Chegou à um outeiro, ofegante, molhada de suor, esgotada pelas palavras, e largou as armas e todas as mochilas cheias de esperança. Tinha ainda pela frente montes e montanhas firmes para subir, mas tremeu nas bases, entregando-se, por conseguinte, ao escorrer do coração. Levantou várias vezes a cabeça para libertar a respiração. Em vão! Tentou cantar canções antigas dos machanganas em revolta, com o intuíto de ostracizar as nuvens que lhe adensavam o espírito... também nada! A voz saía gutural. Sufocada pelas poeiras levantadas em redemoínho.
Alice Mabota vacilou. Agora sente nas mãos o vazio deixado pelas rolas, que partiram rumo aos mesmos céus que ela almejava para todos. Caíram as bandeiras que içava nas noites intermináveis, ao som da gargalhada das hienas. E se essas bandeiras não caíram em definitivo, então fazem falta as mãos da Alice, para juntos reiventarmos as melodias que vimos cantando desde as matas. Desde esse tempo em que atravessávamos os rios escoltados pelas feras aquáticas.
Agora só lhe sobram – para gáudio dos donos de tudo isto - as lembranças de um tempo fresco que ainda nos sustenta em colectivo. Ainda lhe ouvimos aqui e acolá, falando, porém sem a verve que lhe erguia para os pedestais do povo. Ela continua, mesmo assim, a mesma. Ouvindo em sua casa sem se cansar, as músicas de Xidiminguana, para o ciúme do marido.
Mas nós estamos aqui para dar o testemunho em todos os tribunais. Levantar-nos-emos diante dos juízes para dizer que sim, que conhecemos esta mulher que gesticulava, tenaz, nas praças. Que desdenhava os polícias armados, acompanhados de cães melhor alimentados que o povo. Diremos à todos os magistrados que sim, que é esta a mulher que sempre vos enfrentou sem medo. Desprezando-vos na vossa incompetência. Na vossas condescndência ao poder. Diremos que sim, que é ela que vos apelava no sentido de virem para o lado da razão. Diremos isso, sim. Sem medo também. Como ela. Quando esgrimia. Em doses de avassalar.
Pode ser que sim, que Alice Mabota tenha sido encostada às cordas, neste combate da selva que está no último round, mas nós cotinuaremos a ovacionar à volta do mesmo ring, agora ocupado por outra mulher. Alice caíu por sobre as pedras, com as quais ia construíndo o seu país, porém o sangue dela recusa-se a coagular. Ainda goteja como a própria luz que está prestes a gotejar nas nossas casas. Estamos no limbo da efectiavação dos vaticínios da mulher que, embora fragilizada nos fundamentos, não foi vencida.
O que nos faz acreditar em ti é o teu peito aberto permanentemente entregue às balas. Aos verdugos atentos à tua volta, prescrutando-te os pensamentos. E nós temos as baquetas preparadas para o rufar dos tambores, porque a certeza de que tu representas o amanhecer que ainda vem, assim nos diz. Se assim não fosse teríamos sabido. Sentiríamos isso nas palavras que dão luz à tua clarividência. À tua saga.
Há muito que esperávamos por uma mulher como tu, desafiando a fúria das orcas no meio da tempestade. E agora estás aqui sem a menor possibilidade de retrocederes. Estás exposta sem escafandro para te protegeres do fogo que te cerca, e nós estamos debaixo da terrível ansiedade. Sem a menor capacidade de libertar o tigre da nossa revolta. O nosso tigre és tu, FátimaI. Aliás, a única coisa que podemos fazer é seguir-te.
Eles estão com medo de ti. Tremem em todo o ser quando falas e olhas para arrogância deles de frente. Dizendo-lhes sem vacilar que o tempo “ruge” na luta da juventude que tu representas. És o nosso instrumento de medida. Cada vez que apareces na televisão, a nossa esperança aumenta. Concentramo-nos todos diante dos ecrãs porque a Fátima Mimbiri vai falar.
És o nosso depósito de géneros. O nosso arauto que corre seguro ao encontro da luz, nestas trevas implantadas despois das armas que anunciavam a liberdade na epopeia das matas. Recusas-te a ficar na popa deste imenso barco navegando à deriva no oceano Índico revolto. Estás na proa desmentindo todas as falácias. É a ti que cabe a descontrução das palavras dos manhosos, que urdem diariamente as naus do desespero para atravessarem o fosso que eles próprios construíram. E tu olhas para eles com desdém.
Na quinta-feira, na STV, só queremos ouvir a ti. Eles também ficam ansiosamente à espera desse dia. Sabem que o nosso combustível és tu. Tremem quando pensam em ti. Bóiam nas discussões que tentam manter contigo. E no lugar de serem eles a encurralar-te, tu é que os cercas com a rede de emalhar das tuas palavras. Lúcidas.
Esta carta é da lavra dos nossos sentimentos mais profundos. Representa a necessidade urgente de cura das nossas feridas dolorosas. E tu, Fátima, recebeste a missão de ser a nossa enfermeira. É a ti que recorreremos em todos os momentos para nos indicares o azimute que devemos seguir. E enquanto isso, continuaremos na longa espera com as orquídeas mais lindas para ti.
À memória de Matateu, que morreu sem nada nas mãos
Em 1983, quando Moçambique derrotou a selecção dos Camarões no Estádio da Machava, o mundo inteiro perguntou se aquilo era mesmo verdade. Os camaroneses eram os maiores da África, uma espécie de astros elegidos para reverberarem no tempo. Perante eles, todos sentiam-se como os israelitas diante de Golias na guerra dos filisteus. Tremiam e escondiam-se nas baixas e nas tocas e nas grutas. Agora quem são esses que ousam enfrentar um monstro, e ainda por cima decepá-lo com a sua própria espada!?
Acabo de falar ao telefone com Sangare Okapi, e ele recorda-me um verso que me remete ao silêncio: não me aguarde, basta que penses em mim. Outro verso perturbador já o tinha ouvido de Fernando Manuel: agora vivo de sons. Na verdade, Fernando não tem outra escolha senão aceitar este futuro que já encara de frente, com palavras sem fim em formigueiro nas mãos trémulas queimadas pelo tabaco. Ele está apressado em lançar toda essa enxurrada depositada no sentimento mais profundo, porque o tempo que tem pela frente é inesperado.
Quando nasceu não sabia de nada, mas já estava escrito que tudo consumar-se-ia na pesada penumbra. Quer dizer, a cegueira, cansada de esperar na vigília furtiva iniciada no ventre da sua linda mãe, abateu-se – mais de seis décadas depois - com estrondo sobre um cronista que agora respira entre os sopés e os cumes. Sem saber exactamente o que pensam as pessoas à sua volta, porque não vê o rosto delas. E o rosto, segundo o poeta, é um pouco a janela da alma.
Estou sentado frente a frente com Fernando Manuel na sala do seu apartamento na Avenida Guerra Popular, em Maputo, onde vários charcos de mijo espalham-se por um município fedorento. Onde os cheiros nauseabundos são exaltados pelas canções repetidas no silêncio dos dementes desmazelados, que gozam a liberdade infindável oferecida pelas velhas acácias. E pela rebeldia dos meninos de rua que não sabem para onde vão. Nem de onde vêm os ventos frios que varrem seus ossos nas noites e nas madrugadas.
Há muito que não nos víamos, e ele nunca mais há-de me ver. Mesmo assim não me compadeço com o cego que está à minha frente, apesar de saber que estes olhos grandes jamais voltarão a vislumbrar a cor das manhãs. O que me arrepia porém é que o cronista parece escutar-me com esses mesmos globos oculares ora escurecidos. Já não é o mesmo homem que conheci, que saía a correr da Redacção para trazer a reportagem inadiável, posteriormente burilada com saber. Já não é aquele boémio incapaz de controlar a boca que ao mesmo tempo bebia e dava azo às bojardas que só ofendiam a quem não entendesse efectivamente os tecidos da vida.
Fernando Manuel agora é um personagem resignado perante todas as derrotas infligidas pelos desfiladeiros íngremes calcorreados um a um. Passa a vida a escutar Rádio e a ouvir música, como se isso fosse lhe devolver a pujança dos músculos. Qual! O que lhe sobra é alma. E as palavras que lhe alagam as mãos. Em turbilhão.
A nossa conversa rodopia em torno do eixo do passado. É o próprio Fernando Manuel quem assim o diz, lá para frente não há nada. Tudo começa daqui para trás. Ou da trás para aqui. Aqui é o limite. É aqui onde terminam todas as paródias. Pior quando não há vinho por sobre a mesa. A vida torna-se um muchém de sal insípido, como se transformou a mulher de Lote, libertada de Sodoma e Gomorra.
É isso: a iris do Fernando Manuel perturba-me. Parece inquirir-me. E eu digo assim ao meu amigo, vou trazer-te um par de óculos escuros para esconderes esses olhos de águia em fúria, porque já não servem para nada. E ele responde-me assim, os olhos da águia são a tónica máxima da liberdade. Depois da águia não há outro animal. Ou seja, na audácia da águia está a audácia de Deus.
À memória de Faustino Vanomba e Kibiriti Diwane, tombados para sempre na minha cidade
À Biti Akuvava, minha amiga em Mueda
Sentou-se levemente no mesmo banco de madeira partilhado por seis pessoas em que uma delas sou eu. Estamos embutidos numa barcaça precária que daqui a pouco vai deixar a cidade da Maxixe, lugar que à noite, visto da outra margem, parece Las Vegas. Está cheio de luzes por todo o lado. Brilha na ilusão de óptica para recompensar a realidade materializada pela vertigem. Maxixe é também pousada do diabo, onde ele se instala amiúde para contar as notas de impulsão sob a guarnição dos punhais que reverberam por sobre a mesa.
É maré vaza, e os bancos de areia ressurgem, entretanto sem a beleza dos tempos, para acolher a sobra dos flamingos e das gaivotas dizimados pela ignorância e pela fome e pela ganância também. Tudo aquilo é sombrio. Parece uma mulher sáfara. Ou várias mulheres estéris estendidas numa paisagem criada para arrebatar. Não está lá ninguém para a apanha do carangueijo e da ameijoa, varridos pelas mãos e pelos ventos. Aliás em mamas sem leite as crianças não choram. Sabem que não haverá mamada.
No interior da embarcação que leva perto de setenta pessoas o silêncio é uma canção que só se ouve por dentro do coração. É um bálsamo leve. Cada um escuta a sua música na escala diatónica insondável. Alguns ouvem as melodias com os olhos fechados, outros dão vazão à vista e absorvem todo aquele espectáculo único dos coqueiros que se erguem na terra, fazendo-me lembrar a fase inicial do filme de Francis Coppola, Apocalipse now. Outros ainda, para a queima do tempo, vão navegando pelo mundo servindo-se da internet instalada nos seus celulares.
Não há golfinhos para nos escoltar como havia antigamente nos tempos da juventude do Mangoba, nem os barcos à vela que passeavam em eternas regatas levando vidas e destinos de um lado para o outro. Esses elementos vitais do paraíso diluíram-se. Os homens já não se encavalitam em ombros cansados de humilhação. Há um êxodo da alma. Faltam os olhares profundos e cansados dos marinheiros que gritavam, em apelo aos passageiros, Maxixêêêêê! Do outro lado também, as vozes esvairam-se no tempo. Já não ouvimos aquele cantante sewiiiiiiiiiii! Quer dizer, como dizia o poeta, “para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada”!
Não há dúvida de que tudo isto é uma metáfora. Parecemos baratas assustadas depois do transbordo, aqui por sobre a plataforma da ponte-cais de Inhambane onde acabamos de ser cuspidos. Somos um cacho que vai-se desfazendo, cada um para o seu ramo onde vai repousar e preparar novo voo. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Não há certeza de nada, mesmo com todas as armas que levamos no regaço. Tudo à nossa volta é uma incógnita, como esta mulher que agora comunica ao telefone em liberdade.
Ela fala com sotaque de ximaconde. Assusto-me por dentro ao ouvi-la na voz de tenor. Olho para ela, e no lugar das tatuagens que eu podia esperar, sobresaem lindas sardas cobrindo um rosto jovial. Está no auge da vida. Parece uma gazela longe dos felinos festejando o raiar do sol nas savanas. Faz-me lembrar a Biti Akuvava, antiga bailarina de mapiko agora rendida ao flagelo da idade.
A melodia da língua ximaconde embevece. Um maconde falando português, empresta à língua de Camões, também nosso troféu de guerra, uma áurea particular. Parece o próprio mapico a ser dançado por sobre a ponte que une as margens do Rio Tejo. E eu estou aqui, escutando discretamente esta mulher com lindas sardas no rosto. Na cidade de Inhambane. Minha musa.
O membro do júri disse que estavam bem vestidas, por isso deu a nota máxima. Eu esperava o contrário. Uma repreensão. Gravosa. A princípio pensei que fosse ironia. Enganei-me. Era a verdade em si. Ou seja, alguém privilegiado na cadeira do julgamento exaltava mulheres com partes sensíveis do corpo à mostra, cantando canções Divinas. Ou pelo menos inspiradas na Palavra. Ainda por cima em público. Exultando. Os vestidos não têm mangas. Nem alças. Começam de onde começam os seios, dando liberdade total à imaginação corporal de quem vê aquilo. A parte inferior, para além de ser curta, acima do joelho, liberta uma racha que pode ser perturbadora. Quer dizer, ficamos sem saber se aquelas senhoras estão ali para nos transmitir mensagens do Criador, ou para nos oferecer o espectáculo da fisionomia.
Não estou a dizer que as pessoas estão proibidas de vestir de acordo com as suas vontades. Nem pouco mais ou menos, mesmo sabendo que o corpo não nos pertence em absoluto. Não estou a dar qualquer dica de como as mulheres devem proceder para respeitar a sua intimidade. O que eu acho é que em determinados lugares e circunstâncias, seria de bom senso que elas examinassem cuidadosamente a sua endumentária. Até porque num festival de grupos corais, as letras que suportam as canções são maioriatariamente inspiradas na Bíblia. Evoca-se Deus nesses eventos, e Deus merece todo o respeito e vénia, mesmo ao nível das roupas que vestimos.
Mónica Malambique, minha vizinha, bebia ao nível dos alcoótras. Era fumadora inveretada. Ia à Igreja todos os domingos glorificar à Deus, exalando os cheiros da bebida e do tabaco, incomodando quem estivesse perto de si. Um dia uma amiga, farta de tudo aquilo, disse-lhe assim, Mónica, achas que Deus pode esvaziar-se em ti com os cheiros emanados dessas porcarias que andas a consumir? Nesse estado, minha irmã, estás a perder o teu tempo, a tua vinda para aqui é vã.
Na verdade o Altíssimo não habita onde há cheiros de vícios. As mensagens de Deus também, quando transmitidas por uma mulher vestida de determinada forma, podem perder o valor, por mais bela que seja a voz. Quer dizer, de um ser feminino trajado daquela maneira, mesmo cantando parábolas celestiais, eu não sei se Jehová vai-se aproximar. Pode ser ainda verdade que tudo isto seja uma má imitação de outras terras e de outras culturas, como aqueles que obrigam as negras a emagrecer para participarem numa passagem de modelo, quando é dado irrefutável que a elegância da negra está na fartura de carnes.
Mas tudo isto pode significar que estamos em delírio. Senão as mulheres não seriam consagradas bispas e autorizadas a subir ao altar para proferir sermões, com os homens a escutarem cabisbaixos, quando Deus determinou que a cabeça da mulher é o homem. E se assim é, como é que uma mulher vai pegar na bíblia para orientar o povo? Isso no mínimo é um vitupério. Por isso não admira que essas mesmas mulheres vão aos concursos corais vestindo mini-saia. Ainda por cima para cantar a Bíblia. E todos nós batemos palmas.
Não precisamos de despejar – do camião basculante que somos - sobre a cabeça deles, o graniso das nossas dores acumuladas. Bastam as palavras buriladas nas canções que ainda vamos cantar. Não precisamos irmãos, de acender os pneus da nossa revolta nas ruas construídas com o sangue dos nossos antepassados e com o nosso sangue também. Nem de lançar o fogo sobre as viaturas espampanantes que eles compraram com as feridas da nossa fome. Nada! Vamos deitar as lanças ao chão e preparar os nossos corpos para a dança porque a noite está a chegar ao fim. Está a amanhecer.
Somos o feixe da lenha cortada nas matas sugadas pela cobiça sem fim. Ninguém nos quebrará. À um feixe não se quebra. Somos a avalancha que está a vir e eles estão com medo. Tremem nos poros da insensatez. Estão constantemente a mergulhar as pálpebras do coração frio no vinho tinto alagado de sangue. Estão de alaia numa vigilância vã, porque a casa deles não tem a guarda da razão. Mas o maior medo que lhes habita é das canções que ainda vamos cantar nas praças, agradecendo o raiar do Sol que terá chegado para todos.
A melodia das canções compostas nas nossas frustrações, e a força premonitória que elas irão transportar, vai-lhes penetrar como lâminas implacáveis, cortando-lhes aos pedaços o coração que nunca tiveram. Muitos deles fugirão daqui para lugares onde jamais encontarão a paz. Outros ficarão escondidos em buracos reais e imaginários. Temerão as suas próprias sombras e chegarão ao ponto de não saber se estão vivos ou se estão mortos. Outros ainda optarão pelo suicídio. Mas tudo isso será o claro sinal de que a noite para nós terá chegado ao fim.
Nós não somos a albufeira. Somos o rio em si que vibra, lançando para as margens toda a escória. Hevemos de oferecer flores aos pombos nesse dia que está perto, e a melancolia da rolas, nesse mesmo dia, vai ressurgir retumbante nas nossas vozes. Cantaremos canções antigas do Machongueze, que usava o seu pànkwè para dar vazão aos sentimentos. Profundos. Entretanto calcinados pela megalomania deles. Cantaremos, irmãos, nesse dia que está perto, a música de Salvador Maurício, “Os ratos roeram tudo/Amor acabou/Tristeza ficou/A vida caíu na miséria”.
As praças estão à nossa espera para nos acolher no testemunho das estátuas. Onde acamparemos dias e dias cantando em homenagem ao amanhecer. Ao fim da noite. Estaremos lá sem armas porque a violência não faz parte da nossa formação. As nossas armas são as palavras interrompidas pelas balas e pelas marretas e pelas poções de veneno. São essas palavras feitas canções que levaremos às praças nesse dia que está perto.
Jubilaremos como David, engrandecido pela sua humildade. Somos o rastilho da paz, aceso para explodir na dinamite do amor. Somos a catarata das águas que beberemos daqui a pouco nesta longa espera. Nesta longa luta das mentes onde passamos a vida toda na penumbra. Fazendo corte aos abastados sentados por sobre os lombos da nossa desgraça. Mas essa longa noite está chegando ao fim, irmãos. Está a amanhecer.
Por debaixo dos meus pés a terra treme. Perdi o equilíbrio. A memória. Já não sei se na verdade é a terra que treme ou sou eu. Inteiro. Salimo Mohamed já cantava no seu subtil “Xantima i bodhlela” implorando-me que fumasse com os meus inimigos, que afinal são meus irmãos, o cachimbo da paz, e eu não quis ouvir. Fechei os olhos para não ver o sangue que pisava com os meus pés. Esqueci-me das lianas que acariciavam meu rosto nas matas da epopeia. Na longa noite habitada pelas hienas visíveis. Pelos grilos e mochos e morcegos. Esqueci-me de tudo isso. Das minhas mãos sangrando na luta pela remoção dos espinhos.
Hoje eu estou aqui. As minhas mãos já não sangram, é verdade! Mas estou vazio por dentro. Sangro na espinha. Na medula. No meu horizonte o crepúsculo do amanhecer transformou-se. Degenerou. Feneceu para dentro de mim onde sou arrasado diariamente pelas verrumas de aço. Tudo à minha volta é um sismo. É como se Eusébio Johane Ntamele estivesse a cantar ao vivo na minha estrada cortada, Khmbo la mina mamana, va ranga hi mbilu va lhomula (que azar o meu, mãe, primeiro arrancaram-me o coração).
Lembro-me que nas matas da longa caminhada eu repetia Louis Armstrong, What a wonderful world, gravado em 1967, cinco anos depois de fundarmos a FRELIMO. Cantava enquanto descansava tendo como travesseiro a metralhadadora em segunda mão enviada da histórica União Soviética. Eu também sonhava com um mundo maravilhoso como o grande Louis. Do meu cano saíam flores também. Buganvílias. Mas tudo isso esbateu-se na minha mudança de rumo. Perdi os sentimentos. Perdi o amor da juventude quando o que me movia era a utopia em si.
Hoje tenho vergonha de cantar Walimba moya, composta nas conservatórias espalhadas em lugares como Ntchinga, onde todos nos uniamos. Já não sou digno de abrir minha boca e libertar os versos ornamentados com sangue dos meus compatriotas. Toda a caminhada que fiz nas noites sem fim, atravessando rios e subindo montes e montanhas, levantando alto o meu braço nos gritos de guerra do tipo A Luta Continua, esvaziaram-se. Começa-me a doer a ferida que eu próprio plantei nas minhas palavras. Isto é o uma úlcera resultante das repetidas violações que fui cometendo.
Ontem sublevei-me contra o colono, e hoje o colono sou eu, cercado porém pelo povo que já não está do meu lado. Sinto que a loucura pode ser a minha próxima etapa. O meu fim. Estou por de cima da calçada onde sou achincalhado por todos. Não posso cair nem para um lado, nem para o outro. Rompi todos os tratados com o meu povo, e o que me resta é só um gemido. Destruí-me com o ouro amealhado nas noites, e hoje já nenhum unguento serve para me abafar a dor. Nenhum analgésico.
Sei! Eu é que não quis escutar a enxurrada das canções cantadas pelos pássaros nas manhãs, apelando-me ao amor. À concórdia. À tolerância. À honestidade. E hoje estou aqui, cercado pela noite.
Bateram à porta com violência. Foram três pancadas de rajada que pareciam o matraquear de uma AK-47 disparada para aviso. O homem assustou-se. Levantou ligeiramente a cabeça do travesseiro e perguntou-se a si mesmo, mas o que é isto!? Bateram outra vez, na mesma cadência. Com a mesma intensidade bruta. E agora percebeu que na verdade estava alguém lá fora. Olhou para o relógio, eram duas horas da madrugada e lembrou-se, uma pessoa que te procura à esta hora é para te matar.
Aos africanos nossos irmãos, agredidos pela xenofobia na África do Sul"
"A história é uma ficção controlada" – Agustina Bessa Luís