Deus disse a Moisés, vai ao Egipto libertar os meus filhos presos nas masmorras de Faraó! E Moisés retorquiu: Deus, como é que hei-de ir libertar os Teus filhos, eu sou gago! E Deus retumbou: quem te deu a gaguez sou Eu! E ainda disse mais, Jehová: tu não precisarás de falar, abre apenas a boca, quem vai falar é o teu irmão, o Arone!
Mesmo assim, com as palavras irreversíveis do Leão de Judá, Moisés oscilou no silêncio da planície onde, ao som do doce zumbir das abelhas produzindo mel, apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Mas Deus o tinha escolhido, era a ele que recaía a missão de rebentar as correntes da escravidão do povo, pisado e torturado e humilhado e cuspido na dignidade. Então Deus retumbou: deixa cair esse cajado que trazes na mão! E Moisés largou o cajado, que se transformou em serpente.
E Deus, do pedestal da Sua plenitude, observava o Seu servo tremendo perante o gigantesco réptil que o atacava. Moisés vacilou em movimentos trôpegos em gritaria, e logo a Voz dos Céus bramiu do meio da sarsa: pega a serpente pela cauda! E Moisés obededeu, e a serpente retornou ao seu estado de cajado. E Deus trovejou pela últim vez: agora vai libertar os meus filhos!
Nunca tivemos antes, a necessidade urgente de que amanheça, não para escutar a música que brota da orquestra dos pássaros, mas para guerrear com as nossas próprias canções de luta. Nunca antes, tivemos tanta certeza de que a hora já chegou para que a chuva caia nos campos e regue a terra e as sementes brotem retumbantes. Nunca!
Mas a hora já chegou. De rebentarmos a cangarra colectiva de todos nós. Chegou a hora de dançarmos perante os nossos verdugos. E na verdade vamos dançar sem as grilhetas nos pés, as novas danças do novo amanhecer que já desponta na aurora das gaivotas. Aí sim, a nossa marcha não voltará mais para trás. Recusamos a continuar alagados de sofrimento como pássaros engaiolados. Não queremos mais que as nossas canções sejam de melancolia.
É isso! A hora já chegou! De enfunar as velas da nossa liberdade. De convocar todas as nossas energias e abrir o peito em desafio às balas daqueles que nos subjugam. Somos as ondas imparáveis do Índico, que se esbatem na terra e voltam a esbater-se na terra, sem parar. Vão se esbater sempre, até que amanheça.
É essa a nossa luta. Queremos dançar em liberdade e em paz, o nosso Nyau e o mapico. A nossa timbila e a makharra. O nosso xigubo e o n´fena. A nossa Maphandza e o golomondo. O nosso tufu triunfante em Muhipiti!
Nós vamos guerrear com as mãos nuas até que as árvores do medo tombem. Todas elas. Queremos amar em liberdade as nossas mulheres. Fazer filhos com sonhos da sua própria terra. Usufruir de todo o maná que se estende na superfície e no mar e debaixo dos solos. Queremos isso para todos nós. Então deixem-nos passar. Este país é nosso!
Não chove em noite de lua cheia. É um saber secular, nem por isso, enciclopédico. Endogeneidade conceptual que transforma o comum em algo super natural. Mas os tempos mudaram, as vontades também. Agora, chove desregradamente. Noutros tempos, a chuva, em jornada solarenga, até simbolizava casamento de macacos. Eles próprios se apadrinhavam, e contemplavam o doce sabor arco-íris.
Encontrei o velho Nahota Mustafa, ainda imperial, absorto em seus pensamentos, descrente da vida e desconfiado dos tempos. Debutamos nas saudações, nessa expedita e metódica forma de reencontros, com as cordialidades costumeiras. Aprimoramos os rituais e as apologias à paz, na gentílica praxis Namúli, tão adulterada pelos tempos.
A saudação continua um procedimento que revela respeito e cordialidade; segue os preceitos e, de forma hábil, auxilia a dirigir a conversa para o objectivo que pretendemos. Na Ilha, por tradição, os critérios hierárquicos definem as normas do respeito e da fraternidade.
Nahota, ou comandante do Dhow, esse milenar barco à vela, quem sabe oriundo do Omã, lá no médio oriente, e que galga as ondas pela nossa costa, também, vive intrigado com a natureza. Esmiúça suas esperanças para contemplar a serenidade do mar, os dias carregados ou vazios de tudo. São as águas que oferecem os frutos para a colheita, ventos para a sementeira, nesse movimento de ondas sobre as quais transbordam as saudades. Ele vê a sua Ilha, aqui onde Luís de Camões, poeta sénior português, também, naturalizado residente, foi celebrado nos seus 500 anos. Nenhum outro lugar fora das fronteiras de Portugal se importou, tanto com ele.
Esta Ilha perdeu a sua graça e resvala agora em novas inquietações e mistérios. Nahota, continua incrédulo e contempla o oceano que deixou de ser tudo até a infelicidade felicidade. Ele se preocupa com a tecnologia avassaladora, pois, ninguém mais precisa do seu conhecimento. Os seus ajudantes vivem presos ao celular; dominam a previsibilidade; se recusam fazer ao mar em dias de tempestade. Sequer sabem contar os números dos passageiros, pela ganância de mais uma moeda ou uma nota de pequeno valor. Esta é a crueldade dos novos tempos.
Nahota também diz que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra”. Já vimos isto escrito em livros de José Saramago. Para ele, o fim da viagem parece ser o fim da história. Todos os dias, ele testemunha muitos centímetros de areia que desaparecem nas praias cristalinas. Os sintomas climáticos que um dia podem afundar a sua ilha. Incomoda que não existam mulheres pilotando embarcações, apesar da ilha receber mulheres conduzindo viaturas todos os dias. Afinal, por onde anda essa emancipação?
Os Dhows, essas incontornáveis embarcações que, ainda, sobrevivem os tempos e as adversidades, transportam pessoas, bens e sonhos, perdurando no imaginário e nas esperanças mais imediatas dos insulares. Sem eles a vida terminaria. Eles são o valor de oxigénio para a sobrevivência da ilha e dos seus habitantes. Junto das areias das praias operam os estaleiros de construção destes Dhows. Nahota acha que já não existem mestres. A sabedoria de construção desaparece todos os dias. Os barcos e as suas madeiras são duvidosos.
Para a construção dos Dhows, os instrumentos utilizados são exclusivamente ferramentas manuais, desgastadas pelo tempo, mas, ainda assim, tão úteis quanto funcionais. Trabalham com madeiras nobres como o Mogno, a Teca e até a madeira da mangueira e do coqueiro. Tudo à volta serve. As cordas são feitas de cascas do fruto do coco, que permanecem dentro água, durante mais de três dias, para depois virarem cordas resistentes que asseguram que as partes amarradas permaneçam sólidas e coesas. Esta é uma corda que nenhuma tecnologia consegue superar. A cola é, igualmente, feita das cascas de árvores e é tão efectiva quanto segura. A cada esquina tem meia dúzias de artesãos, feitos Mestres, que estruturam sua organização social e económica, em boa parte, na construção e utilização destas embarcações.
Quase toda a actividade piscatória da Ilha, e das localidades da costa, Lumbo, Mossuril, Cabaceiras, Lunga e etc. é feita com recurso ao Dhow. Também eles fazem a navegação de cabotagem para o transporte de passageiros. Transportam a história da glória, da heroicidade e dos desígnios de um litoral que deu vida ao continente e reconfigurou sonhos de viajantes e exploradores, traficantes, religiosos, falsificadores e piratas.
Nahota anda preocupado pois estas embarcações, agora, também transportam os noivos e seus familiares entre gentes de Zanzibar e as belas macuas miscigenadas da sua Ilha. Casamentos misteriosos que todos conhecem e ninguém comenta; fingem desconhecer. Ele confirma que existem dezenas de moças casando com jovens de Zanzibar e que viajam indocumentados ao cair da noite. Quem sabe até candidatos à insurgência.
Ninguém sabe ao certo de onde vieram os Nahotas. A Ilha de Moçambique, esse ponto de encontro de poetas e escritores, reinventou-se para a sua sobrevivência, abrigando alguns desses artistas, enquanto outros se dispersaram Norte a cima ou Sul abaixo. Os Nahotas são as marcas e o orgulho do cruzamento de civilizações e culturas. Eles representam técnicas de construção naval suaílis, árabes que criaram os entrepostos e, com eles, a miscigenação tecnológica.
Ao longo dos anos, poucos se preocuparam em documentar ou assimilar a técnica de fabricação dessas embarcações, o que transformou aqueles que detêm esse conhecimento numa verdadeira elite. Uma espécie de conhecimento que passa de pai para filho e de filho… para mais ninguém.
Estes Nahotas continuam os maiores conhecedores dos tempos e dos espaços, são responsáveis por edificar estas conexões e perpetuá-las ao longo dos séculos. Através das suas embarcações, os Nahotas registaram segredos inconfessáveis. Se no passado, eram as pessoas mais respeitadas, o presente lhes virou as costas. Hoje, eles vêem seu prestígio esmorecer, sendo ofuscados pela modernidade.
Nahota controla todo o processo de construção da sua embarcação. De forma discreta, revela confiança para deixar a equipa trabalhar, porém ao mesmo tempo a insegurança que os novos tempos propiciam. Com as falsificações, ele sabe que podem trocar as melhores peças de madeira e colocar em risco o seu Dhow. Manter a chama da técnica e da mestria preservada não é apenas garantir que o Dhow jamais desapareça, mas é o assumir que a economia da costa se mantenha intacta.
Ele e o grupo de amigos e operadores das embarcações falam sobre as mudanças climáticas, noutros termos, como uma pura invenção política e distante do que sempre foi uma realidade naquela parcela do litoral. Eles assumem que as campanhas políticas, nem sempre, se preocupam em explicar essas mudanças. Porém, quando se assumem na governação, então, justificam tudo, ou quase tudo, como fazendo parte do pacote dessas mudanças. Depois, tiram partido para explicar os ciclones naqueles longos comícios que tem mais de palmas do que conteúdos.
Se os ciclones sempre existiram, então, porque, agora, são mudanças climáticas e não ciclones? Ao longo da vida sempre experimentaram ciclones e essa foi a definição. Os mestres dos mares, com suas habilidades e conhecimentos únicos, exigem uma comunicação diferente para serem convencidos. Os Nahotas consideram-se possuidores de poderes especiais, que transcendem a compreensão comum e funcionam como uma reserva científica e climática para a população em geral.
Para todos Nahotas, as mudanças climáticas seriam uma mitomania que gera testemunhos invertidos inverídicos e desafortunados. Mas, se por um lado estão preocupados com essas mudanças, por outro, vivem o stress de uma pesca cada vez menos abundante e difícil. Por conseguinte, a pesca esta longe de ser comparada aos bons e áureos tempos, onde a ilha tinha peixe de sobra para as famílias locais e para a revenda noutras paragens.
Todos os anos, argumentam, as águas, endiabradas e sem escrúpulos nem generosidades, galgam e cavalgam precisos centímetros das suas praias. A este fenómeno lhe foi explicado que correspondia ao avanço do mar sobre a terra. Mas, se interroga, porque razão o mar não roubava a terra antes? Tive de explicar que esta é a batalha que o planeta perdeu. Os pecados que a terra e os homens começam a pagar em vida. Uma espécie de inversão de valores. Sentido contrário da natureza e do próprio mar, nas suas mares mais altas.
A nossa conversa se estendeu pelos ventos. Nahota Mustafa acha que os ventos estão, no mínimo, estranhos e indereccionados. Seguem sentidos esdrúxulos e despojados de bom senso. Trocam de velocidade e direcção sem que se faça um sualat no interior do Dhow. Como observou Chinua Achebe “a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.
Falamos da sazonalidade de espécies de peixe que viravam sazonais. Os grandes cardumes migram e procuram outros espaços. Nesta época, a pesca reduzia e os cardumes fintavam as redes de pesca. Sem ventos seguros e nem pescado, as carências deixam os pescadores, e todos os Nahotas, sem o menor sentido de racionalidade e muito menos de sustento. Eles não entendem se as suas vidas se fazem de política ou religião, ou se nenhuma delas. Instala-se, então, a desilusão, e a fé e a esperança são esvaídas.
Nestas explicações, prestei atenção ao canto das mulheres que aproveitam a maré vazia para colectar crustáceos. O seu canto tem tanto de melancolia como se desespero. Falam de jovens que partiram mais para o Norte e nunca mais regressaram. Mas, também, falam sobre os filhos que não aprendem o essencial na escola. Comenta-se também sobre os jovens que bebem incessantemente durante os finais de semana, começando na noite de quinta-feira e só parando no domingo. Os seus filhos bebem de tudo possível e imaginário; vorazes consumidores. Elas desencontram esse sustento e usam o tempo para ensaiar novas melodias e asseguram que precisam de repetir às canções. Os tempos difíceis oferecem temáticas inesgotáveis. As vozes são afinadas e libertam as suas emoções e almas. ‘Quem canta seus males espanta’.
Como escreveu o poeta e filósofo Rainer Maria Rilke, “O futuro entra em nós, para nos transformar em algo que ainda não somos”. A tarde se esfumava lentamente, ameaçando desaparecer com o crepúsculo, cujas cores vibrantes iam do laranja à púrpura, tingindo o céu com tons tão profundos quanto os pensamentos de Nahota Mustafa. Ele queria continuar a conversa, mas não parecia convencido pelas minhas explicações, talvez achando minhas palavras tão efémeras quanto o vento que soprava ao longe.
Eu, que não sei prever os ventos do dia seguinte, sentia o peso de sua desconfiança, pois ele, com sua experiência milenar, sabia ler o tempo e entender a linguagem oculta da natureza. Por isso, duvida da minha capacidade de falar sobre os tempos que virão, as dificuldades que o país enfrentará, e os ventos que, segundo seus instintos, serão mais fortes e constantes.
Dou exemplos, tentando ser didáctico, mas percebo que ele finge acreditar. Seus olhos, que se perdem de forma vigilante no horizonte, revelam a verdade de sua descrença. Ele vê além das minhas palavras e sente o que eu não consigo prever – os sinais da natureza que sempre foram seu guia. Nahota, com sua sabedoria enraizada nos ciclos do mar e do vento, percebe que o futuro, tão incerto para mim, para ele está escrito nas águas e nas brisas que, sem erro, moldaram sua vida e a de seus antepassados.
Teríamos de interromper para que ele pudesse regressar à Mesquita, a Masjid, em busca de reconciliação com Allah. Contudo, aquela casa de oração havia sido alvo de novas regras, e muitos dos sermões já não traziam o apelo nem a convicção de outrora. Os jovens, que estudavam no estrangeiro, voltavam falando de outras escrituras sagradas, levantando questionamentos que antes não faziam parte da rotina daquela comunidade. No entanto, a fé ainda permanecia firme, como a última esperança de que os tempos pudessem, de alguma forma, regressar à normalidade.
Hoje, a segurança marinha tornou-se essencial. Estes experientes comandantes de Dhows, que carregam consigo os sonhos e o sustento de tantas comunidades costeiras, precisam agora estar mais atentos do que nunca aos procedimentos de segurança e outros cuidados necessários. As exigências sobre os Nahotas vão além do conhecimento tradicional, requerendo novos saberes sobre como proteger vidas nas águas oceânicas, onde os riscos estão sempre à espreita. Pilotar um dhow continuará sendo o privilégio de poucos, mas a sobrevivência e bem-estar de muitos dependem dessa habilidade.
Moçambique vive um cãos político e social, bem como um cenário de violência e brutalidade policial contra os cidadãos indefesos, nos últimos dias, em particular, desde o bárbaro assassinato do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, na madrugada do dia 19 de Outubro corrente, num contexto de crise político eleitoral, aliás, considerado de excessivamente fraudulento por vários actores políticos, sociais e em especial pelo povo, concretamente os jovens e grupos mais pobres da sociedade moçambicana.
Sem vergonha, nem ética profissional e respeito pela dignidade humana que deve caracterizar a Polícia da República de Moçambique (PRM) e as Forças de Defesa e Segurança (FDS), a Polícia está, intencionalmente, de forma recorrente e firme, a praticar execuções sumárias, ameaças, agressões físicas, detenções arbitrárias, baleamentos, com recurso a armas de fogo e uso de gás lacrimogéneo contra os cidadãos indefesos, independentemente de se tratar de manifestantes ou de estarem em situação de manifestação contra os resultados eleitorais e contra o hediondo homicídio do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, respectivamente, mandatário do candidato às eleições presidenciais, Venâncio Mondlane, e mandatário do Partido PODEMOS.
Simultaneamente, os manifestantes do Partido no Poder, a FRELIMO, nas suas marchas de celebração da alegada vitória eleitoral, gozam, não só de plena e forte protecção das instituições da Administração Pública e da justiça, como da forte e incondicional protecção policial. Em bom rigor, a Polícia até usa balas verdadeiras e envereda pelo uso desproporcional do gás lacrimogéneo para dispersar e afugentar os filhos “ilegítimos” de Moçambique, o povo pobre e vítima da má governação que contesta os resultados eleitorais e os assassinatos supra referidos, para não atrapalharem a celebração dos alegados vitoriosos destas eleições gerais, a FRELIMO e seu candidato à Presidência da República, conforme ficou evidente no passado fim-de-semana, com destaque para sábado, dia 27 de Outubro corrente, sobretudo no Distrito de Mecanhelas, na Província do Niassa.
Em menos de uma semana a Polícia exibiu e praticou em demasia a violência e brutalidade policial, sem qualquer tipo de impedimento ou de chamada de atenção por entidade competente, seja de sua gestão ou direcção, seja da fiscalização interna e externa da sua actuação.
Mais do que isso, é que a Polícia avisou, publicamente, que vai repelir qualquer tentativa de manifestação e decretou tolerância zero contra o exercício da manifestação, o que veio a acontecer. Mas nenhuma instituição de justiça tugiu ou mugiu para impedir qualquer acto de barbaridade contra os cidadãos ou violação dos seus direitos e liberdades fundamentais. Curiosamente, a prática ensina que repelir e tolerância zero para a Polícia significa violência e brutalidade policial que se traduz em execuções sumárias, ameaças, agressões físicas, detenções arbitrárias, baleamentos, com recurso a armas de fogo e uso desproporcional de gás lacrimogéneo contra os cidadãos indefesos.
A PRM e as FDS violentam e brutalizam os cidadãos em geral, com a excepção dos “cidadãos” da FRELIMO, perante inércia tanto das instituições de justiça, como da direcção desses órgãos de Polícia e segurança do Estado, com destaque tanto para o Presidente da República, na qualidade de Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança e garante da Constituição da República, por um lado, como para o Ministério Público, enquanto garante da legalidade e detentor da acção penal, em especial em crimes públicos como os praticados pela Polícia. A Comissão Nacional dos Direitos Humanos e o Provedor de Justiça são as outras instituições relevantes que devem, dentro das suas atribuições e competências legais, tomar posições sérias e agirem de forma firme, contundente e urgente contra a actuação da Polícia.
Se assim aconteceu e está a acontecer, então o presente artigo coloca as seguintes questões: Quem controla os agentes da PRM e FDS para actuarem dentro do quadro constitucional em vigor em Moçambique? Quem efectivamente responsabiliza a PRM e FDS pela violência e brutalidade policial contra os cidadãos? Será que a resposta está a ser empurrada para a prática da justiça popular ou justiça pelas próprias mãos?
Portanto, parece que se está perante um Estado Polícia em que a PRM e as FDS controlam o Estado a seu bel-prazer e se sobrepõem a quaisquer outros do Estado, incluindo os órgãos de justiça, nomeadamente o Ministério Público e os Tribunais que demonstram temor reverencial em responsabilizar a polícia pela violação dos direitos, liberdades e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público
Ao segundo segundo dia de paralisação geral, manifestações e confrontos entre populares e as unidades de Intervenção Rápida (UIR) e de protecção da Polícia da República de Moçambique - Maputo, Matola e outras cidades capitais do país sofreram um apagão no serviço de internet móvel. O apagão ocorreu ao princípio da tarde de ontem, sexta-feira (25), e prevaleceu para além das primeiras horas de hoje, sábado, no fecho desta edição. O serviço foi restabelecido ao nascer de um tímido sol desta esta manhã. Subitamente. Tal qual foi desligado, por ordem política.
O facto de haver concorrência para o cargo de Prresidente da República significa o reconhecimento implícito do pluralismo político no país. O pluralismo, na sua essência, não significa que quem pensa diferente é, por inerência, contra os outros. Significa apenas que essa pessoa tem desejos e anseios diferentes, mas que têm o bem comum no centro das suas preocupações. A diferença de opinião é, no fundo, a celebração da força vital que percorre as veias de Moçambique e faz do país um espaço verdadeiramente histórico, isto é um espaço de aprendizagem, de mudança de opinião e de adaptação. É frágil toda a nação que depende da unanimidade para justificar a sua existência.
Levou muito tempo para entendermos a importância do reconhecimento do pluralismo. Na verdade, o reconhecimento é apenas formal. Ainda falta muito para interiorizarmos a sua importância para o devir do país. A forma como a Luta de Libertação foi narrada produziu no imaginário dos principais actores políticos não só a ideia de que a unidade de propósitos era crucial para se lograr a independência como também alimentou o sentimento de que pensar a independência de forma diferente era pôr em causa o próprio projecto de independência. Joana Simeão e Uria Simango são alguns dos exemplos mais destacados de moçambicanos que pagaram com a sua vida o preço dessa narrativa.
A abertura formal do sistema político não mudou significativamente esta maneira de pensar. A polarização criada pelas circunstâncias em que se chegou à abertura do sistema político fez com que todas as forças políticas continuassem a privilegiar uma narrativa política alicerçada na ideia de que quem não está connosco, está contra nós. Parte da criminalização do Estado que caracteriza Moçambique hoje explica-se desta maneira. Foi porque a governação foi cada vez mais vista não apenas como gerir o país, mas sim como gerir o país de modo a impedir que qualquer outra força política algum dia cheirasse o poder. As redes neo-patrimoniais que isso alimentou não tinham necessariamente como objectivo garantir o assalto privado aos recursos públicos. Tinham como objectivo concentrar tudo nas mãos daqueles que se consideravam – na verdade, que se consideram – os únicos com legitimidade para governar o país no melhor interesse de todos.
Daí que parte da sua estratégia política tenha também consistido no enfraquecimento da oposição. O uso consequente da força da lei para limitar os movimentos da oposição, o abuso da maioria parlamentar para ignorar os pontos de vista da oposição, a inviabilização económica e financeira da oposição através da concentração dos recursos do Estado no partido no poder, tudo isto configurou um cenário parecido com uma estratégia consciente de trivialização do pensamento diferente. As únicas concessões feitas foram as que se tornaram necessárias para não levar a oposição – sobretudo a oposição armada – ao abismo do desespero como aconteceu amiúde com o malogrado líder da Renamo.
É neste contexto que o Artigo 74 (Partidos políticos e pluralismo) se reveste de muita importância. Ele contém duas disposições: 1. Os partidos expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país; 2. A estrutura interna e o funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos. A primeira disposição constitui não só um reconhecimento do próprio pluralismo como também é uma instrução para que quem governa o faça com atenção para o facto de que as pessoas que nele votaram são apenas uma parte do pensamento diverso que faz o nosso país. A implementação prática dessa instrução consiste em criar condições para que as decisões governamentais beneficiem sempre da assessoria que a crítica que vem da oposição presta. Consiste também na integração da oposição no Estado – não por via de postos diplomáticos – mas sim por via de responsabilidades de gestão de instituições públicas. Acima de tudo, a implementação requer que quem governa abandone o hábito nutrido pela Frelimo de criar grupos de choque na esfera pública, cuja única função é implicar com que diz o que pensa.
Só é guardião da verdade encontrada na constituição quem está aberto ao pensamento diferente e sabe nutri-lo.