Desde quinta-feira passada, 20 de Fevereiro de 2025, que o Presidente da República, Daniel Francisco Chapo, tem defendido que as manifestações pós-eleitorais, que se verificam no país desde Outubro passado, constituem uma agenda de subversão que visa desestabilizar Moçambique e ressuscitar uma guerra civil.
Falando primeiro ao corpo diplomático acreditado em Moçambique e depois aos membros das Forças Armadas de Defesa de Moçambique, durante a abertura do ano operacional militar e, recentemente, no comício popular dirigido na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado, Chapo tem comparado os protestos pós-eleitorais aos ataques terroristas e à guerra dos 16 anos, que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz, entre o Governo da Frelimo e a Renamo, a 04 de Outubro de 1992, em Roma (Itália).
“As manifestações fazem parte de uma agenda de subversão para desestabilizar o nosso país. É a continuação dos ataques terroristas na província de Cabo Delgado e da guerra dos 16 anos que desestabilizou este país”, afirmou Chapo, na quinta-feira, durante a recepção aos diplomatas acreditados em Moçambique, por ocasião do novo ano.
No dia seguinte, Chapo mobilizou o exército a estar pronto para combater as manifestações pós-eleitorais e, em Pemba, chegou a declarar que “mesmo se for para jorrarmos sangue, para defender esta pátria contra as manifestações, vamos jorrar sangue”.
A Directora Executiva do Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC), Paula Monjane, defende que a declaração do Presidente da República “é assustadora e intimidatória” e representa a continuidade de uma máquina repressiva, que vincou nos últimos 10 anos.
“Recebemos com muito susto e espanto as palavras do Presidente da República, que até cursou Direito, a dizer, de viva voz e com todas as letras, que se for necessário jorrar sangue, vai jorrar, ignorando a Constituição da República, que estabelece o direito à manifestação”, disse Monjane, para quem o Presidente da República “foi contra a Constituição”.
Para a activista social, “é totalmente contraproducente” não se admitir que deve haver um diálogo, primeiro, com Venâncio Mondlane – o segundo candidato mais votado nas eleições presidenciais de 09 de Outubro e rosto dos protestos pós-eleitorais – e depois com os outros actores da sociedade moçambicana, que vai “sarrar as feridas abertas ao longo do tempo”, mas também durante as manifestações populares.
Paula Monjane defende que o discurso do Chefe de Estado não vai resolver a situação, até porque os cidadãos estão cada vez mais conscientes dos seus direitos. “Está a ser cimentado um processo complexo, em que essas manifestações não terão mais controlo. A melhor estratégia é dialogar com todos os grupos de interesse”, pois o diálogo interpartidário “não vai ser suficiente”.
“Queiramos ou não, parte do povo tinha expectativa que Venâncio Mondlane fosse eleito Presidente do país. Acho que é importante construir um diálogo com ele e com todo o povo moçambicano”, reitera, sublinhando ser “extremamente assustador” o discurso de Daniel Chapo.
“Penso que estamos a ir para um regime mais apertado, de cerceamento das liberdades universais e constitucionalmente adquiridas pelos moçambicanos, desde os anos 90 [com a introdução da Constituição de 1990]. As ordens são para usar força para gerir uma situação de desobediência civil, num contexto em que as eleições não foram aceites”, diz a fonte, realçando que havia uma expectativa de haver um diálogo inclusivo e um Governo mais inclusivo. “Não esperava ver um governo só da Frelimo”, frisa.
“Temos de reconhecer que, em alguns casos, as manifestações estão a afectar a economia e outros cidadãos, mas se calhar é a forma que moçambicanos encontram para resolver e ajustar aquilo que são as injustiças pelas quais têm passado todo este tempo”, explica a Directora Executiva do CESC, lembrando que “as manifestações vêm sendo reprimidas desde os dois últimos mandatos” e que o cenário se agravou após a realização das eleições gerais de 2024.
Para além dos recentes discursos do Presidente da República, constitui preocupação de Paula Monjane o silêncio de Daniel Francisco Chapo em relação à chacina de civis, durante os protestos, pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). “É mais um sinal de que a máquina repressiva é aceite”, defende.
“Em Novembro, podia se dizer que tinha a ver com o Presidente cessante, mas quando se está num novo Governo e esse assunto não é abordado, quer dizer que o modelo e a lógica de repressão não só se mantiveram, mas pioraram”, acrescenta, sublinhando que alguns actos estão devidamente documentados e denunciados e devem ser objecto de responsabilização.
“Muitos dos actos das manifestações foram consequência deste uso desproporcional da força usada pela Polícia. O silêncio significa que a Polícia pode continuar a usar da força e nada não vai acontecer”, defende, chamando a atenção para a necessidade de se compreender as razões pelas quais as manifestações estão a ser violentas.
“Se as palavras de Daniel Chapo se materializarem, vai aumentar a tensão social” – Quitéria Guirengane
Quem também se mostra preocupada e assustada com os últimos discursos do Presidente da República é a activista e defensora dos Direitos Humanos Quitéria Guirengane. Segundo a Secretária Executiva do Observatório das Mulheres, caso se tornem reais as palavras de Daniel Chapo, Moçambique vai regredir e a tensão social vai aumentar.
“Se as palavras de Daniel Chapo se materializarem, vai sinalizar um retrocesso significativo para a nossa democracia e vai aumentar a tensão social, criando um clima de repressão, minando ainda mais a confiança que se pretendia reconstruir da população nas instituições democráticas e conduzindo a uma maior polarização política”, defende a activista, para quem querer “jorrar sangue” por causa das manifestações “é um acto criminal” que deve ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, para além de arrepiar o Parlamento e o Provedor de Justiça.
“As palavras proferidas por Daniel Chapo têm um grande impacto, especialmente quando se referem ao uso de violência em protestos. É como se fosse uma autorização à Polícia e ao Exército para agirem à margem da lei, para cometer uma chacina, um genocídio. É o triplicar de todo o sangue que nós vimos a circular. É importante que o mundo esteja atento a isto”, afirma Guirengane.
“Se Moçambique não resolver adequadamente este problema, nós vamos caminhar para uma direcção que não vai ter cura e o mundo vai condenar os moçambicanos quando se defenderem de um Estado que autoriza pessoas a não gostarem de manifestações”, explica.
Segundo Quitéria Guirengane, num momento em que a sociedade fala da necessidade de se encontrar um “caminho comum” para a reconciliação, o discurso do Chefe de Estado mina essa possibilidade. “Não basta a Daniel Chapo o sangue que já foi jorrado neste país?”, questiona, sublinhando que era expectável que o discurso do Presidente da República fosse no sentido de se parar de jorrar sangue.
Abordando o silêncio do Presidente da República e também Presidente da Frelimo em torno da execução de civis pelas FDS, Guirengane defende que tal atitude reflecte que “há alguns mais moçambicanos que os outros”.
“O afastamento de determinadas figuras parece mais uma agenda de protecção do que de responsabilização. Em 2023 [nas manifestações do dia 18 de Março, em homenagem ao rapper Azagaia, falecido no dia 09 de Março daquele ano], estivemos a atender um volume de famílias que perderam os seus filhos ou que perderam a capacidade laboral ou que perderam parte dos seus órgãos. Conhecemos pessoas que estando no dia 25 de Dezembro [de 2024] a celebrar pelas ruas, sem qualquer ligação à libertação dos reclusos, foram capturadas, levadas à BO e assassinadas e isso tudo Daniel Chapo não vê”.
“Se queremos mostrar que todos somos moçambicanos, que temos valor, é preciso fazer-se um esforço maior para uma direcção muito contrária desta. (…) Estando na cadeira de Presidente, Daniel Chapo tinha uma oportunidade de luxo para mostrar uma nova face. É urgente mudar o discurso, é urgente se reconciliar com os moçambicanos e é urgente pedir desculpas aos moçambicanos, porque ninguém aqui tem problemas de amnesia. Todos nós sabemos como viemos parar aqui. Viemos parar aqui porque foi vandalizado o Estado”, atira a activista.
É preciso “mudar o discurso e a abordagem” – Wilker Dias
Por sua vez, o activista Wilker Dias defende que o importante, neste momento, “é mudar o discurso e a abordagem”, cessando-se com as promessas de que se vai derramar o sangue dos manifestantes e garantir-se justiça para os que já perderam vidas reivindicando seus direitos.
Numa análise publicada na sua conta oficial do Facebook, o Coordenador da Plataforma de Monitoria Eleitoral DECIDE diz ainda não se ter compreendido que os tempos mudaram na política nacional. “Quando um político enfrenta um cenário de desvantagem na relação com o povo, a resposta deve ser marcada pela humildade e pelo compromisso genuíno em resolver os problemas”, afirma, sublinhando que a insistência no discurso de que ‘não se pode dialogar com evangelistas do ódio’, repetido por Daniel Chapo, “pode piorar ainda mais o cenário do país”.
“A população perdeu o respeito e o medo da Polícia devido aos constantes erros cometidos graças às ‘ordens superiores’, como perseguições, detenções arbitrárias e até mesmo o baleamento de inocentes. A falta de empatia com as vítimas mortais e feridos dessas manifestações, somada à preocupação selectiva apenas com os bens materiais destruídos, pode alimentar ainda mais ressentimentos e radicalizar diversos sectores da sociedade, como já começamos a testemunhar”, acrescenta.
Dias, que chegou a pedir a intervenção da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos para anulação ou repetição das eleições gerais de 2024, explica ainda que considerar que as manifestações “não têm a ver com os resultados eleitorais” revela uma “desconexão perigosa com a realidade”. “Desde o início, foi claro que esses protestos tinham tanto motivações políticas quanto sócio-económicas. Essa não é uma nova descoberta – é apenas o reflexo de problemas há muito ignorados”, afirma.
“Fala-se muito que ‘as portas do diálogo estão abertas’, mas, desde 15 de Janeiro não houve nenhum convite concreto para uma nova tentativa de diálogo com a inclusão de uma figura que se considera ser importante neste processo. A paz e a estabilidade não se conquistam apenas pela teoria do cansaço – às vezes basta um gesto de aproximação para transformar o cenário”, defende o activista, questionando, por exemplo, a exclusão dos informais no debate sobre os impactos económicos das manifestações.
Refira-se que 24 horas depois de ter anunciado a possibilidade de jorrar sangue em combate às manifestações, o Presidente da República veio ontem enfatizar o seu discurso, referindo que o sangue que quer que se derrame é no combate às “manifestações subversivas, ilegais e violentas” e não às pacíficas, pois, estão consagradas na Constituição da República. No entanto, desde 2013 que é quase um crime organizar marchas e/ou passeatas no país, sobretudo na capital do país, estando estas reservadas apenas ao partido Frelimo. Todas iniciativas de manifestação foram prontamente rechaçadas pela Polícia. (A. Maolela)