O problema da crescente inactividade das crianças tem vindo a ser foco de estudo há várias décadas. Os resultados das pesquisas por todo o mundo são assustadores. As crianças andam menos na rua, brincam menos e passam uma enorme parcela do tempo a olhar a TV, no computador ou no celular. Na escola sentam-se e escutam. Os recreios diminuíram, a brincadeira livre é mesmo reprimida. Se isto já era assim antes da pandemia, tornou-se catastrófico depois dela. Em Moçambique, por exemplo, proibiu-se a prática de jogos e de desportos colectivos, o convívio e a interação. Colocaram-se máscaras e aboliu-se a Educação Física. Chegou-se mesmo a policiar crianças que procuravam brincar ao ar livre. Fecharam-se as praias mais frequentadas.
Brincar é uma coisa muito séria. Não se trata de uma opinião, mas uma evidência científica, mais que comprovada. A brincadeira constitui um elemento natural essencial em muitas espécies animais e, também no ser humano. O analfabetismo motor que caracteriza as crianças superprotegidas e enclausuradas tem consequências catastróficas para o seu desenvolvimento. Não apenas naquilo que hoje parece ser mais valorizado, como a obesidade e doenças cardiovasculares, mas, e sobretudo, pela relação intrínseca entre brincar activamente, equilíbrio emocional, capacidade cognitiva e desenvolvimento motor. Brincar é um instrumento essencial em todos os animais, que permite desenvolver competências cognitivas e motoras essenciais para a sua sobrevivência.
Vários estudos têm demonstrado que o sucesso na vida adulta está muito associado à brincadeira durante a infância. O risco que uma vida livre e activa comporta faz parte dum processo de aquisição de autonomia, auto-confiança e segurança. É pelo erro que se aprende. Aprender a andar, por exemplo, implica muitas quedas sem as quais não se aprende. E isso é válido para muitos outros aspectos do comportamento motor. Nós não nascemos para estar sentados. Nosso corpo e relação com o mundo se desenvolvem pelo movimento e interação corporal com os outros, os objectos e o meio ambiente.
A sociedade industrial que criou um estilo de vida sedentária, mais tarde agravada pela tecnologia, foi criando alternativas de compensação. Jogos, arte e desporto, com a respectiva criação de espaços apropriados, fazem parte essencial dessas alternativas. Educação Física nas escolas, clubes desportivos, espaços para brincar e jogar constituem, entre outras, medidas essenciais criadas pelo reconhecimento do seu papel determinante e vital. Assim, do ponto de vista científico, social, psicológico, de saúde e bem estar, brincar é hoje consensualmente reconhecido como um assunto muito sério.
A proibição da prática de desportos colectivos, a interdição das praias e inclusive da Educação Física, estabelecidos como regras de prevenção da pandemia, vieram a agravar, de forma preocupante, o panorama já de si pouco promissor. Cientes da gravidade do assunto, os profissionais de Educação Física alertaram, sem sucesso, as autoridades, tendo inclusive construtivamente elaborado um manual de actividades em que o distanciamento era garantido (o que nem necessário era). As medidas foram mantidas, isto é, a proibição da prática desportiva manteve-se, as praias continuam encerradas, as aulas de Educação Física também. Até houve quem defendesse a proibição de dançar sem ter a mínima noção do que estava a defender. Os danos de quase dois anos são enormes. E o pior é que tudo indica que as proibições não evitaram em nada a propagação do vírus e criaram um problema de dimensões não calculáveis, mas imagináveis.
Agora que tudo sugere termos entrado numa fase endémica da virose, urge libertar as crianças de estarem fechadas, sentadas e sem interação. Urge promover que brinquem, joguem, dancem e interajam, e muito. Urge seguir a recomendação que crianças não devem usar máscara pois lhe causam danos e pouco as protegem. O tempo em que devem brincar não se adia. As crianças não vão ter outra infância para recuperar.(António Prista)