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Aos domingos, às 11:57 de Roma, o bispo de branco assoma-se à janela central do 3º piso do Palácio Apostólico, esboça um sorriso, estende a mão para a multidão que enche la Piazza San Pietro e antes de fazer sua alocução aos romani e peregrini diz sempre o mesmo

 

Cari fratelli e sorelle, buongiorno!

 

Acabei de ver o bispo de branco agorinha, confesso. Não a partir da multidão devota ou curiosa que enche la Piazza, mas sentado no meu quarto que está no terceiro piso de um prédio que fica numa rua de Lisboa.

 

Da janela, entra no meu quarto uma luz opaca que o céu cospe neste domingo de Inverno e vejo gotículas de chuva que tombam numa sofreguidão que me corta o coração aos pedaços. Acabei de ver ouvir A Hard Day's Night agorinha, confesso! Sob o olhar de nuvens cinzentas que cobrem Lisboa acabei de ouvir A Hard Day's Night, confesso! Mas na minha cabeça não o grito extasiante e libertador dos Beatles ou a voz do bispo de branco a dizer que o deserto não é um lugar físico, mas uma dimensão existencial onde se calar. Na minha cabeça apenas as vozes do Pedro, da Guida, do Nuno, da Lena e tantos outros que vivem nas letras que compõem o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas. Na minha cabeça apenas as vozes dos portugueses que viveram em Moçambique antes de 1975, dos que foram e dos que ficaram. Palavra de honra, na minha cabeça as vozes dos cidadãos de uma nação que ainda não existe que habitam o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas de Álvaro Carmo Vaz!

 

Passaram-se quase dois meses deste que o Professor Catedrático de Engenharia me presenteou com este mimo! Um calhamaço cuja capa traz rostos de várias pessoas submersas num mar vermelho que colore a capa e a contracapa. Era manhã de sexta-feira, tinha acabado de começar a trabalhar quando a campainha tocou. Levantei-me a resmungar por estar a ser interrompido logo no início da maratona pelos códigos e solucionamento de questões jurídicas que me ocupam por estes tempos. Os pés descalços a pisarem o chão frio e as minhas mãos a abrirem a caixa que tinha acabado de ser entregue pelo homem dos correios. Palavra de honra, como que corrigindo o resmungo que tinha feito abri a boca e deixei o sorriso falar por si. Não se tratava de uma encomenda qualquer, era o romance que amavelmente há dois dias o Professor Álvaro Carmo Vaz disse que me ofertaria.

            

Com o livro fora da caixa desatei a folheá-lo com o mesmo entusiamo que toco o rosto de uma mulher bonita que acabou de entrar na minha vida! Não é o primeiro calhamaço do autor que vejo. Há dois anos partilhei o quarto com um estudante de Engenharia Civil que tinha sempre na sua secretária o Hidrologia e Recursos Hídricos assinado por Álvaro Carmo Vaz e João Reis Hipólito. É claro que nunca cheguei a folheá-lo, para material científico na altura apenas interessavam-me os códigos e livros de Direito que tinha de papar e já me roubavam muito tempo para a leitura e escrita literária. Mas este Um Rapaz Tranquilo, é claro que me interessa!

 

Ando com a mania de ler muita coisa em simultâneo, mas nestes dias os olhos apenas colados a ele nas horas de lazer que se confundem com as de labor literário! Começa-se a ouvir o primeiro choro do bebezinho e a malta já se sente amigo dos protagonistas e quer ouvir tudo o que a sua voz tem para contar.

 

Ah parou de chover! Alguns buracos azuis a se fazerem de moços para as nuvens cinzentas que cobrem o céu. Sem dúvida, não demora e as gotículas voltam a ser enxotadas cá para baixo como cães sem dono.

 

Na madrugada de hoje, acabei de ler a Parte I: A Hard Day's Night do bebezinho. Sinceramente, não só valem muito a pena as história de amor entre Pedro e Guida ou a entre Pedro e o Moçambique que ainda não existe como também valem a rica descrição do contexto social, político, económico e cultural que se viveu em Moçambique e no mundo entre os anos 1966 a 1975.

 

Ao ler-se a primeira parte de Um Rapaz Tranquilo sente-se que se lê um romance actual, sobretudo pelo que se vive em Moçambique: o constante clima de guerra no Centro e Norte do país, os ciclones que constantemente destroem um país que se arrasta para sobreviver, a pobreza na periferia dos grandes centros urbanos, a deficiente liberdade de imprensa ou o frágil direito a liberdade de expressão, a sistemática violação de direitos humanos e a cambaleante autonomia universitária. O presente que vive a pátria amada nos dias de hoje parece uma cópia do passado.

 

É claro que enquanto lia a Parte I do Um Rapaz Tranquilo fez-me falta a poesia e a musicalidade do tipo de prosa que costumo ler, mas isso não diminui a sua grandiosidade. Em Um Rapaz Tranquilo o autor narra sem nenhuma vergonha e de uma forma muito bem desenhada os tortuosos caminhos que alimentaram a utopia e conduziram Moçambique à independência. As páginas da primeira parte de Um Rapaz Tranquilo são páginas grávidas da nação que o autor amou, colocou em primeiro plano e ajudou a construir desde a primeira hora; um testemunho de como a classe académica combateu a opressão colonial em Moçambique; uma lição magistral do amor de um jovem por um país; uma lição magistral de como os jovens moçambicanos de hoje podem lutar por uma utopia que ainda tem tudo para dar certo e com notas bem claras de como evitar escorregar no mesmo lamaçal que as gerações de outra escorregaram. Nesta margem do mar, os miúdos do secundário leem Camões, Eça, Camilo, Pessoa na escola para conhecerem as suas origens, quando cansarem de brincar às fantochadas e decidirem criar um Plano Nacional de Leitura não esqueçam de incluir o Um Rapaz Tranquilo, faz favor!

 

Muita violência em Moçambique e pergunto-me se o rapaz tranquilo continua amando a pátria incondicionalmente ou se foi com esta pátria que sonhou. Sinceramente, muita violência na pátria amada e pergunto-me se hoje o rapaz tranquilo arrepende-se por ter colocado o amor da sua vida e a brilhante carreira académica que teria na Europa em segundo plano.

 

Ainda não vou nem à metade do livro. Lisboa hoje é nossa outra casa, como foi para Guida quando abandonou Moçambique. Ainda não vou à metade do livro, mas não sou capaz de deixar de escrevê-lo, Rapaz Tranquilo, sobretudo depois de saber que aquela matreira de olhos verdes não respondia às cartas que o nosso Pedro mandava a partir da então Lourenço Marques.

 

Aos domingos, às 11:57 de Roma, o bispo de branco assoma-se à janela central do 3º piso do Palácio Apostólico para falar aos Romani e peregrini. Acabei de ver o bispo de branco confesso. Mas na minha cabeça não a voz do bispo de branco ou dos Beatles que o Pedro tanto escutou na juventude ou o mesmo do Divenire de Ludovico Einaudi que me faz celebrar a vida sempre que escuto, palavra de honra. Na minha cabeça, apenas as vozes de Pedro, Guida, Nuno, Lena e todos os cidadãos de uma nação que ainda não existe que habitam o Um Rapaz Tranquilo: memórias imaginadas de Álvaro Carmo Vaz!

quinta-feira, 11 março 2021 08:31

Genoveva Nhacassane

Nunca falei com esta mulher, jamais ousei aproximar-me de um vulto tão profundo e tão desconhecido e tão vulcânico. Na verdade já estive variadíssimas vezes perto dela, no mercado, onde quase todos os dias nos cruzamos e quase nos roçagamos, mas é só assim, sem nenhuma palavra. Eu sempre senti-me pequeno demais para um empreendimento que de longe supera todas as minhas capacidades. Não porque a desejasse, no fundo o que eu almejava era ser um simples conhecido de alguém que parece um felino, uma bela gata.

 

Pode ter ultrapassado o limite dos sessenta, e nessa idade o corpo, todo ele por inteiro,  começa a secar e sobram poucos fios capazes de nos atrair e lembrar-nos de que estamos vivos. Porém, apesar dessa tragédia inevitável provocada pelo tempo,  esta obra do Altíssimo ainda reverbera. Tudo nela parece intacto, incluindo o olhar fugidio, frequente em donzelas que transportam nos gestos as tenazes armadilhas da paixão.

 

Chama-se Genoveva Chacassane, um nome que parece resumir toda a estrutura de uma criatura que em si só já é um vendaval que não pára de criar o caos no seu percurso. Anda invariavelmente vestida de capulana e lenço de cabeça e chinelos e um cesto pendurado no braço, tudo novo, o que me leva a pensar que ela tem um baú interminável. Aliás o outro pormenor que a destingue é o colar de ouro que dança no peito farto,  e as várias pulseiras, também de ouro, adornando os braços. Nos dedos não tem nenhum anel.

 

Há dias em que vou ao mercado só para ver a Genoveva Nhacassane, que brilha para além dos diamantes. Conheço a hora dela, não falha. Por vezes saio decidido a dizer-lhe qualquer coisa, nem que seja um disparate, mas quando chega a hora da verdade, vacilo como os mabecos humilhados pelos grandes predadores. Tremo de alto a baixo e volto para casa envergonhado pela minha incapacidade. Tento de novo outro dia e... nada! Bebo uns copos para ver se o álcool ajuda-me..... também nada!

 

Genoveva Nhacassane se calhar nem sabe que eu existo. Pior do que isso, provavelmente sabe e não me vê como nada. E na verdade pode ser este caso onde sou um personagem secundário, dispensavel, porque sempre que chego perto dela, sinto-me um nenhumano. Fico com medo perante tanta beleza chocante.

 

Genoveva Nhacassane é uma jazida de vários metais preciosos, já me apeteceu dizer isso para ela ouvir, mas as palavras nunca foram para além dos meus sentimentos, até ao dia em que tudo se revelou como o dia clareando a favor da nossa liberdade.

 

Partilhamos pela primeira vez o mesmo autocarro, num trajecto de cerca de dez quilómetros, de Guiúa (onde tinhamos ido fazer compras na feira agrícola das sextas-feiras) à cidade de Inhambane onde moramos. Estamos sentados lado a lado no mesmo banco, e eu pensar que seria aquele o momento para pelo menos dizer qualquer coisa, talvez um bom dia... qual! Encolhi-me na concha da minha derrota.

 

Genoveva significa “mulher branca como a espuma do mar”, e eu preparei-me várias vezes para dizer isso a ver se ao menos vai passar a conhecer-me, e nem isso consegui. Não tenho coragem. Agora não vejo outro caminho senão continuar a ir ao mercado, apenas para contemplá-la. Para contemplar esta linda gata que me mata aos pedaços.

quarta-feira, 10 março 2021 08:07

Como chegamos até aqui!

Não sabemos se foi em wuhan, se foi por algum alimento, que isto começou. Primeiro julgamos o profeta por não ter previsto e sequer conhecer a cura; seguimos pensando que era falsidade dos governos, querendo apoio; exigimos além da idade do caso confirmado, o nome e a localização, precisávamos ver para crer; a seguir julgamos a medicina mundial por não descobrir a cura ou vacina contra isto antes das mortes; pensamos que a máscara irritava, apertava a respiração; lavar as mãos não tinha nada a ver, fechar barracas não era a solução porque vivemos disto.

 

Agora tudo está desorganizado!

 

O polícia agora anda nas ruas da cidade a controlar as pessoas para não se comportarem mal. Banalizamos tudo no começo, mas custa acreditar que a meta para 2021 é acordar vivo no dia seguinte. Isto está nos conseguindo! Nunca a morte esteve próximo de nós como está hoje. Nos falta até o tempo de prestar as devidas condolências, enquanto lamentamos esta, aí vem outra morte.

 

Essa sucessão de mortes quebrou em nós um ritual africano. Cá entre nós, quando se morre sempre se sabe quem é o culpado. Agora estamos a ser civilizados à força, acreditamos nos relatórios médicos sobre a morte dos nossos parentes, o que nunca foi cultura. COVID-19 está quebrando com a nossa cultura de chorar as mortes, o feitiço do tio mais invejoso, da vizinha complicada, daquele subordinado que quer a "cadeira", por esses dias ignoramos. Covid-19 ganhou o espaço de destaque, já não há feiticeiro entre nós, até que há, pode estar atrelado a isto, mas não mais interessa falar dele.

 

Se há uma coisa que a vida tinha que reduzir é a própria velocidade, se há alguma coisa que devia se adiar é a morte, nem que fosse injustiça aos já tombados que não se beneficiariam desta proclamação, ao menos daqui para frente eu e tu não passaríamos pelos murais com a legenda RIP! RIP/DEP, os telefones de alta correcção na grafia já sabem bem dessas três letras, pressiona o R, logo sai RIP, estamos no segundo mês de 2021, em termos de mortes já estamos longe, se a morte continuar flutuando de certo que encontrará a mim e você também...

 

Faltam ainda 10 meses para o ano acabar. Iremos na lógica de Berthold Brecht no seu raciocínio indutivo no intertexto sobre os negros levados. Hoje corona levou a elite, amanhã o vizinho, e isso não te toca porque a ti resta apenas o recurso de te vestires de preto (como dizia caveirinha), mas amanhã, quando ficarmos sozinha corona vai levar a nós. Nas eleições fazemos campanha e a propaganda ganha espaço desde a indumentária, mídias e em tudo, hoje estamos na campanha da morte, partilhamos o corro da desgraça, o obituário, necrologia é o texto mais partilhado por esses dias, é doloroso morrer assim.

 

E agora, se nós dois estamos aqui e no meio temos este texto?

 

Lavemos as mãos, usemos a máscara, distanciemo-nos socialmente, desinfectemos os nossos espaços. Não seremos imortais por isso, mas teremos feito a nossa parte.

terça-feira, 09 março 2021 13:51

Uma lufada de ar fresco para Armando Inroga

O antigo ministro de Guebuza acaba de ser enquadrado numa empreitada do Governo, de onde sairá com uns bons milhares de USD. Ele faz parte da equipa multidisciplinar formada para conceber a Estratégia de Desenvolvimento Resiliente e Integrado do Norte, que deverá ser concluída até Julho, para que, enfim, a ADIN comece a trabalhar. Quando saiu do Governo em fim de mandato, ele ainda foi nomeado para PCA da TVM, mas durou poucos dias. Depois veio o julgamento do camarada Jean Boustani, em Nova Iorque. Seu nome foi citado lá, era dado como imputável. Houve quem batesse as palmas e com cores garrafais pintasse seus embrulhos com conteúdo inquinado>>> vai dentro! Não foi, não! Mrs Buchile fechou os autónomos das "dívidas ocultas", já lá vão 2 ou mais meses e dai soube se que não havia evidência suficiente dele se ter molhado no banho verde do calote. E então porque não um tachozinho?

segunda-feira, 08 março 2021 13:03

Desse mato não sai coelho

“Os  militares (Forças Armadas), os sindicalistas e os estudantes constituem activos vitais em processos de transformação/mudanças. Estes, e cada um com o seu papel na sociedade,  é que mudam o curso da história”. Este pronunciamento, de alguém póstumo e de quem eu era muito próximo, foi feito há uns 15 anos numa conversa corriqueira. No mínimo, e fazendo jus ao pronunciamento, é crucial que a qualidade dos “activos de mudanças”  esteja à altura dos problemas e desafios para a transformação ou alcance das contínuas mudanças requeridas no processo de  desenvolvimento de qualquer Estado.  

 

Na Pérola do Índico, infelizmente a qualidade dos “activos de mudanças” deixa a desejar.  Esta manhã, por coincidência, e a razão do texto,  acompanhei uma notícia na qual o Ministro das Defesa de Moçambique afirmava de que a fraqueza das forças armadas moçambicanas resulta, entre outros, e sobretudo,  do desinvestimento no sector e que tal decorre ou inicia com o Acordo Geral de Paz de Roma, que ditara o fim da Guerra dos 16 anos em Moçambique. Na mesma linha de fraqueza, outro dia ouvira de que em Moçambique o sindicato é  fraco ou quase que inexistente porque não existe um sector privado industrializado (tipo “não se fazem omeletes sem ovos”). Por ora, e também na mesma linha de fraqueza, não me ocorre um exemplo sobre os estudantes, mas, e pelo histórico acrítico, é notável que não diferem, em género e número, da situação dos anteriormente citados.

 

Neste diapasão (com “activos de mudanças” deficitários), e para terminar, é bem provável que “Desse mato não sai coelho”, a menos que, e de quem quer que seja, a intenção seja essa, a de crónico défice, e tal (e dói), infelizmente não abona por melhores  dias para Moçambique. 

segunda-feira, 08 março 2021 12:47

Juma Gigante Aiuba

Juma Aiuba foi gigante. Gigante na audácia e na fineza da palavra. Os gigantes são esses seres especiais, com um espaço reservado na eternidade. O paraíso, também, carece de criatividade. Se a leitura é o alimento da alma, o esplendor celestial, deve ser um espaço privilegiado para os diferentes géneros literários. Anjos e santos se divertem, agora, um pouco mais com o surgimento inesperado, do Juma. Nenhuma vida, nem presente e muito menos futura, sobreviveria sem humor, desprovida de uma requintada sátira e, muito menos, sem o sorriso maroto e platónico.

 

Maitololo, seu nome caseiro, viveu como partiu, irreverente, imprevisível e nas alturas. Qual estrela cadente que cruza as nossas pupilas, desaparecendo sem deixar rastos. “Juma”, etimologicamente, significa alguém que nasceu na sexta-feira. O nosso, fez a sua páscoa, também na sexta-feira. Aiuba (Aniba permollis) é um nome tupi guarani, das amazonas, Brasil. Significa árvore gigantesca, com aproximadamente 50 metros, recordando a todos que subindo numa árvore, deveremos descer pelo mesmo tronco. Esta a combinação perfeita que explica um cronista de múltiplas dimensões.

 

Vezes sem conta, iniciávamos as manhãs lendo seus ousados, interventivos e contundentes textos. O cozinhado de palavras e narrativas que rescreviam a hipocrisia, reconvertiam o descaso e perfumavam esse prazer matinal de uma leitura que fugisse do corriqueiro e banal. Estas crónicas reforçavam a fugacidade dessa crítica metódica, tantas vezes, viciada e respaldada em interesses obscuros. Vivemos carentes e sedentos de olhar para nós próprios, reconhecer o quanto temos sido insensíveis, perversos, egoístas e pouco racionais na nossa normalidade. Surgia, então, Maitololo recordando, através de corajosas, destemidas e humoradas palavras, que tão bem soube recriar, que poderemos fazer um país melhor, mais inclusivo, uma democracia menos frágil, instituições mais fortes e representativas.

 

A história da literatura e do jornalismo é profícua em exemplos de escritores satíricos. Na verdade, todos nós escondemos uma faceta humorística dentro de nós mesmos. Aldous Huxley e Evelyn Waugh, da Irlanda e Inglaterra, respectivamente,  argumentavam que a sátira e o humor são questões que ultrapassam as épocas. A sátira social sempre consistiu em revelar a inconsistência, a incredulidade, a hipocrisia, a crueldade, o cinismo e a indignação. Em períodos mais modernos, Salman Rushdie, foi o rosto marcante da sátira. Este autor dos “Versículos Satânicos” teve de viver refugiado e escondido, para se manter vivo. Tal a força da palavra e o poder da sátira.

 

Em Moçambique, a literatura revela alguma dificuldade para conviver com a sátira social, na sua plenitude. Os poemas e, de alguma forma, a prosa continuam os veículos subtis que valorizam este género. Eventualmente, existam factores de ordem cultural, linguística, editorial, social ou política, conjugados, que limitam uma sátira mais genuína. A Revista Tempo com jornalistas como Areosa Pena, Filipe Mata e Bartolomeu Tome, ultrapassaram barreiras e se firmaram como os cronistas de referência. Censurados pelo regime colonial, se mantiveram firmes e agraciados pelo projecto libertador.

 

Mesmo depois da independência, jamais pararam de satirizar, com humor e leveza, modelos e propostas governativas pouco coerentes.

 

Depois de algum interregno e de um momento de muitas veleidades, novas vozes tentaram seu espaço e traçaram o seu próprio caminho. Juma, foi essa feliz e improvável revelação. Quando lhe perguntavam de onde buscava tanta inspiração, ele era peremptório. Não era ele que se inspirava. Era Moçambique que palmilhava e trilhava pelos sinuosos caminhos da paródia e indignação. Eram as incongruências da corrupção e a maledicência da democracia atípica, da política quotidiana maquiavélica, da insensibilidade do sistema judiciário.

 

A paródia se constrói com a vida, na seriedade e na adversidade dos factos. O que mais o incomodava e, um pouco aos cidadãos de bom-senso, eram as infundadas justificações para narrar o óbvio, os números problemáticos do registo eleitoral, das arbitrariedades com os contentores que, misteriosamente, desaparecem, a leviandade como se constrói a narrativa de pagamentos duvidosos, enfim, essa espécie de tragicomédia e de uma morte anunciada, para relembrar Gabriel Garcia Márquez.

 

A Carta de Moçambique, jornal digital para o qual publicou, reconheceu, em momento oportuno, que o seu projecto jornalístico ganhou espaço e expressão muito por conta de se ter pendurado na sua bagageira. Na realidade, a publicação acomodou-se, confortável, na poltrona da sua irrepreensível imaginação e frontalidade. Juma era uma pessoa corajosa e de perspicaz frieza. Assustava. Quase vaticinávamos um final premeditado e anunciado.

 

No seu humor, muitas vezes, tão trivial, noutras tão sério, ele será aquele jornalista que morre e sobrevive. Continuará escrevendo a partir das catacumbas. Para quem lê sátiras, o mais difícil seria não pensar em Charlie Hebdo e em tantos outros, que ousam atravessar pelos caminhos do politicamente correcto. Mas, a vida continua esse sopro. Passará algum tempo até que se entenda da natureza do furúnculo que o vitimou. Porém, o importante será saber que cumpriu, como ninguém, o nobre dever de servir à pátria e, no dia da maior celebração islâmica, ele regressou as profundezas das suas origens.

 

Sócrates dizia, várias vezes, que as pessoas sábias falam de ideias, mas que as pessoas comuns falam de factos e a pessoas, apenas, falam de outras pessoas. Ficaremos com os novos cronistas e que são produto da paródia que experimentamos como pão nosso de cada dia, Armando Nemane, Sérgio Raimundo e tantos outros, cuja intervenção social fará de Moçambique um lugar para todos, sem medos e de plena liberdade.