O conflito que se desenrola na província de Cabo Delgado, desde Outubro de 2017, opondo forças governamentais moçambicanas (apoiadas por tropas ruandesas) e os terroristas do Ahlu Sunna Wal Jammah, já está a ser retratado em livro, o primeiro a documentar as incidências da guerra a partir do terreno.
Intitulado “a guerra em Cabo Delgado: para além da propaganda governamental”, o livro é da autoria de Armando Nhantumbo, jornalista moçambicano com mais de 15 anos de experiência e descreve o início, a evolução, as dinâmicas e as principais discussões sobre a guerra no norte do país. Refira-se que os ataques terroristas já mataram perto de quatro mil pessoas, nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula.
A ser lançado esta quarta-feira, 09 de Abril, em Maputo, o livro narra o “complexo e duro” dia-a-dia sobre a guerra, em Cabo Delgado, para além de que irá ajudar a sociedade a entender “o que acontece no terreno há mais de sete “anos”.
“Carta” conversou com Armando Nhantumbo para perceber as motivações do livro, editado pela “Ethale Publishing”. Acompanhe, nos próximos parágrafos, a curta conversa com o autor.
O país testemunha, amanhã, o lançamento do primeiro livro sobre os ataques terroristas em Cabo Delgado. Tomando em conta o título do livro, o que chega a ser propaganda no contexto dos ataques terroristas e que narrativa o livro nos traz?
Nhantumbo: Desde o início dos ataques terroristas, em Cabo Delgado, fomos vendo que, a nível da comunicação política, foi sendo construída uma narrativa triunfalista pelas autoridades, que transmitia aos moçambicanos e ao mundo que o conflito em Cabo Delgado é controlável, que estamos a ganhar, pelo que não havia que criar alarmismo. Há-de se lembrar da célebre frase do antigo Comandante-Geral da Polícia, Bernardino Rafael, em Mocímboa da Praia, dizendo que os malfeitores [tal como eram tratados os insurgentes no princípio dos ataques] tinham sete dias para se entregar, caso não se entregassem, as nossas forças combativas iriam persegui-los e tratá-los como terroristas e seriam eliminados. Ora, esta é a narrativa apresentada ao longo deste tempo.
No entanto, esta narrativa era contraditória com o que estava a acontecer no terreno. Pelo contrário, era a insurgência a avançar e a desafiar e colocar o Estado moçambicano em situação difícil, tomando e administrando territórios em Cabo Delgado. Não podemos esquecer que Mocímboa da Praia ficou nas mãos dos insurgentes praticamente um ano e nenhum servidor público veio dizer que estava ocupada. O que fizeram foi anunciar a recuperação de uma vila que nunca admitiram que perderam. Aliás, quando nós dizíamos que Mocímboa da Praia estava perdida, éramos chamados de anti-patrióticos, agentes da mão externa que estavam a seguir a agenda do Ocidente. Então, o que o livro faz é desconstruir essa propaganda. Não existe intenção de atacar a quem quer que seja e nem o Governo. Há acontecimentos, em Cabo Delgado, que foram sendo deturpados, propositadamente, exactamente para criar uma narrativa triunfalista.
Desde que o conflito começou em Cabo Delgado, vários estudos já foram divulgados, no país, e no estrangeiro, sobre o assunto. O que difere este livro das narrativas já publicadas em torno desta temática?
Nhantumbo: Tal como diz o prefaciador do livro, Borges Nhamirre, aquele que quiser compreender o conflito de Cabo Delgado tem que ler este livro. Não digo isso de forma arrogante, mas tive a oportunidade de ir a Cabo Delgado logo depois do primeiro ataque, em Outubro de 2017. Fui seguindo e escrevendo sobre o conflito, semanalmente, e isso deu-me oportunidade de fazer a etnografia do conflito. O livro tem seis capítulos e o que faz, ao longo dos seis capítulos, é apresentar a cronologia da guerra. Mas, para além de falar do primeiro ataque, tenta também apresentar a origem do conflito, pois, é importante trazer as razões que levaram aqueles jovens de Mocímboa da Praia a recorrer às catanas e machados. As respostas não são acabadas [que se baseiam em leituras pessoais do autor e de entrevistas com pesquisadores que trabalham sobre Cabo Delgado], até porque não há respostas acabadas para Cabo Delgado. Portanto, penso que é uma grande contribuição para se ter uma imagem sobre o conflito de Cabo Delgado.
A entrada das tropas ruandesas, em Julho de 2021, é um dos momentos marcantes do conflito. Há alguma narrativa, contrária à “propaganda” das autoridades, que o livro aborda sobre a chegada dos ruandeses, em Cabo Delgado?
Claro que sim. Temos elementos que mostram que essa entrada do Ruanda não é exactamente como ela nos foi apresentada. Foi um acordo feito com falta de transparência e o que vimos foi a entrada de empresas da Frente Patriótica [partido no poder, no Ruanda], a se associarem a empresários ligados ao partido Frelimo na cadeia de prestação de serviços aos projectos de gás, em Afungi. Portanto, a narrativa de que estão em Moçambique a título gratuito não é verdadeira, pois, já estão a tirar proveito.
Também temos a agenda de perseguição dos opositores de Paul Kagame, que ganhou um novo ímpeto desde o início das operações. Há muito tempo que Kagame queria um acordo de extradição com Moçambique e nunca teve e, estranhamente, quando nos deu essa ajuda gratuita, o acordo foi selado. O engraçado é que Moçambique não tem nenhum detido no Ruanda que precisa ser extraditado para Moçambique, mas quem tem pessoas que precisam ser extraditadas é o Ruanda. Portanto, o que o livro discute é o facto de Moçambique ter gerido este conflito num ambiente de secretismo e de falta de transparência. Aliás, recomendo ao novo ciclo de governação a mudar a abordagem que se está a dar a este conflito desde 2017, porque esta abordagem é contraproducente.
Há um histórico, em Moçambique, de censura de livros que contam narrativas diferentes das contadas pelas autoridades. Acredita que o seu livro, nos termos em que foi escrito, não será vítima de censura?
É sempre um grande dilema pensar criticamente em contextos de tendência autoritária e Moçambique está a trilhar este caminho de autoritarismo. É compreensível que pensar de forma crítica, de forma diferente, seja recebido com hostilidade. Desde que iniciou o conflito, temos sido vítimas de ameaças, algumas veladas, outras abertas. Quando se anunciou o lançamento do livro, já havia os tais milicianos digitais e o grupo propagandistas do Governo já estavam a atacar a mim e ao livro, que ainda não foi lançado. Antes mesmo de lerem o livro, eles dizem que o livro é um hino à desinformação. Portanto, como cidadãos, temos de decidir que queremos que este nosso país seja conduzido por pessoas que fazem propaganda, que andam a bajular os chefes ou queremos dar a nossa mão e ajudarmos a contruir um país diferente para os nossos filhos, nossos netos. O mal não pode triunfar sobre o bem. Não estou muito interessado em dar ouvidos às pessoas que me vêm atacar. Que venham mais livros ou propostas de discussão sobre Cabo Delgado, pois, um país se constrói na base da contradição ou divergência de ideias.
Que desafios enfrentou na produção do livro?
O livro foi produzido durante quatro anos (de 2020 a 2024), mas ele é produto de uma pesquisa que iniciou em 2017. Levou-me quatro anos porque não quis correr, era preciso rever e reconfirmar dados, ouvir maior número de fontes antes de escrever, de modo a afastar imprecisões. Fui ouvindo muitas pessoas, na sua maioria anonimizadas por causa dos riscos associados ao assunto. Infelizmente, algumas delas acabaram perdendo a vida, vítimas da própria guerra que nos ajudaram a contar. Um dos desafios foi o acesso à informação, como sabe Cabo Delgado tornou-se num território praticamente proibido para jornalistas, sobretudo, entre 2018 e 2020.
A situação muda após a entrada de ruandeses, em Julho de 2021, quando começam a trazer jornalistas de várias partes do mundo para mostrar o que estavam a conseguir em Cabo Delgado. Durante a pesquisa, em alguns territórios fui proibido de trabalhar e quase fui preso, felizmente, nessa altura ainda não tinha começado a detenção de jornalistas. Mas, pela rede de fontes que fui constituindo ao longo do tempo, quando não fosse possível penetrar em alguns territórios, era possível ter informações sobre as ocorrências em Cabo Delgado. Essas fontes incluem servidores públicos de vários sectores das Forças de Defesa e Segurança (alguns perderam a vida vítima da própria guerra).