Ao contrário do que é habitual, hoje quem escreve não és tu. Sabes, a ideia não é bem homenagear-te, mas usar a tua obra, resgatar a tua pregação e usar os valores que a tua palavra emana faz tantos anos. Hoje Calane somos nós a falar, mas a falar como tu. Hoje viemos cantar esta nossa amada Pátria. Viemos falar como Tu, Calane. Mas não viemos trazer ao assunto as riquezas do solo e do subsolo, que as temos, nem das tantas e belas paisagens e de tudo que não esgota neste Moçambique de que tu és fruto e que de ti é feito.
Viemos, sim, falar da mais importante riqueza tantas vezes esquecida, por muitos ultrajada e pela qual muitos até morreram. Viemos falar de NÓS, Calane, nós os homens e mulheres desta terra maravilhosa que o é pela gente que tem, porque tudo o resto é adorno e para nada serve sem nós. E viemos falar disso porque é disso que tu falas e escreves numa atitude invulgar e valiosa de resistência.
Faz muitos anos que andas nessas lides, Calane. E insistes. Mas andamos muito distraídos com outras coisas que parecem interessar mesmo estando vazias. Os gajos insistem. Quando já não acreditamos numas dão-nos outras. Tu acordas-nos, eles adormecem-nos com o vinho e futebol, a novela e o kung fu.
Agora dão-nos o iphone, o ipode, o face do book, o twitter e o whatsup. Põem-nos sem tempo de olhar a cara de ninguém.
Tu falas do Mário de Andrade, eles impingem-te a primeira que abana o rabo, tu falas do Pepetela, eles dão-te uma poetisa de mamas a mostrar seus atributos proteicos, ... tu falas do Msau e eles dão-nos uma aparelhagem de 2 mil Gigawatts que apetrechamos numa viatura qualquer para circular um pumba-pumba que nos queima os neurónios com concertos de dois compassos. E se não temos viatura, colocamos nas orelhas para não ouvir nada nem ninguém.
Tu falas de beleza estética, eles dão um ensaio de cultura .... tu falas dos homens, eles dão-te com a mercadoria, tu falas da água, das árvores, da montanha, dos locais belos desta terra e de todas as outras, eles vendem-nos chips tecnológicos que nos enchem de solidão e vazio.
Puseram-nos tão perto para ficarmos tão longe, tão sós. Taparam-nos os ouvidos, os olhos e, de cheiros, dão-nos a fumaça da poluição. E convencem-nos que a felicidade está na ganância endeusando aquilo que o Caetano disse que erguia e destruía coisas tão belas.
Mas tu insistes e persistes. E lembras-nos o Craveirinha e a Noémia e o Rui Nogar, e o Kok e o Dinho e o Catoja e tantos outros Calanes nossos amigos patriotas que não venderam a Pátria, que engrandeceram os homens, nos engrandeceram a nós.
Eles falam do pib, do pub, do lucro do rendimento e crescimento e tu, Calane, lembras-nos as caras, os peitos e seios, as pernas e as coxas, o sorriso e o choro, a alegria e a tristeza, a cor e a beleza de nós próprios. Em cada poema teu, a gente lê os homens dos mediáticos aos mais anónimos, dos mais complexos aos mais simples. Até eu, Calane, apareço nos teus livros, eu que não canto nem encanto, mas apenas cruzei na tua vida pela simples razão de existir.
Nós lemos a tua poesia, Calane. E vimo-nos retratados de todas as formas. E vimos os Rongas, os Machanganes, os Ajauas, os Macondes e Macuas, os Masenas e os Machopes, os Bitongas e todos os outros. Mas vimos também o Vietnamita, o Brasileiro, o Belga e os Russos. E todas as letras do alfabeto estão repetidamente retratadas nos inúmeros nomes de pessoas que a tua escrita inala. Vimo-nos todos à dimensão de um homem verdadeiramente moçambicano que só o é porque é um homem à escala do planeta. E tudo isso nos apaga da vista e muito mais da memória os inúmeros defeitos que com certeza tens, como homem que és.
A gente veio aqui usar da tua palavra para lembrarmos tudo isso. Que somos gente, que não nos rendemos até porque a razão mesmo vencida não deixa de ser razão. Mesmo que, como dizia o Pi da la Serra, haja tantos filhos da puta que se voassem não se veria mais o sol. Mas nós, Calane, mesmo encandeados, somos mais ainda simples mortais a querer viver e convencer que ser rico pobre é diferente de ser um pobre rico e que, se existem raças no nosso país, então somos 25 milhões de raças, porque como dizia o Mia, cada um nos é uma delas.
É assim, Calane. E embora venhamos aqui pregar a tua pregação e não tanto homenagear-te, temos de nos curvar perante ti e dizer-te que por tudo isso:
SARAVAH CALANE
NE: Em 2015, o TP50 realizou um espectáculo denominado “OLHAR MOÇAMBIQUE: UM TRIBUTO A CALANE DA SILVA”. Na altura, lemos todos um texto dirigido a ele que reproduzimos de seguida. Calane era um membro activo do TP50. Nós vamos pegar as armas que deixou, que foram muitas.