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segunda-feira, 15 fevereiro 2021 06:25

Caju: A reedição da tragédia do caju com novos actores?, questiona Antonio Souto*

Moçambique perdeu cerca de 13 mil postos de trabalho na indústria do caju desde meados de 2020 até ao início de 2021. Esta tragédia económica e social tornou-se agora viral nos media porque o maior processador, a OLAM, anunciou em comunicado do dia 4 de Fevereiro que estava encerrando as suas fábricas, entre as quais a maior do país situada no Monapo. Mas a falência desta indústria e encerramento de fábricas já vem ocorrendo silenciosa e dolorosamente, desde há alguns meses. A causa é uma doença que está instalada na nossa sociedade e sistema económico desde há anos. É um cancro que está a matar este e outros sectores industriais e que se chama “comercialização agrícola desordenada”, onde piratas e lavadores de dinheiro sujo retiram espaço a investidores formais.

 

A actual tragédia da indústria do caju é uma reedição do que ocorreu há 20 anos. Mas há uma mudança de actores.

 

Há 22 anos um lobby asiático, ligado do Banco Mundial, impôs ao Governo de Moçambique a total liberalização do comércio do caju. Os industriais deixaram de poder beneficiar de mecanismos que lhes conferiam prioridade na compra de matéria prima. Quase todo o caju nacional passou a ser exportado em bruto para a Índia e as fábricas fecharam, despedindo cerca de 11 mil trabalhadores. Houve uma quase revolta nacional contra essas medidas. Nos anos 2003 e 2004 reinstalaram-se medidas de proteção da indústria.  O sector renasceu e em 2018 contava com 17 fábricas que empregavam quase 17 mil trabalhadores.

 

Hoje, aliás, desde há alguns anos, o lobby já não é só asiático, mas também nacional e está instalado em instituições que participam nos processos de decisão da política económica do país. Desde há anos que a comercialização agrícola e o comércio rural são realizados de uma forma aparentemente desorganizada, camuflando uma organização de diferentes “grupos” / “máfias” que comandam os circuitos comerciais de produtos de exportação, onde o caju tem grande peso. Centenas de milhões dólares são anualmente transferidos para praças financeiras internacionais através de mecanismos de subfacturação na exportação ou de fuga à taxa de 18% em processos clandestinos de exportação do caju.

 

No dizer de um dos líderes industriais que ainda tenta sobreviver à declaração de falência, “a gota que entornou o copo” foi a decisão anunciada em Outubro de 2020, nas vésperas do início da campanha de comercialização do caju, de se acabar com a interdição na exportação de matéria-prima até ao momento em que a indústria nacional estivesse abastecida. Nos anos anteriores, a exportação antes desse momento estava limitada à amêndoa processada. Era uma condição que explicitamente priorizava a indústria. Não é, pois, estranho que a OLAM argumente agora como uma das razões do fecho das fábricas “as recorrentes dificuldades em aceder a matéria prima de qualidade nos volumes necessários”

 

“Industriais que têm de investir nos custos fixos e operacionais das fábricas, garantindo milhares de postos de trabalho, assegurar estoques de matéria prima para laborar 12 meses com os consequentes custos financeiros, são tratados como iguais aos que sem quaisquer destes custos nem riscos se limitam a comprar num dia e a exportar logo de seguida.” - disse um dos membros da AICAJU. O facto de agora qualquer um poder exportar o que quiser e quando quiser desvaloriza o valor dos investimentos realizados, bem como a apetência para novos investimentos na indústria. “É melhor ser apenas comerciante”.

 

Um sector estratégico

 

O caju é das culturas de rendimento com mais história na economia de Moçambique. No início da década 1970, fomos o maior produtor mundial, tendo atingido as 230 mil toneladas em 1973. Depois de ao longo dos anos de guerra e desmantelamento da indústria o sector ter caído a níveis sem qualquer reconhecimento, em 2018, Moçambique voltou a ter nome internacional: foi o 5º país processador de caju no mundo.

 

Estima-se que 1,4 milhões de famílias nas zonas rurais obtenham uma parte dos seus rendimentos a partir do caju, além dos milhares de operários, muitos deles sendo mulheres, que tinham um salário garantido para o sustento das suas famílias. Só em Nametil e no Anchilo, os 3500 trabalhadores das duas fábricas ali instaladas receberam de salários em 2017 um total na ordem dos 160 milhões de Mts, além de outros valores de subsídios. Embora sem dados exactos estima-se que a nível de toda a indústria o global de salários que em 2017 ficaram em zonas rurais ascenda a USD 12 milhões.

 

Nos anos 2016 e 2017 o valor da amêndoa processada e exportada por todas as fábricas assegurou uma entrada de divisas no país na ordem dos 70 a 75 milhões de US Dólares em cada um desses anos. Mas o valor das exportações de matéria prima em bruto (castanha) andou entre os USD21 e 24 milhões.

 

A importância da industrialização e processamento tem uma lógica que decorre do seguinte rácio. A valorização da castanha no processamento é da ordem 40 a 50 por cento. Ou seja, a cada mil toneladas exportada em bruto corresponde uma entrada de divisas na ordem de USD1 milhão; se as mesmas mil toneladas forem processadas e convertidas em amêndoa com qualidade, o valor final será cerca de USD1,4 a 1,5 milhões.

 

Se a esta valorização se acrescentarem as receitas em salários, impostos e outros impactos na economia rural percebe-se por que razão o relatório da Nitidae ([i]) financiado pela AFD afirma: “Ao aumentar o valor das exportações de caju, proporcionando mais de 15.000 empregos e participando da industrialização de Moçambique, o setor de processamento de caju é estratégico para o país”.

 

Falácias que encobrem as redes criminosas

 

O ataque às medidas de proteção da indústria, que agora já não vem de lobbyes externos, tem vários argumentos e autores. O principal argumento é o da falta de competitividade das nossas fábricas.  O estudo (1) extensivo e divulgado no início de 2020 concluiu que o problema não reside na falta de competitividade das fábricas, mas sim na fragilidade de políticas públicas para estimular a indústria. É, aliás, reconhecido em foros internacionais que Moçambique tem algumas das fábricas mais modernas de África.

 

Na actualidade, os principais competidores de Moçambique são o Vietname, Índia e Costa do Marfim. O estudo que temos vindo a citar observa que a indústria moçambicana enfrenta inúmeras desvantagens quando comparada com os seus principais concorrentes. Os principais factores de desvantagem são:

 

  • As empresas moçambicanas de processamento de caju pagam impostos mais elevados quando comparados com o Vietname, Índia e Costa do Marfim;
  • As empresas de transformação na Índia e na Costa do Marfim beneficiam de subsídios. O Vietname tem um outro sistema de apoio directo, mas igualmente dirigido a proteger o sector;
  • A indústria moçambicana enfrenta custos muito mais elevados na aquisição de equipamentos, sobressalentes e insumos.  Esses custos derivam, entre outros, da carga aduaneira e fiscal que recai sobre esses bens importados. Estas taxas em geral são “cegas” e não olham para a especificidade da matéria sobre a qual incidem. Ainda recentemente foi imposta uma tarifa de 20% na importação dos plásticos usados na embalagem da amêndoa processada. É um plástico especial que tem de suportar a tensão do vácuo, higienização e outros factores que estendem a vida de um produto alimentar.
  • Custo financeiro mais elevado. Este é um tema recorrente. As taxas de juro da banca comercial sobre a indústria nacional são, na prática, indistintas se for para uma fábrica estratégica ou para uma actividade de comercialização de bens de luxo. Muito se tem falado de linhas especiais na banca comercial, porém, na hora da verdade da sua disponibilização, as diferenças são irrelevantes. Em definitivo, o sistema financeiro moçambicano não tem uma janela ou produtos que de forma relevante e consistente assegurem um contínuo no financiamento à indústria ou à agricultura. E isso, nesses outros países é uma questão central, com a qual os respectivos governos têm tido poder e estratégia para não embarcar em medidas liberais desconectadas das prioridades nacionais. Nesses três países hás sistemas de financiamento específicos que dão suporte ao investimento privado em sectores definidos como estratégicos.

 

Estão identificados ainda um conjunto de outros factores que tornam o ecossistema do caju adverso a uma maior competitividade da indústria. Porém, que fique claro: não é um problema que se resuma à necessidade de uma melhor gestão e/ou modernização das fábricas. Enquanto uns governos adoptam medidas de apoio e fomento consequentes, em Moçambique assiste-se a uma inércia suicida.

 

Além do falso argumento da competitividade das fábricas existe também o da falácia de que alguns industriais fecham as fábricas por não serem capazes de gerir a liquidez das suas empresas. Isto é uma falácia porque confunde causa com a consequência.

 

A maior parte das fábricas que hoje estão fechadas mostram que nas suas contas, a 31 de Dezembro de 2017, não tinham dívidas com a banca, ou, pelo menos, não tinham qualquer dívida em atraso. Porém, em 2018, houve uma crise a nível global nesta commodity fazendo baixar os preços da amêndoa e, em simultâneo, um processo de inflacionamento de preços na já referida “organizada desordem” da comercialização agrícola do caju na zona Norte do país.

 

Não é de estranhar o facto de desde esse ano se ter verificado o agravamento dos actos terroristas no Norte de Moçambique em simultâneo com um aumento de agentes ilegais inflacionando os preços na compra aos produtores de alguns bens exportáveis como o caju, mas também o gergelim entre outros. Também não é uma mera coincidência o inflacionamento nos preços da compra de caju nas zonas rurais com os relatos de aumento de tráfego de droga transitada pelos portos da região norte de Moçambique.

 

O inflacionamento dos preços de alguns produtos exportáveis obedece a uma lógica de exportação ilegal de capitais. Basicamente, ainda que de forma simplista, os mecanismos dessa operação são os seguintes:

 

  • Uma quantidade X de feijão boer pode ser comprada na aldeia por um pirata a 600, a sua exportação nas alfandegas e entidades fiscais locais declaradas a 300, mas, na verdade, lá fora ela vale 900. O camponês fica com a sensação de lhe ter saído a lotaria, pois recebeu 600. O comerciante formal que não opera com dinheiro sujo fica de fora e fecha o negócio, pois não tem capacidade de concorrer e pagar mais do que 300. Ou, ele próprio, converte-se num agente da pirataria;
  • O pirata, lá fora, recebe 900 e ajusta contas com os mandantes da rede. Para as contas nacionais apenas entraram 300. No ano seguinte o camponês duplicou a produção de feijão bóer, mas o operador formal já fechou as portas e não lhe compra nada. Entretanto, o pirata foi instruído pelos mandantes da rede que o produto agora na moda já não é o feijão bóer, mas sim um outra commodityque tem uma maior procura em alguns mercados. O feijão bóer produzido pelo desprotegido e desinformado agricultor ficará a apodrecer…e a rede estável de comércio organizado e formal desapareceu. Vingam e expandem-se os piratas lavadores de dinheiro da droga e outros crimes;
  • Os piratas não se financiam na banca comercial local. Não têm problemas de liquidez. Os dinheiros das redes de droga e outros tráfegos ilegais são mais do que suficientes para assegurarem liquidez às redes ilegais de comércio rural informal. É comum vermos esses “bengladeshs” (embora nos últimos anos muitos sejam provenientes de países africanos da região e até nigerianos), como são localmente designados em Nampula, viajando com sacos de notas em motos ou outros meios ligeiros nas zonas onde o comércio ilegal floresce. Eles compram e pagam logo. Isso é irresistível e um atractivo incontornável para qualquer família rural que tem de sobreviver do ganho do dia-a-dia. Nos últimos anos estas redes desenvolveram-se também nas zonas dos rubis.

 

Não há indústria formal e gerida segundo regras de transparência capaz de concorrer com redes de lavagem de dinheiro sujo e comércio ilegal.

 

No caso concreto da industria do caju, o impacto destas redes no inflacionamento temporário de preços de aquisição de matérias primas é devastador.

 

As dificuldades de liquidez em algumas fábricas só marginalmente podem ser atribuídas a uma deficiente gestão de riscos por pare dos seus gestores. Na essência, ela é a consequência de uma conjuntura para a qual o nosso Estado e Governo não têm mecanismos de prevenção nem proteção, pois não têm sido capazes de ordenar e disciplinar a comercialização de produtos estratégicos de exportação.

 

Quem ganha, quem perde?

 

A pergunta de quem ganha ou perde é matéria politicamente sensível. Mas ela precisa de ser respondida de forma profissional com estudos e auditorias.

 

Como economista apenas estranho que órgãos oficiais nos digam que num determinado ano recente produzimos por exemplo cerca de 160 mil toneladas de castanha, mas as estatísticas oficiais revelam que os industriais apenas processaram 60 mil e os exportadores inscritos venderam para o exterior 20 mil toneladas. A pergunta óbvia é: 60mil+ 20 mil = 80 mil, o que representa 50% do que foi propagandeado como produção nacional. Aonde foram as outras 80 mil toneladas?

 

Os números que aqui cito são deduções aproximadas com algum conservadorismo do que têm sido as estatísticas que nos são oferecidas pelas autoridades do sector.

 

Aonde foram os outros 50% da produção?

 

As respostas que obtive de várias fontes é a de que num máximo uns 10% tenham sido consumidos localmente incluindo algumas transações informais entre comunidades fronteiriças com a Tanzania. Os outros 40% foram exportados ilegalmente. Só nas taxas de 18% sobre o valor da exportação isto corresponde a valores entre 7 a 8 milhões de USD.

 

Quem beneficia com estes 7 a 8 milhões de US Dólares não pagos ao Estado por ano? Há quantos anos e em que volumes se fazem estas exportações ilegais? Quem são os autores destas exportações? “Na verdade, os valores desviados são muito superiores a esta estimativa” - comentou-me um auditor que trabalha no sector há cinco anos.

 

Está acordado que uma porção desta tarifa de 18% na exportação deveria beneficiar a modernização da indústria de processamento, mas por que razão até hoje o Instituto responsável pelo sector não foi capaz de alocar nenhuma verba a esse fim?

 

A resposta à pergunta “quem ganha, quem perde” já está dada. Perde o orçamento de Estado, perdem os investidores privados formais, perdem as comunidades; ganham as máfias que se instalaram nos centros de decisão e conseguem de forma cada vez mais livre expandir a sua actividade ilegal.

 

Como salvar a indústria do caju?

 

Esta é a pergunta chave que me tem sido colocada por vários industriais do caju, mas também por agências financeiras internacionais.

 

Das leituras que fiz, observo com grande satisfação que aqueles que há 22 anos contribuíram para liquidar a indústria então existente – o Banco Mundial – estão hoje numa posição bem diferente. Apregoam a necessidade de se tomarem medidas de proteção à indústria nacional capaz de geral empregos e melhoria dos rendimentos das comunidades.

 

Mas, como se disse no início “…desde há alguns anos, o lobby já não é só asiático, mas também nacional e está instalado em instituições que participam nos processos de decisão da política económica do País.”. Por isso, e para salvar a indústria do caju é preciso saber se o Governo está disposto a distanciar-se desse lobby canceroso.

 

Diria alguém que “o problema que estamos com ele” é que acabar com estes lobbies não é tarefa de um só ministro. Isto é uma rede que se instalou nos centros de decisão aos mais altos níveis. “Os negócios provenientes das exportações ilegais e ou de subfacturações, incluindo os negócios do caju, beneficiam muitas pessoas concretas em posições chaves de tomada de decisão”.

 

Ciente de que nem todas empresas enfrentam dificuldades pelas mesmas e ou justificadas razões, é necessário intervir para salvar e recuperar as fábricas em função dos seus méritos e capacidades de sustentabilidade futura. É preciso intervir com uma lógica de reforçar a competitividade da economia e da indústria nacional e não porque existam relações de lobbies políticos.

 

Proponho que se inicie um programa para:

 

  • ·avaliar cada uma das empresas em situação de crise e para cada uma delas construir propostas para uma solução de reestruturação;
  • ·apresentar e receber dos ministérios relevantes respostas concretas às propostas de reestruturação.

 

*Este artigo foi publicado no Semanário Savana (www.savana.co.mz) edição 1414, a 12 de Fevereiro de 2021

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