Com o acordo de cessação das hostilidades, rubricado pelo PR Filipe Nyusi e pelo líder da Renamo Ossufo Momade, surgiu um grupo se colocando como o único empecilho para que Nyusi celebre eternamente o estatuto do derradeiro pacificador de um conflito que mergulhou Moçambique no sangue durante décadas a fio: os dissidentes da Renamo. Há quem acredita que estes dissidentes têm potencial para perigar a paz. Até é possível.
O grupo é composto por generais do “innner circle” da guerrilha de Afonso Dhlakama, que deram seu corpo e alma às “causas” da luta. Queriam o poder de veto no processo decisório interno, mas Ossufo Momade deu-lhes costas. Têm armas e controlam bases do interior. Mas as possibilidades da sua persistência na hostilização violenta contra o poder do Estado (reivindicando um poder dentro da Renamo) parece-me limitada.
O acordo Nyusi-Momade carimbou também uma aliança FRENAMO (Frelimo/Renamo), que agora se junta, em coligação, contra os dissidentes. Ou seja, o grupo que insiste na rebeldia tem agora o Estado e boa parte da Renamo do outro lado da barricada. O acordo Nyusi-Momade foi celebrado por parte da facção guerrilheira da Renamo e pela totalidade da facção política da Renamo, desde os “tachistas” parlamentares a toda uma panóplia de políticos, dhlakamistas ou não, espalhados pelas capitais provinciais.
Por outras palavras, os dissidentes actuais da Renamo não têm suporte político (a não ser que depois das eleições apareçam políticos se juntando aos guerrilheiros nas matas numa reivindicação contra a fraude – coisa que só Afonso Dhlakama sabia fazer). Mas ainda ontem vimos a Ivone Soares marchando em celebração do acordo. Os dissidentes têm, pois, uma capacidade de barganha limitada. A opinião pública é contra mais matança nas estradas e a comunidade internacional também está cansada das nossas desavenças de sangue.
Os anteriores acordos entre o Governo e a Renamo, como o de 2014, falharam por causa da capacidade de Afonso Dhlakama de enxergar a maracutaias da Frelimo e mobilizar, ao mesmo tempo, suas energias políticas e militares. Dhlakama foi-se e não deixou um sucessor com sua dimensão e carisma para dar continuidade ao seu estilo de luta.
Os dissidentes reivindicam um espaço dentro da Renamo, acusando Momade de falta de legitimidade. Mas o acordo FRENAMO mostrou que isso já não interessa. Quem da Renamo não entrou na onda do acordo não passa agora de um bandido atirando contra a segurança do Estado. São os novos “bandidos armados”, sem qualquer tipo de legitimidade. Depois da assinatura em Chitengo, quando se soube de novos ataques nas estradas, Nyusi frisou que esse banditismo vai ser combatido ferreamente. Aliás, tudo vale agora para que a paz aconteça dentro dos anos de vigência do nyussismo.
A dissidência na Renamo vai ser mesmo capitalizada pela Frelimo, para eliminar todos os vestígios bélicos da guerrilha. Simbolicamente, para os novos “bandidos armados”, seria como que uma segunda morte de Dhlakama, com o beneplácito de toda a facção política traidora da Renamo, que ambiciona o conforto de Maputo.
Nos próximos meses, vamos ter algum sangue nas matas, com eleições de permeio. Depois o teste crucial será ver com que armas é que a Renamo fará a reclamação da fraude eleitoral, de que é useira e vezeira. A Renamo da FRENAMO está mesmo preparada para fazer a luta política nos espaços tradicionais, tal como em Angola a Unita aceitou as benesses do poder e se restringiu ao parlamento, ou vai tentar fazer renascer, depois de Outubro, o novo “banditismo armado”? Alô Novembro!
Se fôssemos um país sério, o Presidente Filipe Nyusi já devia ter sido distinguido com um prémio literário qualquer. Aqueles poemas que o Presidente Filipe Nyusi anda a ler no Parlamento merecem algum reconhecimento. Não podemos desprezar o esforço do nosso compatriota desta maneira. Podemos estar perante um Craveirinha e sem nos darmos conta.
Não é fácil falar duas horas sem dizer nada. Não é fácil chamar alguém de "zamwamwa" e o gajo ainda aplaudir. Não é fácil retratar o sofrimento de um povo de forma tão romântica e poética.
Nyusi consegue dizer que não está a fazer nada sem se ofender a ele próprio. Aliás, ele diz isso de forma tão lírica que ele próprio acaba acreditando que está a fazer alguma coisa. Nyusi acredita que de estado da nação "estável" para "firme" e de "firme" para "resiliente" há uma grande súbida. Acredita ele que entre "encorajador" e "merecedor de confiança" é há um grande avanço.
Nyusi proporcionou-nos um mandato poético. Um mandato em que os gatunos e o Judiciário foram tratados com muita figura de estilo. Um mandato em que a pobreza é irónica e a pobreza é sempre uma metafora. Um mandato em que uns vivem no presente e outros, no futuro, onde leões comem mandioca.
Enfim, para Nyusi, o país é poético.
Epá, como sabes, eu não uso esses dispositivos do tipo whatsap, facebook, e outros facultativos disponíveis no nosso tempo. Não tenho estrutura para isso, para além de que a minha impressão, é de que tudo isso está a levar-nos à loucura. Toda a gente anda com os celulares na mão, entre eles aqueles que ostentam os mais modernos e poderosos, malta Huwawei. Não tiram os dedos e os olhos do ecrâ, mesmo caminhando debaixo do sol. Ou a conduzir viaturas na estrada. No átrio das escolas então não digo: os alunos conversam cada vez mais pouco entre si. Estão sentados no mesmo banco ou no mesmo chão, no jardim, mas cada um no seu mundo. Já não há terapia de grupo.
Mas não é para te contar estas baboseiras conhecidas por todos que resolvi escrever-te esta carta. O motivo que me leva a fazer isto é a saudade que sinto de ti. E também a necessidade de partilhar contigo alguns medos que me assolam ultimamente. Aqui continuamos a ser mortos, meu irmão! Assim mesmo, como cabritos içados num ramo qualquer de uma árvore e decapitados a sangue frio. O pior é que esta chacina não dá sinais de abrandamento, e estamos à caminho das eleições gerais onde ninguém sabe o que vai acontecer.
Neste país, que também é teu, meu irmão, já ressurgem aldeias inteiras abandonadas. Outros conglomerados foram literalmente incendiados. Os nossos irmãos, aqueles que conseguiram, saíram de lá como baratas assustadas e foram se aglomerar noutros lugares, escondidos, mesmo assim sem a certeza de nada. Vivemos de morte em morte. E aqui onde estamos, não há ninguém que nos consola. Tudo à nossa volta representa o escuro.
É isso, meu irmão! O meu medo aumenta porque há metralhadoras, ainda aqui dentro, mais para cá, que parecem prontas a troar de novo contra os nossos corpos. Na verdade o que mata não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela. E as palavras que temos ouvido ultimamente, nas matas e nas cidades, são um verdadeiro rastilho. Aceso. Há um receio de que a dinamite exploda.
Temos muitas flores por aqui, meu irmão, como tu bem o sabes. Lindas flores. Alagadas de futuro. Mas no lugar de colhermo-las para ornamentar os convívios, investimos sobre elas como pragas. Ontem as crianças cresceram ouvindo o matraquear das armas cuspindo balas sobre os corpos dos seus pais e sobre os corpos dos seus irmãos, e hoje essas mesmas crianças assistem à decapitação dos seus projenitores, em espectáculos macabros que se repetem sem fim à vista.
É este o nosso país, meu caro! Que vive de morte em morte. Com homens bebendo o sangue saíndo da jugular dos seus próprios irmãos, com o fim de lhes fortalecer, segundo a sua irracionalidade, a sanha assassina. Já não esperam pela chegada da noite, para ser a própria noite a vestir-lhes o capuz. Avançam à luz do dia, e assim, as vítimas contemplam, lívidas, o brilho da catana que lhes vai decapitar como reses desgraçadas.
Mesmo assim ainda acredito na roda da história, meu irmão. Um dia todo este sangue que escorre nas aldeias, vai ser lavado. Quem sabe!
Receba este meu abraço trémulo. Sucessos por aí.
O Estado Geral da Nação foi hoje um balanço dos Planos Económicos e Sociais dos cincos anos da presidência de Filipe Nyusi. Um autêntico arrazoado numérico de realizações em todas as áreas de intervenção do Governo. E Nyusi seguiu embevecido na sua contagem. Eram só milhares. Milhares de salas de aulas, milhares de carteiras (de uma “operação tronco” que acabou cedendo ao forte “lobby” chinês e de “nomenklaturas” locais, esfumando-se no seu propósito regenerador), milhares de kms de estradas, milhares de camas hospitalares...e uma apenas máquina de quimioterapia para um país que se estende em milhares de km. Houve também os milhões da Ministra Vitória Diogo, com suas sonantes e brilhantes estatísticas sobre o emprego. Era como se o desemprego já não fosse problema.
No afã da profusão numérica, Nyusi esqueceu-se de captar os tentáculos da crise que varre a sociedade. Os números, empolados alguns (como sempre foi com as mentirosas estatísticas de turistas que entram no país) ou não, os números de Nyusi esvaíram a alma humana, as pessoas que eles pretendem representar.
Perdido na aritmética, o Presidente não conseguiu mostrar um feito governativo estruturante dos seus primeiros cinco anos (o primeiro ciclo, na retórica oficial, de quem está predestinado a gozar um segundo ciclo!!!), para além da sua coragem e entrega abnegada na busca de uma solução política no diferendo com a Renamo. Não fosse esse seu empenho e o país teria cedido aos que na Frelimo sempre apostaram na “savimbinização” da Renamo, no descalabro férreo da guerra.
Fora isso, os cincos anos são um cortejo de remendos. Como se o país tivesse sido pendurado no estendal da incerteza, para se enxugar dele os resquícios mais tenebrosos do Guebuzismo: a maldição das “dívidas ocultas”. (Os académicos guebuzistas, como o Elísio Macamo, tentam agora vender a narrativa de que o calote foi tudo culpa dos Pearses, Boustanis e Safas, do exímio corruptor estrangeiro e ocidental, que empurrou o país para o lixo, tentando-se branquear o papel de uma elite local ávida de encaixar no gás antes mesmo dele começar a ser explorado).
A dimensão do calote prendeu Moçambique numa incógnita. Nyusi (ele sabia ou não sabia?) começou com os cofres vazios e não fosse o pacifismo dos moçambicanos, isto já tinha rebentado pelas costuras, tal a dimensão das famílias famintas deste país. E o Governo preferiu então pelo enredo numérico. Não importa a qualidade, se os números mudam de facto a nossa condição humana, se a educação melhora, e se a saúde é eficiente; importa agora um teatro com algarismos aos milhares, dando a impressão de uma governação cheia de realizações.
Os cinco anos foram uma mistura de boas intenções e alguns desastres anunciados. A gestão do calote foi caótica e não fosse a prisão de Manuel Chang, Filipe Nyusi estaria ainda também a tentar protelar a responsabilização criminal de gente “intocável”, caindo na velha táctica frelimista da proteccão recíproca entre as elites predadoras do poder.
Mas a tentação para se entrar por esse diapasão está sempre presente (como se viu ontem quando foi revelado que o Governo contratou uma firma legal de pé-descalço, sem página web, de reputação duvidosa, para fazer o seu expediente a favor de Chang).
A melhor boa intenção foi a da paz, que há dias estava para descambar, mas que pode concretizar-se já a partir de amanhã. Essa foi a cereja no topo de um bolo de sabor amargo. E Nyusi encerrou mesmo seu discurso amplificando essa iminência da paz definitiva. O resto é uma planície cinzenta de um balanço sem uma ideia sólida construída para o futuro, um pensamento estruturante sobre o que fazer nesse tão obsessivo segundo ciclo (já bastava o Manifesto do partidão ser um mero alinhavar vago de palavras, sem um pensamento concreto de política pública).
E o discurso de hoje acaba como começou: a breve tentativa de uma ideia concreta (o redimensionamento da rede viária do interior, ideia que parece ter caído de para-quedas no enredo) e a esperança alimentada nos milhões do... gás do Rovuma!
É expectável que uma obra tenha ou comece por um projecto de arquitectura de acordo com os termos de referência do promotor e que cumpra as fases posteriores (projectos complementares - estabilidade, hidráulica- electricidade - e o projecto executivo), incluindo a contratação de um fiscal e do empreiteiro. A obra - depois de aprovada pelas autoridades competentes - inicia e desenrola em ritmo ditado pelas condições existentes (financeiras, materiais, tecnológicas e humanas). É suposto que assim aconteça com o processo de construção das nações. Contudo, nem sempre uma obra é feita de acordo com os ditames dos manuais. E o caso de Moçambique?
“O país é uma obra que nasceu de um projecto concebido - em 1962 - por Eduardo Mondlane (e outros), o primeiro Presidente da FRELIMO, cujo desiderato era a liberdade, a prosperidade e a união de todos (unidade nacional) num imponente edifício que se chama Moçambique. Por razões conhecidas o arquitecto do projecto, Eduardo Mondlane, não esteve na data do seu lançamento (7 de Setembro de 1974, Acordos de Lusaka) e na data do início da obra (25 de Junho de 1975, Independência Nacional).
Hoje, volvidos 44 anos de avanços e recuos no processo de construção, existe a forte percepção de que a obra que se esperava uma empreitada (de acordo com os manuais) descambou para uma típica autoconstrução (fora dos manuais) à boa maneira da pérola do índico. Nada confirmado, mas para o indispensável esclarecimento uma auditoria preliminar foi encomendada em resposta à seguinte questão: até que ponto foram observados todos os procedimentos e empregues os recursos adequados para uma construção sólida e duradoura de Moçambique?
O objectivo central da auditoria passa por obter a opinião profissional e independente da análise dos dados do projecto e dos da sua execução de modo a reflectir o estado da obra e o respectivo risco a 31 de Dezembro de 2019. Prevê-se que do trabalho saia um relatório e a competente carta de recomendações. Estes documentos serão publicados no próximo ano por ocasião dos 45 anos da independência do país. Em 2023/24 será feita uma auditoria completa (final) cujos resultados serão publicados no contexto das bodas de ouro da independência nacional (2025). Uma auditoria forense - havendo razões - será equacionada nos termos a serem acordados.”
Estava a transcrever parte de um documento elaborado pelo conceituado e multidisciplinar turbo-consultor Doutor Fofa. Por coincidência um amigo e o garganta-funda (informador secreto) de alguns dos textos publicados e de certeza de outros que advirão. O nome FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças) foi-lhe atribuído nas andanças das consultorias e de intervenções em conferências e na media, pois sempre que ele inicie ou termine uma análise recorre ao já famoso “nos termos da abordagem FOFA”. Esta frase passou a ser a sua marca. A marca do Doutor Fofa: uma figura eminente e incontornável dos meandros da luta pelo (sub)desenvolvimento sustentável do país.
Coube a este turbo-consultor a empreitada de levar acabo a auditoria. Para tal cobrou (e foi aceite) 10% do Orçamento do Estado (OE) do ano em exercício. Uma pimba de massa como se diz na gíria popular. Na prática um outro ministério. Os argumentos de que o Estado não busca o lucro mas o interesse público e de que um consultor que se preze carece do adequado conforto para estar imune a outras percentagens foram demolidores e favoráveis para a decisão tomada.
Para o pagamento da auditoria foi decidido que a fonte do dinheiro seria directamente do bolso dos moçambicanos. O valor por cidadão, o mecanismo para a sua colecta e a gestão do fundo seriam estudados, apresentados e operacionalizados a tempo do fecho da auditoria no presente ano e prorrogável por mais três meses. Para “um documento soberano, dinheiro soberano” foi a frase de ordem que abriu, dominou e encerrou o debate do “Consórcio Governo-Sociedade Civil” (ainda sem nome), encarregue para gerir o processo da auditoria. Porventura, o início de outros e novos tempos.
Pela primeira vez, em três décadas e poucos anos de carreira de consultadoria, o Doutor Fofa seria pago pelo dinheiro do povo moçambicano. Todavia, o encaixe financeiro e o seu semblante não se encaixotavam com o gostinho da satisfação. Algo do tipo “o que o novo patrão implica como responsabilidade?” passava pela sua cabeça. Uma expressão adaptada da emblemática “o que a liberdade comporta como responsabilidade” - dita (por um afro-americano) a respeito e na altura da aprovação da lei que proibia a escravatura na América - que Severino Ngoenha, filósofo moçambicano, tem-se socorrido em outros contextos e sempre que necessário.
Uma outra e possível razão (de contenção da satisfação) fosse - supostamente - o facto do Doutor Fofa achar que é o 13º da lista dos cidadãos a serem abatidos no âmbito da “Revolta dos Beneficiários”. Para mais informação desta sublevação - a revolta do eterno grupo-alvo do combate contra a pobreza cuja arena são as unidades hoteleiras - o leitor terá que ler o texto https://cartamz.com/index.php/opiniao/carta-de-opiniao/item/2163-a-revolta-dos-beneficiarios do mesmo nome. Para quem leu o Doutor Fofa é o amigo que passou a ter medo de assinar a lista de presenças de batalhas de combate a pobreza.
Para o início do trabalho de auditoria o consultor sugeriu e como parte da metodologia – inclusiva e participativa – um processo de auscultação aos donos da obra (o cidadão/povo). Deste exercício o Doutor Fofa espera recolher contribuições sobre o objecto em pauta. Os dados serão a posterior sistematizados de acordo com a análise FOFA ou SWOT, na língua inglesa, quando se pretende marcar a diferença.
E sem marcar diferença termino o texto ciente de que cada moçambicano está em condições de conduzir a sua própria auditoria/avaliação e emitir uma opinião independente quanto ao facto da “obra Moçambique” ser uma empreitada ou autoconstrução bem como em relação ao estado e risco da mesma a 31 de Dezembro de 2019. Mãos ao cérebro. Saravá!
PS (i): uma obra do estimado leitor (acabada ou em construção) pode servir de ponto de partida para a sua opinião. Aliás, acredito que este final de semana (ou um outro recente) tenha por lá passado com um sobrinho - recém-graduado em área afim - para a devida apreciação (técnica). Aposto que o sensato sobrinho não emitiu a real opinião por culpa do abarrotado “coleman”, penosamente castigado de tanto ser usado como anexo enquanto é o conteúdo principal das visitas à obra. Ademais, caso o sobrinho não tenha pedido o contacto do mestre/pedreiro ou tenha questionado com desdém “quem fez/está a fazer?” aconselho ao “mano” que fique preocupado quanto ao estado e risco da sua obra.
PS (ii): seria recomendável que o fim de um mandato fosse acompanhado por um relatório de auditoria/avaliação independente da governação e a respectiva carta de recomendações. Estes documentos seriam uma ferramenta útil de (a) avaliação do desempenho e adequação ao contexto dos principais órgãos do estado, (b) estruturação do governo e (c) eleição/indicação de titulares de acordo com o perfil do e para o cargo. Para começar o acesso aos termos de referência seria importante. Ou melhor, a consulta pública deveria sempre iniciar pelos termos de referência do trabalho a ser executado. Não foi assim com o Doutor Fofa, mas fica a proposta para ser equacionada no futuro.
Não há dúvidas de que Armando Emílio Guebuza é uma figura de incontornável revelo na história política e socioeconómica de Moçambique. Em suas biografias, o arrojo de um jovem peregrino que larga tudo e segue por tortuosos (des)caminhos ao encontro do movimento de libertação de Moçambique é dramaticamente narrado com apelos de exaltação messiânica a um predestinado salvacionista.
O percurso político de AEG, muito antes do apogeu a que ascendeu como PR, já estava lapidado nas múltiplas tarefas que assumira ao longo da conjuntura socialista que o país "escolheu" percorrer, independentemente das reflexões a que hoje nos damos ao luxo de, retrospetivamente, fazer sobre um mundo polarizado entre "socialismo" e "capitalismo", com aberturas e escolhas limitadas para os países emergentes. AEG, como muitos outros que lideraram o "inglório roteiro socialista", excederam-se nas tarefas que lhes foram atribuídas, que executaram sem dúvidas com zelo e até gozo, num campo de actuação onde o direito a existência era tão susceptível à volatilidade de apetites e humores de indivíduos e enrustidos em mantos de institucionais. Ontem, como hoje.
AEG leva a fama de ter recuperado a ideia de "disciplina partidária", ao desencadear movimentos de surdina, que culminaram com a renovação do apoio político ao partidão a partir das bases, reacendendo a veia de "comissário político".
Já na presidência, procurou assegurar tais lealdades políticas ao instituir o simultaneamente inovador e mal parado projecto dos 7 milhões de meticais por distrito. Enquanto se aprimora o entendimento da abordagem clientelista como inibidora de uma cultura bancária, que não se perca de vista a possibilidade de os 7 milhões terem servido como fermenta de aposta na compra de consciências e lealdades de base e que se metamorfoseiam em função das circunstâncias. Ainda estão por contar eventuais "histórias de sucesso" dos que se beneficiaram dos famigerados 7 milhões e que possam posar a investidores que saldaram suas dívidas relacionadas com o que, em princípio, supunha-se ser um empréstimo e que, se tenham firmado como "empresários de sucesso", qual rótulo reivindicado por pais presidentes a enaltecerem filhos nem tão pródigos.
Antes mesmo da vermelhidão das comichões que os 7 milhões deixaram, o curioso é lembrar da bandeira que AEG içou bem alto no processo de firmamento da sua liderança: O "combate ao deixa andar". A simbolizar a sua determinação, altos funcionários vinculados a posições de segurança do Estado, como ex-Ministro do Interior, foram presos. Ainda que vagamente, quando a tempestade bateu na sua canoa, AEG deixou o seu "mea culpa" quando aludiu a seus próprios excessos quando retrucava de discurso de camarada seu que não alinhava com sua postura. Além de alegar desconhecer os nhangumeles da vida, incomodou-me a possibilidade de aludir a perda de memória e potencial inimputabilidade da/na função de PR. Mas o trágico não é só isso. É não conhecer os massagistas que lhe teriam facilitado as "bolada" de protecção costeira que, na "casa do povo", arrogou predisposição para repetir.
Ironicamente, o seu sucessor, escolhido a dedo e criado no colo, na primeira oportunidade que teve de dar uma entrevista recomendou, convenientemente, o oposto: "o melhor deixar", o que é sintomático dos reveses que caracterizam o mundo que AEG legou a seu sucessor, que agora se desdobra em inconciliáveis papéis de protector e traidor, no difícil jogo de equilíbrio que tem de fazer para manter-se no trono que se sustenta em corda bamba.
No imaginado mundo de AEG, havia patos como "assets" (activos) para a prosperidade e 50 milhões de galinhas geridos por filhos e acionados como óleo da ternura para massagear sistemas. Não espanta que o legado de AEG tenha criado um bando de deputados relaxados e afrouxados, agora potencialmente incapazes de o proteger. Tão pouco se pode fiar no G40 da vida, instituído como guarda pretoriana para inventar base ideológica e/ou filosófica para sustentar insaciável apetite de poder e dinheiro trasvestido em compromisso patriótico. Tão patriótico quão egocêntrico que não teve dificuldades de vir dizer, em sede de assembleia, que, se as circunstâncias fossem as mesmas "teria agido da mesma maneira".
Volvidos quase 5 anos sem AEG no poder, as ditas circunstâncias (político-militares), não se alteram substancialmente, salvo pela partida do aguerrido e beligerante opositor AD. Nestas circunstâncias, se lhe fosse dada oportunidade, estaríamos a falar em 100, e não em 50, milhões de frangos para lubrificar o sistema e alimentar uma estrutura político governativa assente em pés de barro, dinheiro, falsos moralismos e lealdades político partidárias adoçadas à colherinhas à boca do caldeirão de sopa.
Hoje, na resiliente estrutura de protecção de AEG, que perpassa FJN, pactos são feitos e intentonas de construção do quiméricos perfis de presidenciáveis "menos maus" são vocalizados, a ponto de se promover uma vaga ideia de falta de escolha. Um cenário de fatalidade regressiva, a que se tem de voltar (ou votar!?) nos mesmos de sempre, que na verdade nem sempre foram eleitos, salvo pelos arranjos e cumplicidade do "corpo de salvação eleitoral" que até ousa ignorar a racionalidade matemática, à luz do dia, agarrando-se a apriorismos políticos e autoritários.
O fazedor de poeira é esse indivíduo que, em nome da nação, assumiu pactos comerciais que favoreceram filhos e subordinados, que não tem pudor em ignorar o questionamento que lhe é feito sobre as suas escolhas e decisões; que diz nunca ter lido o relatório de auditoria feito sobre a negociatas que aprovou e que hoje expressa revolta pela quantidade de poeira (muita poeira) que mal sabe de onde possa ter surgido, se "espontaneamente ou se por objectivos escusos". Quem te viu e quem te vê! Quem diria que o Régulo das ocultas, o verdadeiro Soba do obscurantismo, o PR das dívidas ocultas, que teve o desplante de afrontar o parlamento e dizer que se pudesse faria de novo, solte a língua e fale de "motivações escusas", que aparentemente lhe ultrapassem? Mas quem ousa levantar tanta poeira a ponto de ofuscar o brio de AEG, o "construtor", o "filho mais querido" de tal pérola do índico?
Partilho do desaconchego. Mais do que falar de partículas indefinidas de poeira no ar, o PR mais adulado e celebrado pelo aparato de protecção e celebração de si, já criado, que saía do lugar comum de escudar-se no obscurantismo que quis estabelecer como vestimenta que carateriza este imbróglio das dívidas, sacuda a poeira e venha a terreiro explanar das suas cristalinas verdades. Enquanto tiver mãos, que não meça esforços para sacudir tal poeira e revelar verdades que, a seu ver, nos faltam.
Pois, pelo curso dos acontecimentos, não haverá poeira que baste para tecer inescrutável indumentária para este rei, fazedor de poeira, que anda cada vez mais despido. Quase nu.