A sua enorme barriga com cardume de lombrigas como a de um canguru em gestação e a habilidade de dormir de boca aberta na sala, levaram a turma toda a chamá-lo Senhor Deputado. Seu nome era Viriato Bernardo Maposse. Era um espectáculo vê-lo dormindo de boca aberta e as moscas aterrando zumbidos sobre a pista do seu mau hálito. De tempos a tempos despertava para humedecer os lábios com uma pincelada da língua e voltava a dormir. Saudades tuas, Viriato Bernardo Maposse.
Era um rapaz doentio e por isso, tal como os deputados, tinha muitas regalias: não apanhava papéis na sala, tinha imunidade total às réguas da tabuada e tinha subsídio de notas nas provas e redacções.
O Senhor Deputado por vezes ficava meses sem pôr o pé à escola e para justificar as suas ausências surgia um senhor velho, descalço, com um molho de receitas preso por um elástico e falava com a nossa professora. Era o pai do Senhor Deputado, dava para ver pelas escamas de fome que tinha nos lábios secos. O Senhor Deputado era evacuado de hospital em hospital, passava dias em clínicas de curandeiros e voltava sempre o mesmo; com resto de saúde espalhando-se pela sala quando respirava. E sempre fendia de comprimidos e raízes.
E toda a turma gozava com ele. O Zeferino era sempre o primeiro; ria-se das pequenas nádegas do Senhor Deputado que eram amputadas por seringas nos hospitais e apimentava a piada: “as rodas do Mercedes do Senhor Deputado estão sem ar”. E o Senhor Deputado ameaçava-nos com um soco que não conseguia arremessar, um soco cheio de ossos nas mãos. Às vezes o Senhor Deputado chorava, mas tinha sempre uma resposta: “tem regalias e ainda chora como se sofresse".
O Senhor Deputado reprovou quatro vezes por faltas e quando se preparava para reprovar pela quinta vez baixou as poucas pestanas dos olhos que tinha, abriu a boca e morreu no Hospital Geral José Macamo. Foi a primeira vez que o Senhor Deputado fez-nos falta. Com a morte do Senhor Deputado a turma toda ficou de luto, era como se fosse o país inteiro. Chefes de turmas de outras classes apresentaram-me a mim condolências porque era chefe da turma do Senhor Deputado.
“O Senhor Deputado afinal não tinha seguro médico?", perguntou-me o chefe da turma 7, da quinta classe. Não me recordo o que lhe respondi, mas recordo-me de ver, três meses depois, a pauta que anunciava o cadáver do Senhor Deputado como reprovado pela quinta vez. Uma escola injustiça, tão injustiça que até reprovava deputados mortos.