Principio este texto, citando o saudosíssimo Samora Machel, num excerto do seu extenso discurso proferido a 18 de Março de 1980, aquando do lançamento da “Ofensiva Política e Organizacional” (sic): «quando conquistamos a independência, dissemos em cada parede em cada palmo de terra, está o sangue e o suor de um moçambicano; mas fomos entregar a defesa das nossas conquistas àqueles que queriam se banhar com o sangue e suor do povo».
Quem são esses que pretendem «banhar-se com o sangue e suor dos moçambicanos»?
Resposta: São moçambicanos.
Não irrompeu nenhuma força externa que nos veio subjugar. Nós próprios estabelecemos, entre nós, gatos, de um lado, e ratos, doutro. E comemo-nos que nem canibais.
O caricato, mas esperançoso, nisto tudo, é que não precisamos enveredar por lucubrações complexas e exaustivas para “identificar o inimigo”. É só nos olharmos ao espelho que ele está automaticamente identificado.
Mas essa coisa de nos culparmos à nós mesmos de algo, costuma ser um exercício massacrante e de extrema dolência. Não há juiz mais severo do que a nossa própria consciência.
É necessário encontrar alguém (ou algo) em quem colocar a culpa.
Culpar o governo ou governantes é um exercício fácil(itado). Vitimizar-nos ao invés de nos responsabilizarmos, é sempre um ensaio que não requer dificuldades. É algo que não se aprende na escola. É uma tentação perante à qual todos estamos sujeitos a tropeçar e, por ser cômoda, optamos, sem hesitação, por nela investir.
Mas o governo é corporizado por pessoas. São elas que cristalizam o modus cogitandi, modus operandi e modus faciendi nos quais se cristaliza a acção governativa. Tudo isto é labor do ser psico-físico, com capacidade de saber o que faz e que consequências se extrairão do que faz (mesmo naqueles casos em que os actos são inconsequentes, há capacidade de intuir que, na eventualidade de haver consequências, estas seriam, sempre, assustadoras aos olhos dos próprios autores dos referidos actos).
O problema não é o governo. O problema é o moçambicano que, sabe-se lá a partir de que momento, canibalizou-se e introduziu no seu intelecto insaciadamente voraz que, enquanto viver, tem de matar. O governo não é culpado pelo facto de uma comissão de moradores de um condomínio surripiar os valores dos contribuintes/condóminos; o governo não á culpado pelo facto de as empresas privadas comercializarem vagas de emprego em troca de actos sexuais; o governo não é culpado pelo facto de os nossos WhatsApp’s servirem de autênticos centros difusores de boatos sobre a vida dos nossos melhores amigos com os quais nos rimos e aos quais abraçamos todos os dias.
Hoje em dia o cidadão já nem sabe onde efectuar uma queixa. É bem provável que, se se atrever a efectuá-la junto à Esquadra policial, corra o risco de, pasme-se, sair de lá na qualidade de indiciado, pois está instalada uma patética doutrina segundo a qual é proibido fazer queixa contra indivíduos aos quais foi atribuída a categoria de “intocáveis”, sob pena de o denunciante ir, ele próprio, preso. O jornalismo investigativo é desencorajado através do terrorismo, no qual se lhes incendeiam as instalações e [se lhes] destroem os equipamentos de trabalho, como forma de lhes “chamar atenção” para não enveredarem pelo correcto e aconselhável pergaminho do exercício do direito de informar e da liberdade de imprensa.
É falacioso apregoar-se que a culpa pela ocorrência destas distopias sociais é propriedade exclusiva do governo.
A culpa, como doutrinaram os neologistas Bockelman e Mezger, está na «formação da personalidade» de cada um de nós.
É que, em boa verdade, não se sabe ao certo se nos deixamos corromper inadvertidamente pela degenerescência ou se, antes, fomos nós que criamos conscientemente a degenerescência como preferencial instrumento de conduta, visando satisfazer anseios que, propositadamente, preferimos nos esquecer que são moralmente impúdicos.