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sexta-feira, 04 junho 2021 07:03

Cabo Delgado: "É preciso parar a guerra"

Em entrevista ao Esquerda.net, o historiador Yussuf Adam diz que, “naturalmente, a situação em Cabo Delgado tem a ver com o imperialismo e com o capitalismo”. E alerta que, independentemente das discussões ideológicas, "se não pararmos a guerra, não teremos nenhum sucesso”. Por Mariana Carneiro.
 

Em entrevista ao Esquerda.net, Yussuf Adam, que se assume como um militante da Frelimo, sem cartão, “desde outros tempos”, demarca-se da linha oficial definida e defende que as estratégias de desenvolvimento pós-colonial adotadas pelo partido foram, essencialmente, “formuladas a partir de uma base ideológica ou política, sem ter em conta a realidade socioeconómica de Moçambique”. E que não tiveram “em conta os interesses dos camponeses e operários que a Frelimo identificava como a base social da revolução”.

 

De acordo com o historiador, os projetos de investimento associados à extração de recursos naturais “foram feitos sem qualquer preocupação com a melhoria das condições de vida das pessoas”.

 

Yussuf Adam deixa um alerta: “É preciso encontrar mecanismos para que não haja mais guerra”.

 

Em entrevista ao Público, afirmavas que “a presença de grupos islâmicos zangados com o Estado em Cabo Delgado é antiga”. Referias ainda que, no tempo colonial, houve bastante repressão e que, desde 1964 e até ao 25 de Abril, muitos foram mantidos presos em Ibo e outras ilhas. E dizias que, depois da independência e até ao fim do período da Frelimo como partido único, a relação com as religiões manteve-se muito difícil, especialmente com o islamismo.

 

Bem, primeiro quero deixar claro que penso que o facto de terem arranjado uma conotação religiosa ou étnica para esta revolta, para esta guerra, como lhe queiras chamar, é um recurso a um artifício simplificador e auto-legitimador dos que estão no poder.

 

A maior parte das pessoas que integram a insurgência são locais. Há mwanis, macondes, angonis, etc, envolvidos na insurgência. E tens cristãos, católicos, muçulmanos, protestantes e mesmo animistas. Portanto, este é um problema que está muito para lá de uma questão religiosa. Centrar a discussão das causas dos ataques na religião ou nas diferenças étnicas é redutor. Temos os ovos todos para uma omelete de violência.

 

Ainda que existisse uma diferenciação social, em Cabo Delgado houve sempre uma ligação entre os povos do litoral e os povos do interior. As pessoas da costa iam para o interior vender o que produziam, essencialmente peixe e sal. E os do interior forneciam-lhes cereais: milho, mexoeira, mapira [sorgo]...

 

Em famílias extensas de Cabo Delgado, consegues encontrar várias misturas de etnias, muitas vezes por questões de negócio, de cores e classes.

 

E as misturas em Cabo Delgado não são só de sangue, são também de religiões. Há práticas que já se confundem, que se harmonizam. Não vale a pena procurarem purezas étnicas ou religiosas na província.

 

Por outro lado, é natural que existissem problemas religiosos, mas eles são muito antigos. Basta lembrar, por exemplo, que o Frei João dos Santos [frade português] veio para Inhambane em 1586, depois saiu na altura em que Portugal estava ocupado pelos espanhóis, foi até ao Sena, e, entretanto, subiu e chegou ao Ibo. Uma das malandrices que ele fez foi proibir que as mulheres cristãs e as mulheres muçulmanas se encontrassem. E uma das suas coroas de glória foi ter queimado a mesquita de Sofala. Noutro momento, proibiu uma flotilha de barcos todos engalanados que vinha da ilha do Matemo para celebrar a circuncisão do filho do notável do sítio. Não estou a dizer que foi sempre assim, mas existiu uma certa repressão ao longo dos tempos.

 

Quando tiveste, pela primeira vez, indícios de que existiam grupos islâmicos que se distanciavam da comunidade muçulmana local?

 

Os indícios da existência de grupos islâmicos que se distanciavam da comunidade muçulmana local não são novos. Para te dar um exemplo, em 1985, quando fui passar a lua de mel a Pemba, fui abordado por um grupo de dez homens vestidos à sheik. Eles pediram-me ajuda, porque os filhos tinham sido presos pela tropa, acusados de terrorismo. Um dos jovens ficou sem uma perna. Na altura, explicaram-me que existia um grupo que os estava a acusar de praticarem um islão que não era correto. Nenhum dos meus contactos em Pemba tinha informações sobre o ataque da tropa. Quando cheguei a Maputo, também não consegui qualquer informação. Mas havia ali já algo a ferver em 1985.

 

No pós-independência, a tensão em torno do direito à terra terá contribuído para o escalar dos conflitos?

 

Os processos de reassentamento ao longo dos anos, desde o período colonial, passando pela independência, até à atualidade, traduzem-se em contradições geradoras de revolta.

 

No pós-independência, aqueles que regressaram da luta armada na Tanzânia, e queriam regressar às suas “antigas moradas”, viram as suas terras já ocupadas por outras pessoas. A Frelimo disse-lhes que tinham de ir viver nos sítios demarcados. Um dia fui visitar a aldeia de Namenda, no meio da qual passava água, e eles disseram-me que estavam tramados, porque tinham ordens do partido para ir viver lá em cima. Tiveram de abandonar a zona onde estavam e ir para junto da estrada, para as famosas aldeias comunais.

 

Surgiram vários conflitos neste processo, inclusive religiosos. As aldeias eram chefiadas pelo seu presidente que, supostamente, não podia ter religião. O feiticeiro, o homem da igreja católica, o muçulmano, etc. só podiam construir as suas casas na última fila. No centro da aldeia ficava o presidente da aldeia, que era o representante do partido.

 

E havia a questão dos “fabricantes de leão”[1]. Eu segui alguns casos e eram, de facto, de partir o coração. Num dos casos que estudei, o senhor acusado de ser “fabricante de leão” explicou-me que, na origem do conflito, estava a sua terra. “Essa terra é minha. Sempre foi minha, e eu quero-a de volta. Tenho direito a ela”, dizia-me. Durante a luta armada, a Frelimo disse-lhe que era preciso fazer unidade, que ele devia deixar os outros usarem a terra e quando acabasse a guerra recuperava a sua propriedade. Mas a pirâmide social mudou com a guerra. Os grupos que estavam mais em baixo subiram, e os que estavam em cima desceram. Um dia pegaram neste senhor e levaram-no de aldeia em aldeia, chicotearam-no em público para toda a gente saber que ele era “fabricante de leão”. E surgiram tantas outras histórias de “fabricantes de leão”. Ao matar um “fabricante de leão”, a pessoa não está sujeita à área criminal. É uma questão religiosa e de feitiçaria. Não matou uma pessoa, matou um animal. E depois, quando vamos lá ver, era uma senhora ou um senhor. E o que é que ele tinha de bom? A terra. Uma terra preta, fértil.

 

Uma vez, o professor João Carlos Trindade estava em Palma no tribunal, e apresentaram-lhe um caso. Ele olhou e disse que a legislação era clara. Tratava-se de um homicídio, tinham de os acusar e julgar. Os funcionários explicaram que quem “caçou o leão” foram o notário da aldeia, o chefe da assembleia, o primo de um general… Este esquadrão da morte era constituído por gente poderosa.

 

E a evolução do quadro socioeconómico e político em Moçambique após a independência veio agudizar cada vez mais os problemas na província?

 

Por vezes, parece que não olhamos para o processo histórico de desagregação dos movimentos nacionalistas que assumiram o poder em países como a Guiné, Angola ou Moçambique. E essa desagregação fez-se de várias maneiras. Uma delas é a perda de legitimidade.

 

Se leres o meu livro “Escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca do leopardo: trajectória de Moçambique pós colonial (1975-1990)”, que está disponível na internet, tens lá, na página 389, a reprodução de uma história oral de um presidente de aldeia em Mueda.

 

O testemunho ilustra as contradições no seio das estratégias de desenvolvimento pós colonial, que geraram ressentimento e criaram um ponto de entrada para a Renamo. Devido às suas posições políticas, alguns indivíduos ou grupos de indivíduos beneficiaram mais da independência do que outros. Isto não é uma coisa nova. Existiram vencedores e vencidos.

 

Na minha opinião, depois da independência, houve toda uma série de complicações. Costumo dizer que movimentos de violência extrema começaram a existir muito cedo. A Frelimo também era um movimento de violência extrema. Entretanto, tivemos a Renamo, que tentou entrar pelo Sul, pela zona de Montepuez, mas também estava presente no Norte, ao contrário do que se diz. Um dia, estava no norte do Planalto a fazer uns estudos sobre água e vi as mulheres a regressarem à aldeia. Tinham percorrido 30 ou 40 km para ir buscar água numa zona onde estava a Renamo. Disseram que tinham bebido água com os guerrilheiros e convivido com eles.

 

Durante o período da guerra da Renamo existiu muita violência, também por parte do nosso exército. E eram coisas que eram escondidas. Lembro que, durante essa guerra, as zonas onde se produzia algodão eram defendidas por uma milícia privada da LOMACO, do Tiny Rowland, que incluía muitos mercenários gurkhas.

 

Entretanto, deram-se os acordos gerais de paz. À época, existiram exemplos claros de apoio da população de Cabo Delgado à Renamo. Como, por exemplo, quando Dhlakama chegou a Mocímboa da Praia e toda a gente foi recebê-lo ao aeroporto. Tal não implica que a Renamo tenha sabido tirar partido pleno do descontentamento gerado pelas políticas do governo. (Excertos. In esquerda.net)

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