca destruíram o poeta. Um grande poeta moçambicano. Um grande poeta africano. Um grande poeta da língua portuguesa. A sua poesia foi e é o que quis o poeta espanhol Gabriel Celaya, que ele apostrofa no seu último livro: uma arma carregada de futuro. Solitário, mas sempre solidário. Apátrida na sua própria pátria. Amou intransigentemente este país. O seu país. O nosso país. Como amou a sua musa Celeste e a sua prole. Como amou a liberdade. A liberdade livre. A liberdade de ser poeta e de ser cidadão. A liberdade de ser moçambicano. Até ao fim.
KaMpfumo, 19 de Maio de 2024
Como é público, decorre, de 15 a 17 de Maio, a Conferência Anual do Sector Privado, vulgarmente designado por CASP. Trata-se de uma plataforma de diálogo que representa o culminar do diálogo que inicia com a interacção entre os Pelouros da CTA e os Ministérios económicos e/ou transversais, onde as partes instituem equipes técnicas, que se debruçam sobre matérias relevantes que preocupam o sector. De três em três meses ou menos, essas matérias técnicas são levadas ao Ministro de Tutela para ter o tratamento julgado conveniente.
Isto ao nível central, mas o diálogo público-privado também está descentralizado, sendo que a CTA tem Delegações nos distritos e nas províncias, onde o diálogo acontece e versa sobre matérias de interesse local e específico. Essas matérias podem e devem ter solução local, sendo que as que, pela sua natureza, requerem a intervenção dos órgãos centrais, as delegações da CTA reportam aos pelouros e estes canalizam o assunto aos respectivos Ministérios.
No diálogo público-privado, foi instituído o CEMAN, que é um espaço de diálogo público-privado liderado pelo Primeiro-ministro da República de Moçambique. Trata-se de um evento que se pode considerar preparatório da CASP – Conferência Anual do Sector Privado. Neste espaço de diálogo, são discutidas matérias contidas na Matriz de diálogo e não só, para que a Conferência Anual do Sector Privado tenha como objecto fazer o balanço da Matriz entre o Sector Privado e o Governo do dia e fazer uma nova Matriz para o ano subsequente, elencando matérias que merecem o tratamento, nesse lapso de tempo.
Dito isto, o Diálogo Público-Privado parece uma plataforma que corre numa plataforma harmónica, mas não é bem assim. O Diálogo Público-Privado tem tido os seus solavancos, devido a matérias, muitas vezes, de difícil abordagem e sobre as quais, muitas vezes, o sector público não possui resposta, não propriamente por falta de vontade, mas por não possuir soluções à vista. Dou o exemplo dos raptos de empresários nacionais, que é um fenómeno que o sector privado, que é vítima, tem estado, de forma recorrente, a solicitar soluções ao Governo. Entretanto, os resultados não são palpáveis aos olhos de quem está fora do diálogo e não parece haver preocupação para estancar o fenómeno.
Nada disso, a complexidade do assunto e o facto de mexer com as instituições de soberania podem ser o “calcanhar de Aquiles” do problema. Repare que, para a resolução deste fenómeno, somente o sector público deve intervir, porque compete à Polícia da República de Moçambique manter a ordem e segurança públicas em Moçambique. Mas, de forma recorrente, esta instituição queixa-se de falta de meios para fazer face à crescente onda de criminalidade e sua sofisticação. Sem querer limitar esta reflexão à análise de raptos somente, trago como exemplo que o Sector Privado, através da CTA, tem estado a trabalhar afincadamente para a solução do problema, mas, aos olhos das pessoas, parece que nada se faz, sobretudo, quando se é vítima do fenómeno. Mas voltemos à XIX Conferência do Sector Privado.
XIX CASP tem um significado especial, tanto para o Governo como para a CTA
Esta XIX CASP tem um significado muito especial, primeiro, porque Moçambique vai a eleições presidenciais, legislativas e provinciais em Outubro de 2024, o que equivale dizer que, por parte do Governo de Moçambique, depois de Fevereiro de 2025, haverá novos “players” para o Diálogo Público-Privado, a começar pelo nível mais alto, que é o Presidente da República. Muitas figuras concorrem para esse posto de Presidente da República e não sabemos, ainda, qual será o desfecho. Contudo, esperamos que, independentemente de quem seja o próximo Presidente da República, o diálogo seja mantido, por se ter mostrado como uma plataforma útil para a melhoria do ambiente de negócios.
Dizer que o Diálogo Público-Privado não é algo institucionalizado ainda, por isso não vincula, de forma obrigatória, as instituições públicas. Ele resulta da vontade das partes, o que, na minha opinião, não é bom para o ambiente de negócios. O Diálogo Público-Privado deve ser oficializado, sendo que a sua operacionalização poderia depender do Governo do dia. Esperemos que o novo Governo o faça, bem como torne a CASP uma marca desse diálogo. Entretanto, consta que a CTA já avançou com a reserva do nome junto das instituições de direito.
Embora o Diálogo Público-Privado não tivesse um carácter obrigatório, devo dizer que o actual Presidente da República, Filipe Nyusi, participou das IX Conferências do Sector Privado e o único em que não participou é porque não se realizou, devido à COVID 19, por isso não se pode colocar em causa a vontade ou não de dialogar. Ele sempre esteve disponível, podendo se questionar os resultados, mas governar é como uma equipe de futebol de onze, quando a equipe não ganha, o culpado é o treinador e não os jogadores. No caso em apreço, Filipe Jacinto Nyusi é o treinador, o capitão é Adriano Maleiane, Primeiro-Ministro, e os jogadores são os Ministros!
Por isso, esta XIX CASP deve servir de despedida ao bom treinador da equipa, que é Filipe Jacinto Nyusi, ao capitão Adriano Maleiane e aos jogadores, independentemente, se foram bons ou maus jogadores. Igualmente, esta XIX CASP serve de despedida ao Presidente da CTA Agostinho Vuma, por ter cumprido os dois mandatos, como Presidente da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique.
Agostinho Vuma, Presidente da CTA, deixa legado à instituição!
Por ocasião do fim do seu mandato, como Presidente da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique, Agostinho Vuma pretende deixar um legado, através da sistematização do que foi o Diálogo Público-Privado, nos últimos 10 anos em Moçambique, curiosamente, o que equivale dizer que Agostinho Vuma irá deixar um espólio do seu mandato, que coincide com o mandato de Filipe Nyusi, Presidente da República. O sector privado, de um modo geral, espera com ansiedade esse espólio, sistematizado de forma cronológica e reduzido a LIVROS.
Mesmo para terminar, agradecer ao Governo de Moçambique, liderado por Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique, por ter estado muito perto do Sector produtivo nacional através da CTA e, igualmente, agradecer a Agostinho Zacarias Vuma, por ter levado a bom porto os interesses do Sector Privado durante estes 10 anos da sua Governação. Para os dois, Filipe Jacinto Nyusi e Agostinho Zacarias Vuma, ide em paz e estamos gratos pelo trabalho que realizaram em prol de um bom ambiente de negócios. Continuem nos inspirando nesta caminhada!
Adelino Buque
“Produtores de hortícolas e outros frescos no Regadio do Chókwè, em Gaza, clamam por uma indústria de conservação e processamento para rentabilizar a cadeia de valor de produção na região. Os agricultores afirmam que, por falta de indústria de processamento agrícola, anualmente, somam prejuízos enormes com a deterioração de grandes quantidades de produção. Entretanto, o Administrador Distrital de Chókwè, Eceu Muianga, tranquiliza os camponeses com a promessa de retoma, ainda este ano, das actividades do Complexo Agroindustrial de Chókwè que garante absorver grande parte do tomate cultivado na área”.
In Jornal Noticias Edição nº 32.233 de 09 de Maio de 2024, primeira página.
Confesso que tudo o que se refere à produção agrícola, independentemente do local de produção, me cativa e me enche de curiosidade, por isso, quando vi o título “Agricultores pedem fabrica de processamento”, fiquei curioso e, depois da breve leitura, voltei a reler, para perceber se não estava equivocado. De acordo com o Jornal Noticias, os agricultores dizem somar enormes prejuízos, por falta de uma indústria de processamento. Na minha opinião, uma matéria destas merece um tratamento mais aprofundado, sobretudo, quando se sabe que, nessa região, tivemos várias indústrias de processamento que, por razões diversas, pararam de laborar.
Aqui, não uso a expressão “faliram” para não suscitar debates desnecessários. O que é facto é que a nova fábrica de Chilembene, salvo erro, não chegou a laborar em pleno, por falta de matéria-prima e as informações veiculadas na altura prendia-se com os preços que os agricultores queriam do seu tomate que não era compatível com os preços para o tomate para a indústria. Ora, se este entendimento não existir, provavelmente, o Administrador pode fazer promessas de que amanhã será cobrado e, eventualmente, terá dificuldades de dar resposta que satisfaça os referidos camponeses!
Por outro lado, é importante que os agricultores ou camponeses estejam conscientes de que o produto para processamento não é propriamente refugo ou rejeito do consumo fresco, pelo que a produção deve estar virada para esse fim industrial e com preços muito mais baixos que a produção para consumo de tomate fresco, mais para a indústria. O industrial deve dizer qual a variedade que lhe interessa, não pode o agricultor ou o camponês produzir o tomate de uma variedade do seu gosto e querer que a indústria consuma!
Ora, faço esta reflexão de forma emocional porque, durante largos anos da minha vida, trabalhei na região de Chókwè, na aquisição de vários frescos para a empresa onde trabalhei e trabalho. Aqui não falo por suposição, falo com conhecimento de causa. O meu colega farta-se de contar a história dos agricultores desta região e alguns dirigentes da mesma. Fala, por exemplo, de um dirigente que se queixou ao Presidente Samora Moisés Machel, na altura, dizendo que o tomate estava a apodrecer em Chókwè. O meu colega mandou um camião cavalo para resolver o problema e o camião cavalo regressou de Chókwè com menos de duas dezenas de caixas. Não havia tomate apodrecendo ali!
Exercício de Compra de Tomate em Chókwè!
Pessoalmente, durante mais de três campanhas, fiz parte de uma equipa interessada no tomate de Chókwè. Na nossa equipa integravam pessoas em representação da indústria de massa de tomate, que tinha uma exigência específica, indústria de processamento do tomate inteiro, cujas exigências são outras, o tomate fresco, com outras exigências e as variedades, igualmente, devem ser diferentes. Por exemplo, para a conserva de tomate inteiro, é uma variedade diferente do tomate para massa, o nível de maturação também é diferente. Estarão os camponeses e agricultores preparados para esse tipo de produção?
Eu não conheço o Complexo Agro-Industrial de Chókwè, mas trabalhei com o Complexo Agro-Industrial do Limpopo. Fazia o processamento do tomate, mas quem garantia a produção para esse processamento não eram camponeses, nem a Cooperativa dos Heróis Moçambicanos que, na altura, tinha um nível de produção comercial, eram as empresas do Estado que faziam essa produção.
Depois do Complexo Afro-Industrial do Limpopo, creio ter ido a LOMACO, cuja estadia durou o tempo que durou e teve grande entrave na sua produção, devido ao mercado. Os últimos lotes de produção comercializável foram de massa de tomate em latas de 5 kg, essas latas de tomate, devido a formas de conservação, causaram um enorme alvoroço na Baixa da Cidade de Maputo. Num dia de calor, as latas começaram a rebentar, as pessoas, que não sabiam do que se tratava, começaram a correr em debandada. Felizmente, não durou muito tempo e o pânico ficou controlado e foi reposta a tranquilidade pública.
Por isso, julgo que para reportar assuntos de agricultura, numa região como Chókwè, é preciso dispor de muito tempo. Não basta ouvir o choro do agricultor ou camponeses, não basta ouvir o representante do Estado, é importante ouvir quem vai colocar a “mão na massa” no caso a referida Empresa, Complexo Agro-Industrial do Chókwè, sob pena de fazer-se promessas não exequíveis. Mas valeu, deu para produzir esta reflexão que julgo ser de alguma utilidade para quem queira enveredar por este tipo de negócios.
Adelino Buque
Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.
Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.
Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.
A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.
Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”
Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.
Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.
O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.
Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.
Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.
Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.
Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.
Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.
À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.
Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.
Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.
A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.
As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.
Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.
Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.
Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”.